Memória de Feliciano Falcão
«Tenho, entre os meus livros de
autores brasileiros, um que especialmente prezo. E, no entanto, o seu autor não
se encontra propriamente entre os de minha mais assídua frequentação, como os
poetas Manuel Bandeira, Carlos Drummond Andrade ou João Cabral Neto. É que o
livro em questão, Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado, me foi oferecido por um amigo muito
querido, e tem inscrita numa das suas primeiras páginas uma dedicatória que me
traz de volta todo um período de descoberta e exaltação da minha vida e a marca
que nela, então, deixou, a figura que hoje estamos aqui a homenagear. Eis as
palavras que Feliciano Falcão inscreveu à entrada do livro de Jorge Amado de
que tão generosamente me fazia oferta:
- ‘A Fernando Martinho, à sua juventude [...], para que se maravilhe como eu, quase com a sua idade, me maravilhei com Jubiabá e os Capitães da Areia... A dedicatória está datada de ‘Portalegre,30/10/1961’.
Tinha 23 anos, e uma das duas
histórias da Bahia que constituíam o volume a tal ponto me deixou maravilhado
que, trinta e poucos anos depois, quando me convidaram para colaborar num
número de homenagem de uma revista italiana a Jorge Amado, foi sobre ‘A Morte
e a Morte de Quincas Berro Dágua’ que, deliciadamente,escrevi (Quaderni
lbero-Americani [Omaggio a Jorge Amado], n.º 74, Dezembro de 1993).
Não é, porém, desse escrito sobre
a incrível história de Quincas e do lugar que nela ocupam o grotesco e o
carnavalesco que quero, agora, falar. Retenho, sim, a homenagem que, então, decidi
prestar a Feliciano Falcão, fazendo anteceder o meu texto da seguinte
epígrafe:
- À memória do meu saudoso amigo Feliciano Falcão, grande admirador de Jorge Amado, que em 1961 me ofereceu Os Velhos Marinheiros.
Pouco era, com certeza, mas assim deixava,
de alguma forma, associada a esse escrito a memória de alguém que muito me
marcara e a quem devia uma daquelas amizades, puras e limpas, que dão sentido à
vida. (Releio, agora, a dedicatória do próprio Jorge Amado impressa no limiar
do seu livro e constato com espanto que entre os seus dedicatários está um
poeta brasileiro, Carlos Pena Filho, pouco antes falecido e de cuja poesia
muito recentemente tomara conhecimento através de uma antologia organizada por
Alberto Costa Silva, sob os auspícios do Escritório de Propaganda e Expansão
Comercial do Brasil em Lisboa, A Nova
Poesia Brasileira. Não resisto à tentação de, aqui, transcrever o “Soneto do Desmantelo Azul”, de Carlos
Pena Filho, que se tornou, para mim e para a Joana, um poema de culto, que, ao
longo dos anos, fomos recitando a todos os amigos amantes de poesia que nos
visitavam:
Então, pintei de azul os meus
sapatos
por não poder de azul pintar as
ruas,
depois, vesti meus gestos
insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul
ausente
e aprisionar no azul as coisas
gratas,
enfim, nós derramámos simplesmente
azul sobre os vestidos e as
gravatas.
E afogados em nós, nem nos
lembrámos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdido de azul nos contemplámos
e vimos que entre nós nascia um
sul
vertiginosamente azul. Azul.
Também a Feliciano Falcão o demos
a ouvir de uma vez que, com a Zélia, em Évora nos visitou. No sul ou no azul
onde agora está certamente o lerá com vertiginoso
agrado.
Em Outubro de 1961 andava eu
absorvido com a redacção da tese de licenciatura. William Hazlitt ocupava-me,
então, inteiramente as manhãs. Ao fim da tarde tinha um grupo de explicandos de
Alemão. E à noite, no Facha, havia a roda de amigos. Régio, Feliciano
Falcão eram presenças frequentes na tertúlia, que as autoridades
olhavam com suspeição. Não me lembro exactamente quando, se ainda nos últimos
meses desse ano, se já no decurso de 1962, começámos a reunir-nos, alguns do
grupo do Facha, no escritório de António Teixeira e Ernesto de Oliveira. O pretexto
para essas reuniões foram umas inocentes lições de Inglês, que estavam a meu
cargo. Para além dos dois anfitriões, de um simpático juiz que apareceu duas ou
três vezes, a turma, com diferentes graus de diligência, incluía o Ventura
Reis, muito britânico no sentido de humor, no gosto pelo laço e nos casacos de linho
no Verão, Feliciano Falcão, aplicadíssimo na preparação das lições,
Manuel Dias Fonseca, musicólogo e professor de Física e Química no Liceu,
Florindo Madeira, José Bizarro, e, uma vez por outra, Régio e António José
Forte, com o cómodo estatuto de ouvintes. O Inglês não era efectivamente mais
do que um saudável pretexto, e, ao fim de meia hora, pouco mais, podíamos
fechar tranquilamente o manual, creio que da Longmans. Vinha, depois, o que nos
interessava: as conversas sobre isto e aquilo, as audições de peças musicais,
as leituras de textos. Dias Fonseca levava consigo um daqueles pesadíssimos gravadores
que então se usavam e era tudo menos complacente no que nos dava a ouvir: música
de vanguarda, muito em sintonia com o que era o seu gosto exigentíssimo de connaisseur».
In
Feliciano Falcão, Memória Viva, Coordenação de António Ventura, Edições
Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT