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«A inteligência organiza, a bruteza realiza, tal podia ser um dos
paradigmas destas operações que são amplamente confirmadas pela antropologia física,
que encontrou nos anatomistas dos séculos XVIII e XIX plena confirmação. O belo
não pertence aos africanos e o paradigma da beleza, reforçado pelos anatomistas
do século XVIII encontrará até a sua mais perfeita representação no Apolo do
Belvedere, que permitiu a Peter Camper organizar uma grelha destinada a fazer coincidir
a fealdade dos corpos com a inoperância dos espíritos.
O que fora precedido em Portugal, ou antes, na Península Ibérica pela
teoria do sangue puro, que proibia qualquer mistura com o sangue africano. Esta
desvalorização do sangue não faz mais do que reforçar as condições da exclusão.
Do ponto de vista estritamente científico poder-se-ia dizer que tais
leituras são simplesmente ingénuas, na medida em que se apoiam em elementos de
parca importância. Podemos de facto aceitar a existência de uma ingenuidade
científica que só a anatomia dos séculos XIX e XX conseguirá enfim resolver,
mas ela é mais perversa do que ingénua, na medida em que a sua grelha do saber
tem como objectivo reforçar as condições de dominação, negando qualquer
qualidade ao africano colonizado. Não se trata apenas de lhe recusar a
possibilidade de algum dia poder integrar os valores civilizacionais do branco,
mas antes de provar a sua selvajaria. Regista-se por isso a emergência de uma
teoria geral do asselvajamento que permite utilizar uma grelha ampla, na qual
cabem todos os africanos.
A própria abolição da escravatura, que parece um dos passos mais significativos
dados pelas sociedades brancas para modificar as relações de dominação, não
pode dissimular uma ambiguidade nem sempre bem explorada:
- esta operação é na sua parte mais importante determinada pelo espírito religioso protestante, que não pode aceitar esta dominação que compromete a própria estrutura dos senhores.
Ou seja:
- não é a qualidade do africano que impõe a única solução possível, pois antes e acima de tudo encontra-se a consciência religiosa branca. A multiplicação dos ‘filantropos’ que participam na operação salienta o seu carácter marginal, que por sua vez permite compreender que o tráfico regular tenha sido substituído pelo contrabando, que mobilizava capitais, embarcações, tripulações, que rejeitavam as novas regras, na medida em que os homens continuavam a ser os mesmos!
A escravatura engendrou formas de resistência e sobretudo de autonomização.
Mas é no século XX que se procede enfim ao inventário e à história dos mocambos e dos quilombos americanos, os quais obrigam a identificar e a classificar
as mesmas estruturas, muito mais precoces, em África. De facto, só recentemente
se verificou a existência de tais formas organizacionais precoces em
territórios africanos criados pelo próprio colonizador, caso de São Tomé, no arquipélago
de São Tomé e Príncipe. Começa agora a fazer-se a história dos efeitos da
escravatura nas próprias sociedades africanas, centrada numa questão essencial;
como se operou a adequação dos aparelhos políticos à hemorragia dos homens
indispensáveis ao próprio funcionamento normal da sociedade?
NOTA: Trata-se de uma história particularmente perturbadora
dificilmente afrontada pelos próprios historiadores africanos. Como estudar ‘friamente’
a participação dos africanos na organização do tráfico negreiro e na
banalização da sua própria escravatura interna?
Só nos anos finais do século XIX, já depois de abolido o tráfico
negreiro, seguido da própria escravatura, se regista a necessidade de proceder
a uma ocupação administrativa branca, que deve ser ‘efectiva’. O elevado custo
da operação, associado à busca de uma eficácia indiscutível, permitem que se
verifique o aparecimento do ‘governo indirecto’ geralmente atribuído aos ingleses,
e a John Lugard. Na verdade, todos os colonizadores foram obrigados a recorrer
a esta estratégia, na medida em que os africanos conservaram formas de controlo
hegemónico até aos anos 20 - 30 do século XX. É evidente que nestas condições o
sistema colonial só podia funcionar de maneira aceitável a partir do momento em
que as autoridades coloniais podiam mobilizar as autoridades africanas, as
confirmadas pela genealogia ou as fictícias criadas pelo próprio colonizador,
para servir de suporte ao poder colonial». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações
Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas,
Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN
972-8801-31-9.
Cortesia de Caleidoscópio/JDACT