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“Quem deixa tudo pelo amado, deixa tudo: mas quem deixa pelo amado ao
mesmo amado, ainda deixa mais; porque chega a deixar aquele, por quem tem
deixado tudo”. In António Vieira, Sermão do Mandato, 1670.
Espaço e Saudade
«Encarando a obra de Pascoaes no seu conjunto somos levados a pensar
que Pascoaes teve múltiplas portas de acesso à saudade, que tomou como motivo de
reflexão filosófica, como pathos
pessoal e até como ethos ou apetite
próprio do homem, e em particular do homem português.
A tentativa de perceber como se organizam os vários modos de
entendimento da saudade na obra de Teixeira de Pascoaes, e que tão variados
são, levam-nos a aceitar que tanto a reflexão antropo-filosófica como a teorização
doutrinária não são a via de acesso do autor à saudade, mas antes a consequência
dum outro e anterior entendimento, esse sim fundador. O apostolado da saudade, que revela da necessidade de pensar e de agir
em defesa duma ideia, é posterior na obra e no percurso de Pascoaes ao encontro
da saudade como experiência directa de revelação, quer no plano sentimental,
quer no textual.
O conhecimento da saudade a partir do que chamamos a experiência
directa, experiência sentimental onde a razão, o raciocínio e a lógica desempenham
um papel parcelar, afigura-se-nos do maior interesse, porquanto não só a poesia
em verso de Pascoaes, sobretudo no período que vai de 1898 a 1912, se confunde
largamente com ela, como a saudade enquanto tal dificilmente se deixa definir como
raciocínio analítico ou objectivo.Em Teixeira de Pascoaes a saudade pessoal, entendida como participação
directa e involuntária, tem lugar muito cedo, e um lugar de radicação de toda a
sua múltipla e variada obra, e livros como Sempre
ou Terra Proibida, publicados
respectivamente em 1898 e 1899, quando o poeta tem vinte e um e vinte e dois anos,
são livros inteiramente marcados pela experiência a que nos referimos, ainda
que as sucessivas reedições desses livros, feitas ao longo dos anos da vida do
poeta, muito tenham ajudado a desenhar a definitiva fisionomia com que hoje os
encaramos e conhecemos.
Nos vários textos autobiográficos de Pascoaes que definem um espaço de
reconstituição transfigurada do seu passado sentimental, encontramos naturalmente
elementos sobre essa sua experiência central para o entendimento da saudade,
sobretudo como acontecer directo e involuntário, que paralelamente se revelou
enquanto escrita em livros como Sempre ou Terra Proibida.
Eis o que ele diz num dos primeiros desses textos em prosa:
- ‘Primeiros tempos de Coimbra! Passagem da solidão da aldeia para o tumulto da cidade. Tempos de espantos e estremecimentos criadores ! […] Primeiros tempos de Coimbra... Ansiedades inominadas... Sombra de Inês fazendo a minha noite... Remotas lágrimas acesas, nos longes do meu ser... Via-láctea o que pertence a minha alma. Ó saudades da aldeia longínqua... Estrela da tarde, sobre os olivais de Santa Clara... Vulto quimérico de Virgem, turbando a paisagem, como que esparso em tudo... […] Dezassete anos! Época tumultuosa, em que deixamos a infância, o áureo ciclo. Primeira saudade! Noite do Passado, ainda noitinha, cheia de luz ainda! Sombra da Queda separando-nos da Inocência... Pecados, tentações, lágrimas enunciando o Dilúvio... Risos, alegrias que já são lembrança, penumbras caídas do sol’. In Verbo Escuro, OC, vol. VII.
A primeira saudade, para usar a expressão de Pascoaes, aparece assim
ligada a uma idade, a dos dezassete anos, época adolescente que ele diz turbulenta,
e relacionada ainda com uma mudança geográfica de espaço, associada à queda
pessoal, em que se troca a aldeia longínqua de São João de Gatão onde viveu a
infância pela cidade de Coimbra para onde vai adolescente estudar quase sem
gosto leis». In António Cândido Franco, Transformações da Saudade em
Teixeira de Pascoaes, Edições do Tâmega, Amarante, 1994, ISBN 972-9470-12-X.
Cortesia Edições do Tâmega/JDACT