«Diletante do espírito da estética, embebi-me da poética harmonias
naquele painel que ali me inebriava. Louvado Deus, que criou tanta beleza! Ali,
naquela leda paz de ideias e de sensações, eu me considerava, também, um ancião
da eternidade, sem manhãs nem tardes. Mas, naquele dia enevoado e macio, a
convidar às voluptuosidades da alma quente e fermentada que é a minha, quando
os desejos se me tumultuavam uns sobre os outros, eu, enrodilhado em
filosofias, deixei-me reclinar naqueles requebros de suma e extasiada mansidão.
Era um daqueles momentos em que a harpa me era melodiosa e em que podia
cantar, afinado, o cântico da manhã e da tarde. Não há exercício de escrita que
ao sabor de qualquer trote rimado transporte o perfume daquela divina
cenografia, ou que evidencie, com fidelidade, aqueles suaves enleios e a doçura
daquela aragem. Que manjar extra-celeste! Gritei...
E, num gesto interpelante à vida, em meditativa imobilidade, em arreigada
e acerada prece, agradeci a Deus o destino amoroso que me tinha reservado e o
prazer de participar, agora, na mesa dos contentes, nas festas dos alegres na
vida.
Jesus, que permaneça a alegria! - citei o salmo bíblico.
Estremunhado daquele sono vivo, serenado, continuei na franciscana via
de singelezas, entoando loas ao Santo de Assis, o inventor de um sentimento
medieval de natureza, patrono ecológico da Humanidade, gestor dos mais íntimos
equilíbrios ambientais, na sua montanha da Umbria.
E, misturando várias tintas ao mesmo tempo, lembrei Dante: ‘...cedo
se verá a colheita do mau cultivo, quando o joio lamente achar a arca fechada’.
Como deve ser fecunda e fértil a força do pensamento e de todas as suas
formas de expressão, na religião, na literatura, na arte!
À maneira dos cavaleiros da Távola Redonda ou de atleta de Deus ou como
filho do 'Graal', imaginei-me a escudar todas as muralhas, para a defesa de
todos os códigos de cortesias e de elegâncias, contra qualquer dúvida moral,
tentando desmontar qualquer desvio ou entorse da história.
Teologando assim comigo, voltei à conversa com o escudeiro, deslumbrado
ele também naquela linda serra, que os queirosianos querem que seja a do Zé
Fernandes e do Jacinto e a que Pedro V baptizou de Sintra do Alentejo. Compreendi
então ali o dedo do mesmo grande Arquitecto, a ordenar o universo, por via do
compasso e do esquadro, a burilar a pedra dura para levantar colunas
rosacrucianas naquele vale, ali naquele hermético arvoredo de densidades e de
espiritualidades, tendo em vista a força, a sabedoria e a beleza.
Olhe ali à esquerda, disse-me ele, em cima do monte, é lá que se
esconde um enorme lençol de água saborosa e medicamentosa, que todo o Portugal
conhece. Só então percebi que estava a chegar a outro território pátrio,
digladiador e disfrutador de outros protagonismos, com outras pendências
locais, sempre em refrega, ontem como hoje, com o ponto de partida desta viagem,
mas sem a casta nobre e grandiosa da minha predestinada terra, que me titulou
de poderes institucionais e afectivos.
Tínhamos chegado a Castelo de Vide.
Vê lá, no alto, aquela capelinha votiva, caiada de branco, com o seu
miradouro de arrabalde? É Nossa Senhora da Penha, a contemplar, ao longe, Marvão,
e a olhar, aqui mais para perto, para esta Vila, que lhe fica subalterna, e
reverente se deita, de rendida, à sua padroeira, a quem oferece anualmente as
suas gaudientes libações, rezando-lhe sempre fervidamente. Àquele ancoradouro
alto vão os forasteiros e os que da vida têm subida nota, tomados da oferta
generosa dos panoramas mais perfeitos e acabados». In Aníbal Belo, Carta de
Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT