sábado, 1 de setembro de 2012

Leituras. O Paraíso Triste. O Quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial. Maria João Martins. «A Lisboa que se engalana para a festa domingueira das suas celebrações vive no instante antes do abismo. Nela, por mais que a encenação política do regime procurasse fazê-lo esquecer, instalou-se o sinal de um tempo em que a clandestinidade foi morada e a roleta, muitas vezes, russa»



Luíseme e jdact

Tinha os olhos pregados no navio. Fundeado no Teio, a alguma distância do cais, iluminava-o um clarão vivíssimo. Se bem que estivesse havia já uma semana em Lisboa, ainda me não habituara à luminosidade extravagante da cidade. Nas terras donde eu vinha, a noite fazia das cidades negros blocos de carvão, onde o foco de uma lanterna representava mais perigo do que a peste na Idade Média. Eu vinha da Europa do século XX”. In Erich Maria Remarque, Uma Noite em Lisboa.

«A noite fez-se para esconder tesouros. Nela, acontecem as conspirações que mudam a face da História, os amores que dinamitam os sentidos e os filmes que não podemos esquecer. Concedem-se direitos aos segredos e corpos às recordações.
Na noite do 1.º de Dezembro de 1940, as cidades da Europa do século XX tinham, de facto, o aspecto de negros blocos de carvão evocado por Erich Maria Remarque em ‘Uma Noite em Lisboa’. A Wehrmacht ocupara Paris, a Luftwaffe bombardeava ferozmente Londres, Southampton e Conventry, os judeus desapareciam, aos milhões, nos campos de concentração, sem que nada de humano ou divino lhes valesse.
Vivia-se de cócoras, o riso era uma indecência e o amor uma extravagância. A vida, qualquer coisa que, de repente, se descobria ter desperdiçado enquanto fora tempo. Nessa noite, no entanto, Lisboa festeja, como uma louca sem noção do tempo, do espaço ou das circunstâncias, o duplo centenário. Vive-se a última oportunidade para visitar essa obra-prima da arquitectura para ver e deitar fora que é a Exposição do Mundo Português, em Belém. Centenas de lisboetas não perdem tempo e tratam de se extasiar com o simulacro de Império erguido à beira-Tejo, para maior glória do Estado Novo.

‘O céu estava como se nada fosse, falso. Ouviu-se algures uma explosão. Gilles lembrou-se de uma frase feita: Os deuses são impassíveis’. In Drieu de La Rochelle, Giles.

No dia seguinte, quando soarem as doze badaladas da meia-noite, será já demasiado tarde. Sob a presidência de Óscar Fragoso Carmona, apagar-se-ão as luzes, enquanto um monumental coro entoará o hino nacional. Os Pavilhões da Fundação, Formação e Conquista, Independência, a Secção Colonial e a Nau Portugal, entre outras obras-primas da propaganda, passarão a ser uma saudade.
Festejam-se, de ume assentada, os trezentos anos da restauração da independência, os oitocentos da fundação da nacionalidade e o ressurgimento da ‘gloria pátria’ pela mão fria do Estado Novo. Dão-se vivas a (ditador) Salazar e graças a Deus. Rezam-se ‘Te-Deum’ nas principais igrejas de Lisboa, ouvem-se discursos inflamados pelo fervor nacionalista, […]
Enquanto se festejavam tão nobres efemérides com a pompa e circunstância prezadas pelo regime, o Belenenses vencia o Sporting por três a um, o Benfica fazia outro tanto contra o União Lisboa, mas por quatro a dois, e os Unidos derrotavam o simpático Carcavelinhos por duas bolas sem resposta. No cinema, passava, por sua vez, um cartaz de luxo: entre outros, filmes como Ninotchka, de Lubitsch, com a Garbo (São Luís), O Grande Êxito, com Ann Sothern e Edmund Lowe (condes), A Minha Mulher Favorita com Cary Grant e Irene Dunne (Tivoti), Garra de Ferro, com James Cagney (Palácio) e Piedosa Mentira com Edwige Feuillére e George Rigaud (Eden). A guerra parecia longínqua e um problema dos outros.
Mas não o era. Nessa mesma noite, enquanto o fogo-de-artifício ribomba sobre Belém, Saint-Exupéry, o escritor-aviador que acreditou em ‘Principezinhos’, assina uma carta angustiante. Está instalado no Hotel Palácio, no Estoril, e escreve:

  • ‘Guillaumet est mort, il me semble ce soir que je n’ai plus d’amis. (...) Je n’ai plus un seul camarade au monde à qui dire: Te rappel-les-tu? (...) Je croyais que ça n’arrivait qu’aux très vieilles gens, d’avoir semé sur leur chemin, tous leurs amis, tous. Il y a toute la vie à recommencer. Aidez-moi, je vous en supplie, à voir le paysage. Je suis désemparé d’avoir passé la crête. Dis-moi quoi faire. S’il faut revenir, je reviens’.(Guillaumet morreu. Esta noite parece-me que já não me resta nenhum amigo. Já não tenho nenhum camarada a quem dizer: "Lembras-te?" (...) Pensava que isto só acontecia às pessoas muito velhas, deixar todos os amigos pelo caminho, todos. Há toda uma vida a recomeçar. Suplico-te que me ajudes a ver a paisagem. Fui abandonado no cume. Diz-me o que devo fazer. Se for preciso voltar, volto).

Mas este homem apaixonado que, de repente, se via sem ninguém que lhe percebesse os desenhos e estimulasse os sonhos é, na sua genialidade, apenas um símbolo. Nessa noite, e noutras que se seguiram, muitas cartas, com tamanha angústia, foram dirigidas de Lisboa para a tal Europa do século XX, onde os destinatários nem sempre se mantinham vivos para as receber. A ‘capital do Império’ afigurava-se, então, um paraíso (bem) triste (na expressão também de Saint-Exupéry) para os que, procurando um espaço de tranquilidade, não conseguiam, todavia, esquecer o que ficara para trás.
A Lisboa que se engalana para a festa domingueira das suas celebrações vive no instante antes do abismo. Nela, por mais que a encenação política do regime procurasse fazê-lo esquecer, instalou-se o sinal de um tempo em que a clandestinidade foi morada e a roleta, muitas vezes, russa.
Pela Lisboa dos pátios das cantigas, da Praça da Figueira, dos teatros de revista e das esplanadas soalheiras, passavam várias dezenas de milhares de judeus fugidos ao extermínio certo, vedetas sem palco, reis sem trono, apaixonados só com memórias e gente determinada a espremer os amanhãs até que eles cantassem. Passou, por exemplo, Leslie Howard a bater-se pela causa da liberdade e passou, pelo menos duas vezes, Louise Rainer, secreta e desesperadamente à procura do pai que ficara na Áustria. Ante estes e outros dramas, a ditadura persuadia a população a viver habitualmente, a ler os livros, e ver os filmes, A ouvir a rádio que a sua censura livrara de intuitos subversivos e, sobretudo, a deixar-se conduzir, pobrezinha mas honrada, para o ‘ressurgimento nacional’. Mas a geografia colocara Lisboa no coração de uma História em turbilhão, e contra esse facto nem mesmo (o ditador) Salazar podia agir». In Maria João Martins, O Paraíso Triste, O Quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial, Vega, Colecção Memória de Lisboa, 1994, ISBN 972-699-474-8.

Cortesia de Vega/JDACT