terça-feira, 25 de setembro de 2012

Feliciano Falcão. Memória Viva. Fernando Martinho. I. «Não resisto à tentação de, aqui, transcrever o “Soneto do Desmantelo Azul”, que se tornou, para mim um poema de culto, que, ao longo dos anos, fomos recitando a todos os amigos amantes de poesia que nos visitavam»



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Memória de Feliciano Falcão
«Tenho, entre os meus livros de autores brasileiros, um que especialmente prezo. E, no entanto, o seu autor não se encontra propriamente entre os de minha mais assídua frequentação, como os poetas Manuel Bandeira, Carlos Drummond Andrade ou João Cabral Neto. É que o livro em questão, Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado, me foi oferecido por um amigo muito querido, e tem inscrita numa das suas primeiras páginas uma dedicatória que me traz de volta todo um período de descoberta e exaltação da minha vida e a marca que nela, então, deixou, a figura que hoje estamos aqui a homenagear. Eis as palavras que Feliciano Falcão inscreveu à entrada do livro de Jorge Amado de que tão generosamente me fazia oferta:
  • ‘A Fernando Martinho, à sua juventude [...], para que se maravilhe como eu, quase com a sua idade, me maravilhei com Jubiabá e os Capitães da Areia... A dedicatória está datada de ‘Portalegre,30/10/1961’.
Tinha 23 anos, e uma das duas histórias da Bahia que constituíam o volume a tal ponto me deixou maravilhado que, trinta e poucos anos depois, quando me convidaram para colaborar num número de homenagem de uma revista italiana a Jorge Amado, foi sobre ‘A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua’ que, deliciadamente,escrevi (Quaderni lbero-Americani [Omaggio a Jorge Amado], n.º 74, Dezembro de 1993).
Não é, porém, desse escrito sobre a incrível história de Quincas e do lugar que nela ocupam o grotesco e o carnavalesco que quero, agora, falar. Retenho, sim, a homenagem que, então, decidi prestar a Feliciano Falcão, fazendo anteceder o meu texto da seguinte epígrafe:
  • À memória do meu saudoso amigo Feliciano Falcão, grande admirador de Jorge Amado, que em 1961 me ofereceu Os Velhos Marinheiros.
Pouco era, com certeza, mas assim deixava, de alguma forma, associada a esse escrito a memória de alguém que muito me marcara e a quem devia uma daquelas amizades, puras e limpas, que dão sentido à vida. (Releio, agora, a dedicatória do próprio Jorge Amado impressa no limiar do seu livro e constato com espanto que entre os seus dedicatários está um poeta brasileiro, Carlos Pena Filho, pouco antes falecido e de cuja poesia muito recentemente tomara conhecimento através de uma antologia organizada por Alberto Costa Silva, sob os auspícios do Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil em Lisboa, A Nova Poesia Brasileira. Não resisto à tentação de, aqui, transcrever o “Soneto do Desmantelo Azul”, de Carlos Pena Filho, que se tornou, para mim e para a Joana, um poema de culto, que, ao longo dos anos, fomos recitando a todos os amigos amantes de poesia que nos visitavam:

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramámos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembrámos
que no excesso que havia em nosso espaço
 pudesse haver de azul também cansaço.

E perdido de azul nos contemplámos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Também a Feliciano Falcão o demos a ouvir de uma vez que, com a Zélia, em Évora nos visitou. No sul ou no azul onde agora está certamente o lerá com vertiginoso agrado.
Em Outubro de 1961 andava eu absorvido com a redacção da tese de licenciatura. William Hazlitt ocupava-me, então, inteiramente as manhãs. Ao fim da tarde tinha um grupo de explicandos de Alemão. E à noite, no Facha, havia a roda de amigos. Régio, Feliciano Falcão eram presenças frequentes na tertúlia, que as autoridades olhavam com suspeição. Não me lembro exactamente quando, se ainda nos últimos meses desse ano, se já no decurso de 1962, começámos a reunir-nos, alguns do grupo do Facha, no escritório de António Teixeira e Ernesto de Oliveira. O pretexto para essas reuniões foram umas inocentes lições de Inglês, que estavam a meu cargo. Para além dos dois anfitriões, de um simpático juiz que apareceu duas ou três vezes, a turma, com diferentes graus de diligência, incluía o Ventura Reis, muito britânico no sentido de humor, no gosto pelo laço e nos casacos de linho no Verão, Feliciano Falcão, aplicadíssimo na preparação das lições, Manuel Dias Fonseca, musicólogo e professor de Física e Química no Liceu, Florindo Madeira, José Bizarro, e, uma vez por outra, Régio e António José Forte, com o cómodo estatuto de ouvintes. O Inglês não era efectivamente mais do que um saudável pretexto, e, ao fim de meia hora, pouco mais, podíamos fechar tranquilamente o manual, creio que da Longmans. Vinha, depois, o que nos interessava: as conversas sobre isto e aquilo, as audições de peças musicais, as leituras de textos. Dias Fonseca levava  consigo um daqueles pesadíssimos gravadores que então se usavam e era tudo menos complacente no que nos dava a ouvir: música de vanguarda, muito em sintonia com o que era o seu gosto exigentíssimo de connaisseur». 
In Feliciano Falcão, Memória Viva, Coordenação de António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT