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«É dificil ainda qualificar o género burlesco, o género cómico
cultivado por excelência no século XVII, dentro das denominações frequentemente
usadas de literaturu erudita ou de
literatura vulgar. As composições que
conhecemos, são na sua maioria de homens cultos, letrados, muitos deles
religiosos. É o caso de frei Lucas de Santa Catarina. São muitas delas
composições com alusões a um património cultural de erudição livresca e clássica,
com o uso dum amplo vocabulário que nem todo é corrente na linguagem habitual.
Está, aliás, por estudar esse vocabulário, que nos dará importantes
conhecimentos sobre a época, e sobre o qual os dicionários coevos são de pouca
ajuda. Há nesta poesia burlesca um misto de cultura tradicional, e de criação
pessoal e autóctone duma visão original e pertinente para a época.
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Está patente nestas composições uma atitude de ironia, de sátira, de
não conformismo. A profunda irreverência com que temas sagrados, tanto religiosos
como sociais, são tratados, traduz uma atitude iconoclasta que se estava longe de
pressentir na poesia cultista e conceptista do tempo. E aqui fica patente como,
até certa medida, foram logrados os esforços da cultura oficial de endoutrinar
ou mesmo de ‘instruir agradando’.
[…]
A crítica aos hábitos e costumes dos religiosos e religiosas é um dos
temas mais tratados, nomeadamente nas cartas freiráticas. A crítica que se aponta
aos freiráticos e às freiras não está, no seu conjunto, longe das conclusões a
que se chega lendo a carta aqui publicada de frei Lucas de Santa Catarina, ‘Em que persuade aos Freiráticos, que o não
sejão’. António Barbosa Bacelar, no soneto ‘Definição de uma Freira’, chega a conclusões idênticas. A freira é
descrita como ‘sanguessuga chupadora, persistente exploradora, bem como vário
camaleão na cor incerto, falsa e traidora, portanto, e de fraca retribuição
já que o ‘comísero amante, aranha triste’ é ‘tântalo, que não bebe e na água
assiste’. O tema do amor freirático é comum nos principais poetas da época que
o exploram de variadíssimos modos. Frei António das Chagas, num poema ‘Relação de um amigo a outro de uns c.....
que lhe pôs uma freira e fazendo pazes com ele lhos tornou a pôr, refere-se
explicitamente à homossexualidade nos conventos:
Vem a ser que a freirinha
se enamorou doutra freira,
mais que mancebo, cá fora,
quis, lá dentro, ter manceba.
Estas cartas traduzem, ao limite, o desleixo e a infidelidade que
reinava entre os membros das ordens religiosas que frei Lucas de Santa Catarina
satiriza no seu Sonho tão claro que se
fez dormindo.
A este tema estava, de certo modo, ligado o da sátira aos beatos e
beatas que apresentavam uma conduta exterior que em nada correspondia aos seus
sentimentos íntimos. A sua anuência às cerimónias religiosas, seus ritos e
costumes, apresenta-se como um pretexto, uma astúcia para prosseguir nos seus
fins sociais. As procissões, o Lausperene ou a missa eram lugares de encontro
em que cada um procurava definir a sua imagem e tentava projectar a sua
personalidade em relação ao meio social em que pretendia inserir-se. Eram
personalidades cheias de truques e astúcias que na sua artificialidade
caracterizavam também a cultura barroca. Dentro dos beatos poder-se-á incluir
tanto o faceira como a bandarra cuja religiosidade era parte integrante
da teatralidade do seu quotidiano». In Graça Almeida Rodrigues, Literatura e
Sociedade na Obra de Frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740), Lisboa, INCM, 1983.
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