segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Leituras. A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ele vai passar sob os olhos palados dos ministros dessa Inquisição que eu tantas vezes, pela vida fora, em ocasiões de completa liberdade da minha opinião e sentir, critiquei em termos duros. Antes porém que tenham qualquer motivo de me censurarem, eu preparei-lhes o repasto»



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‘... Esta é a casa cujos habitantes estão na escuridão; o pó é o seu alimento e a lama a sua carne. Estão vestidos como pássaros cobertos de asas, não vêem luz, estão nas trevas. Eu entrei na casa do pó e vi os reis da Terra com as coroas retiradas para sempre, os governadores e os príncipes, todos aqueles que um dia usaram coroas reais e governaram o mundo nos dias antigos. Aqueles que estiveram no lugar dos deuses, de Anu e de Enlil, serviam agora como criados que iam buscar a carne assada à casa do pó, que carregavam a carne cozida e a água fria do odre. Na casa do pó onde entrei estavam altos sacerdotes e acólitos, sacerdotes da encantação e do êxtase; havia servidores do templo, e estava Etana, o rei de Kish, que a águia levou para o céu no tempo antigo. Vi também Samuqan, deus do gado, e estava Ereshkigal, a rainha do mundo inferior, e Belit-Sheri, que é escrivão dos deuses e guarda o livro da morte, agachado diante dela. Ela lia uma tabuinha que tinha na mão...In A Epopeia de Gilgamesh

«De tão funestos acontecimentos se fez meticuloso e severo silêncio e há muito foram queimados ou misteriosamente feitos desaparecer todos os documentos, todos os papéis que sobre o assunto existiam. As bocas que o podiam divulgar haviam sido caladas, seladas com o lacre do juramento, do confessionário, do medo, da ameaça, do fogo dos autos-de-fé. Houve mortes e sangue pelo caminho e eu, ignorante de tudo, passava pelas coisas cantando hinos ao Criador e admirando e fruindo, em meu espírito alegre e bem disposto, as grandes e pequenas maravilhas da vida. De tudo fiz crónica, cujo núcleo é a minha viagem à Palestina por ser durante esse romagem que os acontecimentos trágicos começaram a descobrir-se à minha volta. Aproveitei a minha estada na Terra Santa para recolher notas de um itinerário.
Quando dei por mim tinha montanhas de material. Mostrei a alguns amigos essa parte das minhas notas. Insistem comigo para que publique a obra. Deixo o tempo passar... Sinto relutância em tirar do texto as anotações íntimas de tanta emoção vivida, de tanto desencontrado discurso travado no meu pensamento…
Que fazer?... Encontrei há dias nas ruas de Lisboa o reverendo Fr. Luís de Sottomaior, que eu diria um homem santo se mo não proibisse a ‘Madre Santa Igreja’. Como ia ‘Minha Paternidade’, que caminhava tão em-mim-mesmado? Há quanto tempo!... Sabia que trazia consigo, ao pescoço, um ‘agnus dei’ com uma das relíquias que eu lhe trouxera da Terra Santa? Homem! E esse livro, esse ‘Itinerário?’ Era pecado de egoísmo querê-lo só para mim, guardá-lo vinte e oito anos sem o publicar!... Não achava? Claro que sim! E dava-me uma palmada no ombro. Olhasse! Porque o não dedicava ao arcebispo? Miguel de Castro era muito receptivo e o seu nome num frontispício constituía uma garantia inegável da qualidade. Não quereria eu um destes dias ir falar com Sua Eminência? Não se importava a sua humilde pessoa de me acompanhar... Que sim, que sim, anuía eu, Sua Reverência tinha razão e eu iria penitenciar-me do meu egoísmo...
E assim é que me decido finalmente a dar à estampa o meu ‘Itinerário da Terra Santa’. Ele vai passar sob os olhos palados dos ministros dessa Inquisição (maldita) que eu tantas vezes, pela vida fora, em ocasiões de completa liberdade da minha opinião e sentir, critiquei em termos duros. Antes porém que tenham qualquer motivo de me censurarem, eu preparei-lhes o repasto. O texto que lhes envio, além de estar semeado de orações, antífonas, hinos em latim, de referência minuciosa às indulgências que se ganham naqueles sagrados lugares, vai expurgado por mim próprio. Armo-me em censor da minha própria obra e, se deixo nela transparecer algo da minha espontaneidade e sinceridade, é em coisas exteriores e mínimas. Talvez algum leitor mais sagaz, espreitando nas entrelinhas, pretenda ver para além vestígios da minha personalidade. Espero não deixar, contudo, nenhuns importantes indícios. Que também sobre mim se faça silêncio! Retiro da obra toda a nota íntima e pessoal. Tiro-me da obra no mesmo gesto defensivo e paternal com que um dia aqueles que me deram o ser me retiraram da sua vida para me protegerem de um destino maldito. O texto original guardá-lo-ei só para mim. ‘Enxobregas, a. D. 1591’». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986. 


Cortesia de Difel/JDACT