quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Literatura e Sociedade em frei Lucas de Santa Catarina. Sátira. Graça Almeida Rodrigues. «Eram personalidades cheias de truques e astúcias que na sua artificialidade caracterizavam também a cultura barroca. Dentro dos beatos poder-se-á incluir tanto o faceira como a bandarra»


jdact e cortesia de INCM

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«É dificil ainda qualificar o género burlesco, o género cómico cultivado por excelência no século XVII, dentro das denominações frequentemente usadas de literaturu erudita ou de literatura vulgar. As composições que conhecemos, são na sua maioria de homens cultos, letrados, muitos deles religiosos. É o caso de frei Lucas de Santa Catarina. São muitas delas composições com alusões a um património cultural de erudição livresca e clássica, com o uso dum amplo vocabulário que nem todo é corrente na linguagem habitual. Está, aliás, por estudar esse vocabulário, que nos dará importantes conhecimentos sobre a época, e sobre o qual os dicionários coevos são de pouca ajuda. Há nesta poesia burlesca um misto de cultura tradicional, e de criação pessoal e autóctone duma visão original e pertinente para a época.
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Está patente nestas composições uma atitude de ironia, de sátira, de não conformismo. A profunda irreverência com que temas sagrados, tanto religiosos como sociais, são tratados, traduz uma atitude iconoclasta que se estava longe de pressentir na poesia cultista e conceptista do tempo. E aqui fica patente como, até certa medida, foram logrados os esforços da cultura oficial de endoutrinar ou mesmo de ‘instruir agradando’.
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A crítica aos hábitos e costumes dos religiosos e religiosas é um dos temas mais tratados, nomeadamente nas cartas freiráticas. A crítica que se aponta aos freiráticos e às freiras não está, no seu conjunto, longe das conclusões a que se chega lendo a carta aqui publicada de frei Lucas de Santa Catarina, ‘Em que persuade aos Freiráticos, que o não sejão’. António Barbosa Bacelar, no soneto ‘Definição de uma Freira’, chega a conclusões idênticas. A freira é descrita como ‘sanguessuga chupadora, persistente exploradora, bem como vário camaleão na cor incerto, falsa e traidora, portanto, e de fraca retribuição já que o ‘comísero amante, aranha triste’ é ‘tântalo, que não bebe e na água assiste’. O tema do amor freirático é comum nos principais poetas da época que o exploram de variadíssimos modos. Frei António das Chagas, num poema ‘Relação de um amigo a outro de uns c..... que lhe pôs uma freira e fazendo pazes com ele lhos tornou a pôr, refere-se explicitamente à homossexualidade nos conventos:

Vem a ser que a freirinha
se enamorou doutra freira,
mais que mancebo, cá fora,
quis, lá dentro, ter manceba.

Estas cartas traduzem, ao limite, o desleixo e a infidelidade que reinava entre os membros das ordens religiosas que frei Lucas de Santa Catarina satiriza no seu Sonho tão claro que se fez dormindo.
A este tema estava, de certo modo, ligado o da sátira aos beatos e beatas que apresentavam uma conduta exterior que em nada correspondia aos seus sentimentos íntimos. A sua anuência às cerimónias religiosas, seus ritos e costumes, apresenta-se como um pretexto, uma astúcia para prosseguir nos seus fins sociais. As procissões, o Lausperene ou a missa eram lugares de encontro em que cada um procurava definir a sua imagem e tentava projectar a sua personalidade em relação ao meio social em que pretendia inserir-se. Eram personalidades cheias de truques e astúcias que na sua artificialidade caracterizavam também a cultura barroca. Dentro dos beatos poder-se-á incluir tanto o faceira como a bandarra cuja religiosidade era parte integrante da teatralidade do seu quotidiano». In Graça Almeida Rodrigues, Literatura e Sociedade na Obra de Frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740), Lisboa, INCM, 1983.

Cortesia de INCM/JDACT