«Em tão adversas circunstâncias, o enviado Tomé Pires, que
permanecera em Cantão todo este tempo, foi, em 1520, convidado a ir a Pequim,
para onde seguiu, pela rota do Grande Canal, com três naus arvorando a bandeira
portuguesa, embora isso fosse contrário aos usos do país. Acostumada como
estava, a corte de Pequim, a receber apenas embaixadas tributárias, o teor
altivo da carta de Manuel I foi considerado derrogatório pÍtra com o Filho do
Céu. Outra carta de Fernão Peres Andrade foi falseada pelos intérpretes em
Cantão e transformada numa petição de vassalo enquanto uma nota do vice-rei de
Cantão informava que Andrade pedira autorização para estabelecer uma feitoria
em Cantão e que, difíceis de contentar, os conquistadores de Malaca eram muito
presunçosos no tocante a honrarias. O conselho imperial, reparando na disparidade
dos termos destas cartas, declarou Pires um impostor e um espião. E, como para
ratificar o destino desta embaixada, chegaram, então, as notícias dos
procedimentos arbitrários de Simão de Andrade, que, infelizmente, vieram dar
credibilidade às difamações maldosas que pintavam os portugueses com as tintas
mais negras. O imperador morreu durante esta crítica conjuntura e o seu
sucessor, anulando a intenção da corte de executar Pires, mandou regressar a
Cantão com os seus presentes, a infortunada embaixada, que seria libertada se
os portugueses entregassem Malaca, sem o que os reféns sofreriam. Em qualquer
caso, todas as relações entre portugueses e chineses, dali por diante cessariam.
Em vez de devolver Malaca ao sultão os portugueses, depois de aí repelirem um
ataque, caíram sobre Bintam. Cartas de Cantão que chegaram, anos depois, às
mãos dos portugueses revelaram os sofrimentos atrozes da embaixada na prisão,
onde roubaram a Pires os presentes reais recusados, assim como uma quantidade
de almíscar, ruibarbo, damasco, cetim, ouro e prata que ele trazia consigo para
fins comerciais. Era crença geral que por fim, a desgraçada embaixada teria
morrido na prisão? Mas Mendes Pinto no decurso das suas deambulações pela
China, vinte anos mais tarde parece ter encontrado uma filha de Pires por quem
soube que depois de ter sobrevivido a torturas atrozes, seu pai e parte da sua
comitiva haviam sido desterrados para várias províncias, e que Pires passara o
resto da sua vida propagando a fé cristã, na qual a filha era versada, rezando
em português com uma devoção que comoveu até às lágrimas o desamparado
viajante.
Ignorando o triste destino da embaixada, e desejoso de
concluir um tratado de paz e amizade com a China, Manuel I enviou uma frota
comandada por Martim Coutinho, com ordens de construir em Tamou, ou onde fosse mais
apropriado para proteger os portugueses na China, uma fortaleza, da qual assumiria
depois o comando e cuja guarnição seria uma parte da tripulação, esperava-se
que Pires tivesse facilitado as negociações de tudo isto. A frota, de seis
naus, chegou a Tamou em Agosto de 1522, juntamente com Duarte Coelho, que
prudentemente permaneceu ao largo. As naus entraram no porto completamente
despreocupadas mas, poucos depois, em vista dos indícios de hostilidades,
tentaram partir, quando uma poderosa frota imperial as atacou. Já eram em menor
número mas ainda se incendiou e explodiu uma nau. Numa embarcação, um grupo
chefiado por Pedro Homem adiantou-se para salvar da água os sobreviventes e,
por entre prodígios de valentia caiu vítima do seu nobre esforço enquanto o
resto da frota, achando a situação desesperada, abria caminho com a artilharia
e rumava a Malaca. Muitos membros da tripulação, capturados pelos chineses,
foram deixados morrer à fome ou torturados até à morte sendo alguns cortados
aos bocados, em vida, como ladrões.
Atrocidade após atrocidade ficaram por vingar, sem falar das
guerras sem fim, revoltas e dilemas que tornaram as conquistas de Portugal um
fardo demasiado pesado para os ombros do pretendente a Atlas». In Carlos
Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em
Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.
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