A Evolução do Teatro de Garrett
Os Temas e as Formas
«A história do teatro português lembra um descampado liso donde saem
solitários dois grandes penedos: Gil Vicente e Garrett. É uma história que se
resume em dois nomes. Ora, uma configuração tão anónima, um contraste tão raro,
atrai as atenções. Aqueles que estão à superfície e que só vêm os dois penedos,
que parecem postos ali por um gigante caprichoso, param e pasmam sem saber
explicar tal maravilha que, por ser pouco vulgar, lhes parece um milagre. Outros,
que não simpatizam com esta palavra ‘milagre’, preferem imaginar que certo
gigante chamado ‘Génio Dramático’ mora algures, deixando lembranças da sua
passagem por várias terras; que esse gigante não aprecia as margens do Tejo e
só nos visitou apressadamente e de má vontade essas duas vezes que estão
perpetuadas naqueles dois penedos singulares.
Estas duas explicações, a do milagre e a do gigante, revelam uma mentalidade
para quem o mundo é uma coisa mágica e caprichosa, povoada por génios disto e daquilo,
perturbada por milagres e maravilhas. Se queremos explicar a sério alguma
coisa, temos de ir para além deste círculo de relações mágicas e procurar leis
em vez de gigantes.
É claro que, se olharmos só para a planície e para os penedos, nada
conseguiremos perceber. Apenas conseguiremos pasmar. Mas nós temos de olhar
para debaixo da terra, para aquilo que não é planície nem penedo, para a
estrutura do subsolo, e estabelecer relações entre esta estrutura oculta e a
configuração aparente da paisagem que se nos oferece. Talvez então possamos
deixar sossegado o bom gigante e recolher do cesto dos papéis mais este ‘milagre’.
A paisagem aparente, a superfície visível, é a literatura, isto é, os
textos que nos são dados ler. Se quisermos explicar a literatura tal como se
nos oferece à contemplação, temos de descer mais fundo que os textos, à estrutura
social, de que eles são o produto. O texto de teatro, particularmente, é apenas
o vestígio muito ténue de uma coisa bem mais complexa e bem mais intensa e
resultante da conjugação de múltiplos factores. O texto ficou, mas o público
para quem ele foi escrito, as intenções com que foi representado, as
circunstâncias que lhe proporcionaram a ocasião própria, esses, desapareceram;
e, deste público que vibrou e pateou, dos ideais a que ele aderiu, das
circunstâncias a que ele abriu caminho, dessa chama brilhante que é a vida
momentânea de uma obra teatral, só nos ficou esse resto carbonizado que é o
texto. O texto só será, portanto, convenientemente entendido e explicado na
medida em que tomarmos em consideração este conjunto de factores que lhe deram
vida. A obra literária conserva-nos a memória de um certo momento da vida
colectiva e só é inteligível na medida em que nos ajuda a reconstituir, na sua
complexidade e na sua riqueza múltipla, esse momento de vida. Considerada
isoladamente, no seu valor intrínseco, não é mais do que um tição ardido de que
nada compreendemos e que nada nos deixa compreender.
Ora, um destes múltiplos factores sem os quais é impossível compreender
a criação literária é o público. E não é só um dos factores, é um factor decisivo,
que entra com um coeficiente elevadíssimo no conjunto da equação. Os nossos
investigadores literários têm-se preocupado até hoje quase exclusivamente com o
autor e as particularidades da sua vida. Esquecem que o grande escritor é
aquele que o público salvou do esquecimento; que se um escritor chega a ser
grande não é só porque o quis, mas porque um público o aceitou. Enquanto não se
fizer, paralelamente à história do escritor, uma história do público, não teremos
uma verdadeira história da literatura. A história da literatura é a história
daquilo que o público lê ou leu». In António José Saraiva, Para a História
da Cultura em Portugal, A Evolução do Teatro de Garrett, Gradiva Publicações,
Lisboa, 1996, ISBN 972-662-460-6.
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