«Tanto o ciclo arturiano, como o do amor cortês, como os decadentes
cantares de gesta, são objecto de paródia, numa vasta literatura satírica, como
os Fabliaux e as séries do Romon de Renart. A França do Norte é um
dos polos desta literatura anticavaleiresca e anti-romântica. O Roman de la Rose (l.ª parte, 1225-37)
exprime uma atitude satírica perante a literatura trovadoresca do amor.
O interesse de alguns dos companheiros portugueses do conde de Bolonha
pela literatura francesa está documentado: Afonso Lopes de Baião, que o apoiará
na guerra civil, é autor de uma paródia da Chanson
de Roland. Fernão Garcia Esgaravunha, outro amigo do rei, introduziu num
dos seus cantares de amor um refrão em francês ou provençal:
Ar sachaz veroyamen
que ie[u] soy vo[s]tr'ome lige.
Ao voltar para Portugal, Afonso não trouxe a sua esposa francesa,
Matilde, e, sendo ela ainda viva, contraiu casamento com D. Brites, filha
bastarda de Afonso X, o Sábio, de Castela e Leão. O genro era dez anos mais
velho que o sogro e a desposada, uma criança, teve de aguardar a idade núbil em
poder do marido. Isto mostra como Afonso III optou pela cultura hispânica e
entrou na órbita do seu principal fautor, Afonso X.
Afonso X, o Sábio, presidia à corte literária talvez mais brilhante da
Europa. Poetas, juristas, músicos, astrólogos, cronistas e tradutores árabes e
judeus contam-se entre os seus colaboradores. Preciosos códices iluminados, como
o das Cantigas de Santa Maria, saíram
das suas oficinas de copistas. A Primeira
Crónica General, a General e Grand
Estoria, os livros das Sete Partidas,
enciclopédia jurídica, os Libros del
Saber de Astronomía, o Libro de Ajedrez,
mostram a incessante actividade intelectual deste rei, que é o mais esplêndido exemplo
conhecido de soberano letrado.
A corte portuguesa acompanha de longe este movimento. Conhecemos um
regimento da Casa Real portuguesa decretado por Afonso III em 1250. Se o interpretarmos
à letra, a corte do rei de Portugal era muito pobre. Proíbe-se o luxo no
vestuário, os forros e as guarnições. Há só um alfaiate e três lavadeiras para
o pessoal da corte. Um só monteiro e quatro falcoeiros para a caça. Apenas são admitidos
três jograis permanentes e são proibidas as jogralesas, salvo as que vierem de
passagem, que não podem demorar mais de três dias. Não se fala de escribas nem
de copistas. Esta lei foi evidentemente escrita numa intenção demagógica, para
agradar aos ‘povos’, sempre desconfiados contra os gastos da corte, e retrata provavelmente
o modelo das anteriores cortes afonsinas, dos reis guerreiros e avaros, que
acumulavam ouro, como Sancho I. Mas a prova de que o regimento não passava de
um farrapo de papel é que, quando o rei pôs casa ao seu herdeiro, Dinis, lhe
atribuiu 40 000 libras por ano, importância que Lúcio Azevedo avaliava em 4 000
e tantos contos de 1929.
Tudo indica que é desta época o luxuoso códice iluminado do Cancioneiro da Ajuda, onde se recolheram
os cantares dos poetas contemporâneos de Afonso III e anteriores. Está
caligrafado em minúsculo gótico francês, ilustrado com iluminuras que
representam espectáculos jogralescos dentro de um enquadramento do primeiro gótico.
O modelo desta obra é o volume das Cantigas
de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, e não seria de admirar que fosse
fabricado na oficina caligráfica deste rei.
Da mesma época é o códice das Flores
de Direito, compêndio de direito processual, traduzido do castelhano,
importante para a história do direito português, porque marca um progresso
assinalável na introdução e aplicação em Portugal do direito romano, pelo qual
esta obra está largamente informada, e também orienta o Fuero Real, igualmente traduzido em português pela mesma época e
que é um tratado de normas gerais de direito político.
NOTA: Herculano mostrou que o códice é anterior a 1282 porque tem,
intercalada, uma lei do rei Dinis I desta data. O original castelhano é
posterior a 1235. Ver introdução e texto de Paulo Merea publicados na Revista do Universidade de Coimbra,
vols. V e VI. Publicado por Alfredo Pimenta, Fuero Real, Versõo Portuguesa do Século XIII, com muitas notas. As
notas filológicas de Pimenta devem ser lidas com cautela.
Foi nesta corte, e também na de Afonso X, que se criou o rei Dinis, colaborador
dos cancioneiros, um dos nossos melhores poetas de todos os tempos, mecenas e
protector da Universidade». In António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade
Média em Portugal, Gradiva Publicações, Lisboa, 1998, ISBN 972-662-157-7.
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