«Não há neste contexto uma estimativa exacta do que se lia. Mas pelo
enorme conjunto de romances que nos foi dado reunir, pelas colecções que
consultámos não nos foi difícil perscrutar os autores mais populares.
Influências francesas: eis um primeiro aspecto adquirido. As leituras, os
hábitos, os modos da burguesa lisboeta eram ditados por Paris.
Num segundo ponto houve que inserir a mulher em contextos muito
específicos. A educação dessa mulher burguesa, desde a puberdade até ao
casamento; do intricado e complexo processo do namoro até ao casamento.
Mas havia situações que nesses inícios do século XX contextuavam a
mulher de modo diferente: aí encontramos as primícias do feminismo em Portugal,
brandos costumes, brandas reivindicações.
Também nos contextos, mas marginal, existia a mulher que se divorciava,
a adúltera, a prostituta e a artista de cabaret ou revista. Essa marginalidade
era bem diferente caso fosse uma divorciada ou uma prostituta. Mas a sociedade
condenava sob diversos graus toda e qualquer mulher que se não regesse pelas
normas comuns. A emancipada era igualmente um caso para condenação. Usualmente
recusava-se a casar e pretendia livremente escolher o seu trajecto
profissional.
Estas as personagens que intervêm no palco desta obra, desde a burguesa
bem firmada a um status, casada, mãe
de filhos. Esta a personagem privilegiada. Até as ‘outras’. As divorciadas,
emancipadas, artistas, intelectuais e feministas.
A mulher burguesa tinha um determinado gosto estético. Haveria que
encontrá-lo, percepcioná-lo. Na moda, na publicidade que nesses primeiros anos
do século começa a despontar com uma força inesperada, até ao cinema.
A moda é a grande fixação da burguesa. A ida à modista era um trajecto
obrigatório nesses passeios ao Chiado que, também eles, eram obrigatórios.
Mas através da publicidade captam-se as preocupações dessa mulher, já
entrada nos trinta e nos quarenta e com problemas cosméticos ou de linha
estética. Afinal, problemas comuns à mulher de hoje mas com um grau de
formulação bem diferente. O cinema era o outro lado, a América, o novo mundo, o
sonho.
Mas e o corpo? Esse corpo que seduzia e que paria. O corpo e a sua
linguagem erótica. Que erotismo possível nesses anos? Quais os tabus e as transgressões?
Tudo era tabu, numa sociedade moralista e moralizante como era particularmente
a portuguesa nesse entrecho. Mas a sexualidade existia e será importante
apreender esse aspecto mais difícil de captação dos comportamentos femininos. E
a higiene? Os hábitos de higienização também partilham do modo como se tratava
o corpo. Dai a inserção de um capítulo específico.
A mulher que à sua maneira procurou fugir do efémero de uma vida
ritualizante, de um quotidiano monótono. Era a artista do teatro declamado. Era
a pintora, a escultora, a poetisa, a escritora. A advogada. A intelectual, em suma.
Usualmente pertencia a estratos sociais elevados que permitiam que os estudos
superiores ou a especialização fosse feita em Paris, a capital dos sonhos.
Detivemo-nos sobretudo em Florbela Espanca, o grande nome deste
trajecto que nos conduziu de 1890 a 1930. Mas não nos esquecemos de muitas
outras. A mulher inicia com o século XX um percurso de cumplicidades com universos
com os quais nunca tinha partilhado. Desde o poder político, às profissões
liberais, desde o estatuto de emancipada (de pais e maridos) até a intelectual,
há um caminho mais permissivo que se inicia». In Cecília Barreira, História das
Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção
Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.
Cortesia de E. Colibri/JDACT