quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Macau Histórico. Edição de 1926. Carlos Montalto de Jesus. «Cartas de Cantão que chegaram, anos depois, às mãos dos portugueses revelaram os sofrimentos atrozes da embaixada na prisão, onde roubaram a Pires os presentes reais recusados, assim como uma quantidade de almíscar, ruibarbo, damasco, cetim, ouro e prata que ele trazia consigo para fins comerciais»


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«Em tão adversas circunstâncias, o enviado Tomé Pires, que permanecera em Cantão todo este tempo, foi, em 1520, convidado a ir a Pequim, para onde seguiu, pela rota do Grande Canal, com três naus arvorando a bandeira portuguesa, embora isso fosse contrário aos usos do país. Acostumada como estava, a corte de Pequim, a receber apenas embaixadas tributárias, o teor altivo da carta de Manuel I foi considerado derrogatório pÍtra com o Filho do Céu. Outra carta de Fernão Peres Andrade foi falseada pelos intérpretes em Cantão e transformada numa petição de vassalo enquanto uma nota do vice-rei de Cantão informava que Andrade pedira autorização para estabelecer uma feitoria em Cantão e que, difíceis de contentar, os conquistadores de Malaca eram muito presunçosos no tocante a honrarias. O conselho imperial, reparando na disparidade dos termos destas cartas, declarou Pires um impostor e um espião. E, como para ratificar o destino desta embaixada, chegaram, então, as notícias dos procedimentos arbitrários de Simão de Andrade, que, infelizmente, vieram dar credibilidade às difamações maldosas que pintavam os portugueses com as tintas mais negras. O imperador morreu durante esta crítica conjuntura e o seu sucessor, anulando a intenção da corte de executar Pires, mandou regressar a Cantão com os seus presentes, a infortunada embaixada, que seria libertada se os portugueses entregassem Malaca, sem o que os reféns sofreriam. Em qualquer caso, todas as relações entre portugueses e chineses, dali por diante cessariam. Em vez de devolver Malaca ao sultão os portugueses, depois de aí repelirem um ataque, caíram sobre Bintam. Cartas de Cantão que chegaram, anos depois, às mãos dos portugueses revelaram os sofrimentos atrozes da embaixada na prisão, onde roubaram a Pires os presentes reais recusados, assim como uma quantidade de almíscar, ruibarbo, damasco, cetim, ouro e prata que ele trazia consigo para fins comerciais. Era crença geral que por fim, a desgraçada embaixada teria morrido na prisão? Mas Mendes Pinto no decurso das suas deambulações pela China, vinte anos mais tarde parece ter encontrado uma filha de Pires por quem soube que depois de ter sobrevivido a torturas atrozes, seu pai e parte da sua comitiva haviam sido desterrados para várias províncias, e que Pires passara o resto da sua vida propagando a fé cristã, na qual a filha era versada, rezando em português com uma devoção que comoveu até às lágrimas o desamparado viajante.
Ignorando o triste destino da embaixada, e desejoso de concluir um tratado de paz e amizade com a China, Manuel I enviou uma frota comandada por Martim Coutinho, com ordens de construir em Tamou, ou onde fosse mais apropriado para proteger os portugueses na China, uma fortaleza, da qual assumiria depois o comando e cuja guarnição seria uma parte da tripulação, esperava-se que Pires tivesse facilitado as negociações de tudo isto. A frota, de seis naus, chegou a Tamou em Agosto de 1522, juntamente com Duarte Coelho, que prudentemente permaneceu ao largo. As naus entraram no porto completamente despreocupadas mas, poucos depois, em vista dos indícios de hostilidades, tentaram partir, quando uma poderosa frota imperial as atacou. Já eram em menor número mas ainda se incendiou e explodiu uma nau. Numa embarcação, um grupo chefiado por Pedro Homem adiantou-se para salvar da água os sobreviventes e, por entre prodígios de valentia caiu vítima do seu nobre esforço enquanto o resto da frota, achando a situação desesperada, abria caminho com a artilharia e rumava a Malaca. Muitos membros da tripulação, capturados pelos chineses, foram deixados morrer à fome ou torturados até à morte sendo alguns cortados aos bocados, em vida, como ladrões.
Atrocidade após atrocidade ficaram por vingar, sem falar das guerras sem fim, revoltas e dilemas que tornaram as conquistas de Portugal um fardo demasiado pesado para os ombros do pretendente a Atlas». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT