terça-feira, 4 de setembro de 2012

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XVIII. Ceuta. «Sempre a Razão vencida foi de Amor; mas, porque assi o pedia o coração, quis Amor ser vencido da Razão. Ora que caso pode haver maior? Novo modo de morte e nova dor! Estranheza de grande admiração! Pois emfim seu vigor perde a affeição, porque não perca a pena seu vigor»



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Vejamos a luta que se travou na alma do amargurado poeta.

Já é tempo, já, que minha confiança
se desça de uma falsa opinião;
mas Amor não se rege por razão.
Não posso perder, logo, a esperança.

A vida si, que uma áspera mudança
não deixa viver tanto um coração,
e eu só na morte tenho a salvação.
Si; mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah dura lei do Amor, que não consente
quietação numa alma, que é captiva!

Se hei de viver emfim forçadamente,
para que quero a gloria fugitiva
de uma esperança vã que me atormente?
(Soneto 49)

Esta canção, escrita em Ceuta, fecha assim:

Canção, não mais; que já não sei que diga.
Mas, porque a dor me seja menos forte,
diga o pregão a causa desta morte.

Mas eram tão profundas as raízes que essa esperança tinha lançado no pobre coração do poeta! Não era melhor sofrer?

Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconcerta.

Assi de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido intendimento,
que mostra ser engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa própria imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo d’um certo modo ser presente.

Ditosa é logo a pena que padeço,
pois que da causa della em mi se sente
Um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
(Soneto 146)

Lembranças saudosas, se cuidais
de me acabar a vida neste estado,
não vivo com meu mal tão enganado,
que não espere delle muito mais.

De longo tempo já me costumais
a viver de algum bem desesperado;
já tenho co a Fortuna concertado
de soffrer os tormentos que me dais.

Atada ao remo tenho a paciência,
para quantos desgostos der a vida.
Cuide quanto quiser o pensamento;

que, pois não posso ter mais resistência
para tão dura queda, de subida,
aparar-lhe-ei debaixo o soffrimento.
(Soneto 52)

Por fim, não houve remédio senão ceder. A Razão ficou vitoriosa do Amor. Não quer isto dizer que o poeta nunca mais tomasse a pensar na infanta. Desistiu de vez, é verdade, da sua louca pretensão, mas a imagem querida permaneceu-lhe na alma até á morte.

Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos!
Pois todos vão fazer seus fundamentos
só no mesmo em que está seu próprio dano.

Na incerta vida estribam de um humano;
dão credito a palavras, que são ventos,
choram despois as horas e os momentos,
que riram com mais gosto em todo o anno.

Não haja em apparencias confianças;
entendei que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquellas esperanças
que duram para sempre com o amado.
(Soneto 232)

  
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
mas, porque assi o pedia o coração,
quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior?

Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração!
Pois emfim seu vigor perde a affeição,
porque não perca a pena seu vigor.

Fraqueza, nunca a houve no querer,
mas antes muito mais se esforça assim
um contrario com outro, por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence em fim,
não creio que é Razão, mas deve ser
inclinação, que eu tenho contra mim.
(Soneto 149)

Foi o coração que pediu ao Amor se deixasse vencer da Razão. Isto é, foi por amor à infanta que o poeta deixou de a amar. E o poeta, forçado a renunciar aos seus altos pensamentos, começou a lembrar-se outra vez da menina dos olhos verdes, daquela cujo claro gesto via impresso na sua alma:

(Se) comnosco também se achara aquella
cuja lembrança e cujo claro gesto
na alma somente vejo, porque nella
está em essência puro e manifesto…
(Epistola 1ª, XXVI, 1-4)

Com que saudades se não recordaria ele agora dos despreocupados tempos em que namorava a gentil menina!
Como lhe não acudiriam à memória aqueles deliciosos versos com que, fingindo uma paixão que não tinha, procurava cativar um coração só aparentemente esquivo! (155)
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT