sábado, 15 de setembro de 2012

Antologia Literária. Época Clássica. Século XVII. Maria Ema Ferreira. «Tudo é cheo de dor e de saudade, tudo de confusão, tudo é patranha, e tudo o que cá vemos é vaidade. Ó grande rico Reino Lusitano, em tam pequeno espaço hoje tam pobre, para que foi tal bem, para tal dano?»


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Elegia’, poema de tonalidade melancólica (...), a que os poetas renascentistas adaptaram a composição em tercetos. In António José Saraiva, Literatura Portuguesa, Lisboa, 1966.

A, elegia é uma composição lírica, inspirada num assunto triste; os seus criadores foram os poetas latinos Tíbulo e Propércio. Na elegia, empregava-se a terça rima ou terza rima, designação atribuída ao esquema rimático que indica simultaneamente a estância, terceto, e a correspondência da rima (ABA-BCB-CDC-DED...). Geralmente o verso usado é o decassílabo heróico, acentuado na 6.ª e na 10.ª sílabas. A terza rima é uma criação de Dante; por isso é frequente a denominação de ‘terceto dantesco’.

À morte do Príncipe Dom João
O Príncipe Dom João de Portugal
é morto! Ouça-o a grande natureza
que no-lo dera em mostras d’imortal.

Como pôde cair tanta grandeza,
como puderam os pecados tanto,
que alcança a perda a toda a redondeza?

Eu digo os nossos, que no peito santo
nunca pecado entrou, nunca entrou erro
bem se vê da sua glória e nosso pranto.

Nesta, terra já não, antes desterro,
dai lágrimas sem fim ao mal infindo,
idade pouco há d’ouro, hoje de ferro.

Que mais vos pede a tea, que, em se urdindo,
cartada foi? Debuxo e obra tam prima
num só momento tudo à terra é vindo.

Ah! que das cousas de tamanha estima
não somos dignos! Mostram-se somente,
para subir por elas ao de cima.

Seus olhos alevanta então a gente
ao Céu co aquele espanto, ergue o sentido,
e cuida no porvir, deixa o presente.

NOTA: Com a morte do Príncipe, a felicidade desapareceu da Terra, tal como aconteceu no fim da Idade de Ouro. Ao mito da ‘Idade de Ouro’, sucedem-se outras ‘Idades’, que simbolizavam, para os Romanos, a corrupção e degradação progressivas da humanidade: a da ‘prata’, do ‘bronze’ e do ‘ferro’.

Aquele real corpo bem nascido,
entendimento muito mais que humano
subitamente desaparecido!

Ó grande rico Reino Lusitano,
em tam pequeno espaço hoje tam pobre,
para que foi tal bem, para tal dano?

Vãmente os olhos buscam aquela nobre,
aquela só real mostra em verdade,
que escuríssima nuvem no-la encobre.

Tudo é cheo de dor e de saudade,
tudo de confusão, tudo é patranha,
e tudo o que cá vemos é vaidade.

A nossa grande e rica sorte estranha,
tal enveja te fez o fado duro!
Nossa não só, mas de toda esta Espanha.

A quem contra infiéis fora alto muro.
Ora envolveram-se as fontes e águas claras,
seja na terra tudo triste e escuro.

[…]
Cruel fado, por certo, que mudaste
üa tal claridade em noite escura,
porque contra nós tanto te assanhaste?

Aquela mais perfeita criatura
que nunca entre nós houve - ah! grave dor!
meteste-a em üa negra sepultura.

[…]
Assi me queixava eu, quando do Céu
me senti reprender, qual Job jazendo
com grave dor; mas dor mor me venceu.

De cima um ar singelo ir-se movendo
ouvi claro dizer: Ora que queres,
queixumes vãos vãmente ao ar perdendo?

Aquele entre os nascidos das mulheres,
príncipe santo, foi-se a seu lugar,
vossos nadas deixou, foi-se aos prazeres.

Vós lá debaixo que podeis julgar,
neste vale de lágrimas e dores,
onde o mais que sabeis é só chorar?
[…]

In Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária. Época Clássica. Século XVI, Elegias, Editora Ulisseia,  Lisboa, 1988.

Cortesia de E. Ulisseia/JDACT