Lanterna Mágica, 1875, a 1ª aparição do Zé Povinho, Rafael Bordalo
Pinheiro
jdact
«Inventada por Rafael Bordalo Pinheiro, a figura do ‘Zé Povinho’ tornou-se desde então um
símbolo nacional, com raízes fundas no imaginário colectivo. Não será
certamente um dos mais lisonjeiros arquétipos nacionais, mas é seguramente,
pela sua complexidade, um dos mais significativos do ponto de vista de algumas
das características e motivações de um certo tipo de ser português, porventura
hoje já não
tão vincado.
O símbolo, porém, não perdeu a sua actualidade no contexto da
recorrente discussão em meios políticos e culturais sobre a necessidade de
mobilizar o povo português para os desafios e exigências do mundo actual,
contrária a um discurso nacionalista mais ou menos encerrado na evocação das
glorias passadas e que necessariamente deverá ser dinamizado e projectado no
futuro.
Se estamos habituados à imagem do ‘Zé
Povinho’ formada pelos inúmeros protótipos de cerâmica das Caldas, por
cartazes de Revista à portuguesa ou por publicações de índole satírica e
humorística, eis que surge um aprofundado ensaio em torno da interpretação
histórica e cultural da criação e evolução deste personagem-símbolo, nos seus múltiplos cambiantes.
Este ensaio obedece ao propósito essencial de contribuir, ainda que no
reduzido perímetro em que se inscreve o nosso estereótipo nacional, conhecido,
desde 1875, por ‘Zé Povinho’, para
levantar aquilo a que Femand Braudel chamava, no seu livro ‘L'Identité de la
France’ (1986), «as imagens de marca», nesta passagem crucial que
transcrevemos:
- Une nation ne peut être qu'au prix de se chercher elle-même sans fin [...], à s'identifïer, au meilleur, à l’essentiel de soi, conséquement de se reconnaitre au vu d’images de marque, de mots de passe communs des initiés, acrescentando que esse reconhecimento se operava através de mille tests, croyances, confluences, idéologies, mythes, fantasmes.
Tarefa imensa, essa de mapear o psiquismo social integral de um país,
de uma comunidade, de uma cultura ou mesmo de uma única etnia, de um só ‘ethos’ nacional, tarefa que, já se vê,
decerto ultrapassa excessivamente o específico intuito deste ensaio.
Uma pesquisa cabal nesse desígnio de traçar o perfil da mentalidade da
nossa comunidade começaria, naturalmente, pelo estudo do estereótipo nacional
português, na sua forma caricatural ou satírica criada no século XIX, desde
1875, para ser mais exacto, por um artista da Geração de 70, Rafael Bordalo Pinheiro, quase ao mesmo tempo que
uma outra figura-emblema da nacionalidade e do ‘ethos’ luso – Camões, era também proposta à veneração, ao culto
patriótico nacional e à prática popular pela burguesia republicana de então, apostada
na palingenesia social e política que a Regeneração, apesar das suas vistosas promessas,
fora incapaz de concretizar. Com a proposta do tricentenário camoniano de 1880,
forma especial que o patriotismo republicano assumiu nessa crise, que tão de perto
precede o terramo do ‘Ultimato de 1890’ e da revolução portuense do ano
seguinte, um rosto distinto do ’Zé Povinho’
era proposto pelos intelectuais do tricentenário de 1880 como emblema
identificador nacional, segundo os cânones do positivismo, e em tudo contrastante
afinal com o pobre labrego sofrido criado pela imaginação satírico-sociológica
de Rafael Bordalo Pinheiro:
- se o Zé era o português rural, representante do esmagador sector primário do país, analfabeto, civicamente e politicamente menorizado, ridicularizado no seu duplo diminutivo e até no facto deprimente de não ser ‘simplesmente povo’ mas forma degradada do Soberano, povinho, o Camões do Tricentenário seria o português sublime, grandioso, o português como ele podia, ou devia ser, o rosto magnífico e altamente mitificado de um Bardo que deixara nas estrofes d’Os Lusíadas.
Promessa de uma verdadeira parusia nacional, além de gramática da nacionalidade,
canto épico de uma odisseia, monumento perene à portucalidade universalista e
trans-ibérica, espécie de nossa muito ufana ‘muralha da China’ visível do alto
dos séculos ou dos píncaros de outros planetas humanos, e até celebração
cosmopolita e imperialista de um ‘novo reino ultramarino’ que era preciso
preservar, civilizar e aportuguesar, empenho patriótico que a crise do Ultimato
britânico, uma década volvida sobre os cândidos entusiasmos camonianos de 1880,
tornaria um cruel espinho cravado na carne mental e mesmo física da nação, doravante
identificada com um afã africanista que só teria fim definitivo em 1974, com a
revolução descolonizadora e re-europeizadora de então...
NOTA: Em 1875, a maioria do país era rural, e só muito lentamente, ao
longo do primeiro século de existência do estereótipo criado por Rafael, se foi
transferindo a tónica socioprofissional para os sectores secundário (indústria)
e terciário (serviços). Em 1890 o primário representava nada menos do que 65%
da população activa, e o secundário 20,6%. Quanto ao analfabetismo, este andava
por uns aterradores 84,4% em 1890. Em 1932,no ano em que Salazar é nomeado
presidente do conselho, o primário ocupava ainda uma significativa faixa da
população: 46%. Quanto ao século XX, constata-se que o sector primário
predominou na estrutura socioprofissional da nossa população durante a primeira
metade dessa centúria; eis os seus números num relance. O primário andava pelos
65% em 1900, era de 44% em 1960, e de 32,6% em 1970 (o secundário, nesse ano, era
de 33,2% e o terciário de 34,2%: a terciarização dominante inicia-se a partir
de então), de 19% em 1991 (o secundário, 34,1%; o terciário: 46,7%). Quanto à população,
esta era de 4milhões em 1884/5 em 1890, quase 6 em 1910, mais de 7 em 1940, quase
9 em 1960 (recuaria na década seguinte, que coincide com a guerra colonial e a
emigração em massa) e mais de 9 milhões em 1991, exactamente 9.862.540
habitantes.
Uma investigação identitária nacional, teria de passar depois para o
exame dos símbolos, emblemas e mitos identitários portugueses, de acordo com o
escopo da citação de Braudel. Tratar-se-ia agora de indagar quais são, de facto, na vida
social, quotidiana, cultural e popular dos portugueses, sobretudo nos
derradeiros séculos, alguns símbolos tidos como imediatamente identificadores
da grei, da sua mente e do seu espírito activo, a começar pelo mais prestigiado
e mobilizador de todos, aquele que se construiu em torno do monarca caído nos
plainos marroquinos, causa próxima da subsequente conquista do país pelo espanhol
e, nessa medida, catastrófica causa da perda da própria nacionalidade, que
passou a alimentar-se do sonho messiânico e da bíblia totémica de Camões,
fundidos ambos numa ânsia de reencontro com a independência nacional e a afirmação
de uma quimérica vontade de resgate». In João Medina, Zé Povinho sem Utopia,
Ensaio sobre o estereótipo nacional português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais,
2004, ISBN 972-637-118-X.
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