jdact
‘... Esta é a casa cujos habitantes estão na escuridão; o pó é o seu
alimento e a lama a sua carne. Estão vestidos como pássaros cobertos de asas,
não vêem luz, estão nas trevas. Eu entrei na casa do pó e vi os reis da Terra
com as coroas retiradas para sempre, os governadores e os príncipes, todos
aqueles que um dia usaram coroas reais e governaram o mundo nos dias antigos.
Aqueles que estiveram no lugar dos deuses, de Anu e de Enlil, serviam agora
como criados que iam buscar a carne assada à casa do pó, que carregavam a carne
cozida e a água fria do odre. Na casa do pó onde entrei estavam altos
sacerdotes e acólitos, sacerdotes da encantação e do êxtase; havia servidores
do templo, e estava Etana, o rei de Kish, que a águia levou para o céu no tempo
antigo. Vi também Samuqan, deus do gado, e estava Ereshkigal, a rainha do mundo
inferior, e Belit-Sheri, que é escrivão dos deuses e guarda o livro da morte,
agachado diante dela. Ela lia uma tabuinha que tinha na mão...’ In A Epopeia de
Gilgamesh
«De tão funestos acontecimentos se fez meticuloso e severo silêncio e
há muito foram queimados ou misteriosamente feitos desaparecer todos os
documentos, todos os papéis que sobre o assunto existiam. As bocas que o podiam
divulgar haviam sido caladas, seladas com o lacre do juramento, do
confessionário, do medo, da ameaça, do fogo dos autos-de-fé. Houve mortes e
sangue pelo caminho e eu, ignorante de tudo, passava pelas coisas cantando
hinos ao Criador e admirando e fruindo, em meu espírito alegre e bem disposto,
as grandes e pequenas maravilhas da vida. De tudo fiz crónica, cujo núcleo é a
minha viagem à Palestina por ser durante esse romagem que os acontecimentos
trágicos começaram a descobrir-se à minha volta. Aproveitei a minha estada na Terra
Santa para recolher notas de um itinerário.
Quando dei por mim tinha montanhas de material. Mostrei a alguns amigos
essa parte das minhas notas. Insistem comigo para que publique a obra. Deixo o
tempo passar... Sinto relutância em tirar do texto as anotações íntimas de
tanta emoção vivida, de tanto desencontrado discurso travado no meu pensamento…
Que fazer?... Encontrei há dias nas ruas de Lisboa o reverendo Fr. Luís
de Sottomaior, que eu diria um homem santo se mo não proibisse a ‘Madre Santa
Igreja’. Como ia ‘Minha Paternidade’, que caminhava tão em-mim-mesmado? Há
quanto tempo!... Sabia que trazia consigo, ao pescoço, um ‘agnus dei’ com uma das relíquias que eu lhe trouxera da Terra
Santa? Homem! E esse livro, esse ‘Itinerário?’
Era pecado de egoísmo querê-lo só para mim, guardá-lo vinte e oito anos sem o
publicar!... Não achava? Claro que sim! E dava-me uma palmada no ombro.
Olhasse! Porque o não dedicava ao arcebispo? Miguel de Castro era muito receptivo
e o seu nome num frontispício constituía uma garantia inegável da qualidade.
Não quereria eu um destes dias ir falar com Sua Eminência? Não se importava a
sua humilde pessoa de me acompanhar... Que sim, que sim, anuía eu, Sua
Reverência tinha razão e eu iria penitenciar-me do meu egoísmo...
E assim é que me decido finalmente a dar à estampa o meu ‘Itinerário da Terra Santa’. Ele vai
passar sob os olhos palados dos ministros dessa Inquisição (maldita) que eu
tantas vezes, pela vida fora, em ocasiões de completa liberdade da minha opinião
e sentir, critiquei em termos duros. Antes porém que tenham qualquer motivo de me
censurarem, eu preparei-lhes o repasto. O texto que lhes envio, além de estar
semeado de orações, antífonas, hinos em latim, de referência minuciosa às
indulgências que se ganham naqueles sagrados lugares, vai expurgado por mim
próprio. Armo-me em censor da minha própria obra e, se deixo nela transparecer
algo da minha espontaneidade e sinceridade, é em coisas exteriores e mínimas.
Talvez algum leitor mais sagaz, espreitando nas entrelinhas, pretenda ver para
além vestígios da minha personalidade. Espero não deixar, contudo, nenhuns
importantes indícios. Que também sobre mim se faça silêncio! Retiro da obra
toda a nota íntima e pessoal. Tiro-me da obra no mesmo gesto defensivo e
paternal com que um dia aqueles que me deram o ser me retiraram da sua vida para
me protegerem de um destino maldito. O texto original guardá-lo-ei só para mim.
‘Enxobregas, a. D. 1591’». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986.
Cortesia de Difel/JDACT