sábado, 15 de setembro de 2012

Para a História da Cultura em Portugal. António José Saraiva. A Evolução do Teatro de Garrett. «O texto ficou, mas o público para quem ele foi escrito, as intenções com que foi representado, as circunstâncias que lhe proporcionaram a ocasião própria, esses, desapareceram»


 Escultura de AntonioPereira
jdact

A Evolução do Teatro de Garrett
Os Temas e as Formas
«A história do teatro português lembra um descampado liso donde saem solitários dois grandes penedos: Gil Vicente e Garrett. É uma história que se resume em dois nomes. Ora, uma configuração tão anónima, um contraste tão raro, atrai as atenções. Aqueles que estão à superfície e que só vêm os dois penedos, que parecem postos ali por um gigante caprichoso, param e pasmam sem saber explicar tal maravilha que, por ser pouco vulgar, lhes parece um milagre. Outros, que não simpatizam com esta palavra ‘milagre’, preferem imaginar que certo gigante chamado ‘Génio Dramático’ mora algures, deixando lembranças da sua passagem por várias terras; que esse gigante não aprecia as margens do Tejo e só nos visitou apressadamente e de má vontade essas duas vezes que estão perpetuadas naqueles dois penedos singulares.
Estas duas explicações, a do milagre e a do gigante, revelam uma mentalidade para quem o mundo é uma coisa mágica e caprichosa, povoada por génios disto e daquilo, perturbada por milagres e maravilhas. Se queremos explicar a sério alguma coisa, temos de ir para além deste círculo de relações mágicas e procurar leis em vez de gigantes.
É claro que, se olharmos só para a planície e para os penedos, nada conseguiremos perceber. Apenas conseguiremos pasmar. Mas nós temos de olhar para debaixo da terra, para aquilo que não é planície nem penedo, para a estrutura do subsolo, e estabelecer relações entre esta estrutura oculta e a configuração aparente da paisagem que se nos oferece. Talvez então possamos deixar sossegado o bom gigante e recolher do cesto dos papéis mais este ‘milagre’.
A paisagem aparente, a superfície visível, é a literatura, isto é, os textos que nos são dados ler. Se quisermos explicar a literatura tal como se nos oferece à contemplação, temos de descer mais fundo que os textos, à estrutura social, de que eles são o produto. O texto de teatro, particularmente, é apenas o vestígio muito ténue de uma coisa bem mais complexa e bem mais intensa e resultante da conjugação de múltiplos factores. O texto ficou, mas o público para quem ele foi escrito, as intenções com que foi representado, as circunstâncias que lhe proporcionaram a ocasião própria, esses, desapareceram; e, deste público que vibrou e pateou, dos ideais a que ele aderiu, das circunstâncias a que ele abriu caminho, dessa chama brilhante que é a vida momentânea de uma obra teatral, só nos ficou esse resto carbonizado que é o texto. O texto só será, portanto, convenientemente entendido e explicado na medida em que tomarmos em consideração este conjunto de factores que lhe deram vida. A obra literária conserva-nos a memória de um certo momento da vida colectiva e só é inteligível na medida em que nos ajuda a reconstituir, na sua complexidade e na sua riqueza múltipla, esse momento de vida. Considerada isoladamente, no seu valor intrínseco, não é mais do que um tição ardido de que nada compreendemos e que nada nos deixa compreender.
Ora, um destes múltiplos factores sem os quais é impossível compreender a criação literária é o público. E não é só um dos factores, é um factor decisivo, que entra com um coeficiente elevadíssimo no conjunto da equação. Os nossos investigadores literários têm-se preocupado até hoje quase exclusivamente com o autor e as particularidades da sua vida. Esquecem que o grande escritor é aquele que o público salvou do esquecimento; que se um escritor chega a ser grande não é só porque o quis, mas porque um público o aceitou. Enquanto não se fizer, paralelamente à história do escritor, uma história do público, não teremos uma verdadeira história da literatura. A história da literatura é a história daquilo que o público lê ou leu». In António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, A Evolução do Teatro de Garrett, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-460-6.

Cortesia de Gradiva/JDACT