«Mau grado as diferenças que entre eles se
detectam, em boa parte devidas à natureza da informação disponível, os
cavaleiros de Arruda e de Alcanede não deixam de partilhar diversas
características comuns. Nas duas vilas, o estatuto de cavaleiro está claramente
associado à isenção fiscal e à satisfação de uma taxa fixa, embora se
desconheça quando eram devidos os alqueires de trigo pagos pelos cavaleiros de
Alcanede. Mais evidente no caso de Arruda, onde se exigia a presença do alcaide
e de toda a governação, nem por isso se perdera, em Alcanede, a publicidade
necessária ao ritual de entrada em cavalaria. Nesta localidade, a cavalaria
podia ser conferida pelo progenitor do candidato, mas a cerimónia não decorria
longe dos olhares de todos, pois continuava a coincidir com o dia da boda, que
marcava a entrada na vida adulta, e a ser caracterizada por gestos que
ostentavam a riqueza possuída. Ignora-se como o alcaide conduzia aqui o ritual
de recepção de um novo cavaleiro, ou se também seria agraciado por quem não era
filho de cavaleiro, como ocorria na Arruda, mas talvez lhe estivesse destinado
o tarraço de vinho que outros britavam contra uma parede.
As cerimónias descritas nestas vilas da
Estremadura parecem corresponder, portanto, aos vestígios de um antigo ritual
de entrada em cavalaria. A realização da cerimónia no mês de Maio, durante o
qual se satisfaziam, por outro lado, as três libras da cavalaria, não deixa de
recordar, com efeito, a época escolhida para os alardos concelhios e para o
pagamento da antiga taxa de substituição do fossado, o morabitino de Maio. O
carácter voluntário desta cavalaria de carneiro, muito evidente nos costumes de
Arruda, também guarda alguma relação com a situação documentada na Estremadura
durante os séculos XII e XIII, onde a cavalaria não tinha uma base censitária e
o peão podia ascender de categoria, caso adquirisse um cavalo. A mesma
homologia revela-se, ainda, na tradição de reservar ao alcaide um papel
decisivo na recepção dos novos cavaleiros, tal como então se verificava nos
concelhos de Lisboa e de Santarém.
NOTA: Além de A. Herculano (1980-1981, veja-se J. Mattoso,
1985. Baseado nos Costumes do Alvito, este último autor sugeriu que os
cavaleiros do concelho não se confundiam com os cavaleiros recebidos pelo
alcaide. Por uma consulta feita pelo concelho de Alvito ao de Santarém, em
Outubro de 1281, verifica-se que os Costumes se referem apenas aos cavaleiros
do concelho e que a norma em causa se destinava a evitar uma nova recepção como
cavaleiro daqueles que tinham esse estatuto antes de se fazerem vizinhos.
Segundo os costumes de Santarém comunicados
ao Alvito, também cabia ao alcaide o direito a ser honrado pelo peão que queria
ser arrolado entre os cavaleiros, embora o filho de cavaleiro estivesse
dispensado de tal oferta, como sucedia na Arruda, e, quiçá, em Alcanede.
Talvez se possa aproximar destes testemunhos
o ritual documentado em Tomar, a 3 de Abril de 1385, embora não seja certo que
se tratem de cavaleiros de carneiro, quer pela ausência desta designação
degradante, quer pelo facto de eles possuírem, pelo menos, uma arma ofensiva.
Neste caso, a cerimónia tinha lugar por ocasião da boda do candidato a
cavaleiro, o qual deveria então montar um:
- ‘cauallo cum hüa lança na maão e leuaua hüu alqueire de pam amasado e hüu cantaro de vinho e chegaua aa porta do castello da dicta villa e ferya com a lança em ella e dizia caualleiro quero eu seer E emtam leuaua o que hi staua por alcaide o dicto pam e vinho E se esto nom fizese auja ho alcaide de leuar delle a oytaua dos seus beens e se esto fizese nom auja delle de leuar nada”.
Quase
todas as características atrás descritas se encontram aqui presentes, desde a
isenção fiscal ao carácter público e voluntário da cerimónia, sem esquecer a
data desta e as ofertas ao alcaide. Por tudo isso, não é de todo seguro que uma
simples lança fosse capaz de os distinguir dos cavaleiros de carneiro, ou que
pudesse identificá-los com os cavaleiros de quantia. De acordo com um artigo
das Cortes de Elvas de 1361, estes últimos deviam possuir um equipamento
militar bem mais caro e diverso, onde entravam diversas protecções do corpo e
da cabeça, pelo que os cavaleiros de Tomar só com dificuldade se incluiriam
entre os mais recentes cavaleiros de quantia.
Os
cavaleiros de carneiro e de costume parecem ser, portanto, os herdeiros remotos
da antiga cavalaria vilã da Estremadura. Mas essa herança também se alterara,
entretanto. Em termos gerais, perdera-se a memória da prestação de um serviço
militar e a honra do cavaleiro dependia agora do pagamento de uma taxa de
substituição. A degradação do estatuto fora ainda maior em Alcanede, onde
aquela taxa se satisfazia em géneros e mal se distinguia dos outros foros,
enquanto o ritual de entrada em cavalaria perdera boa parte da sua dimensão
pública, sem que se transformasse, contudo, numa cerimónia doméstica e
familiar. Nas suas vilas de origem, os cavaleiros guardavam intacta a honra e a
isenção fiscal, mas a sua cavalaria dizia-se agora de carneiro, de tarraço, ou
de costume, vendo-se qualificada com termos um pouco enigmáticos e degradantes,
talvez porque se perdera o costume de entregar um carneiro em substituição do
fossado, como em tempos acontecia nalgumas vilas castelhanas dos séculos XI e
XII». In Luís Filipe Oliveira, Os cavaleiros de carneiro e a herança da cavalaria
vilã na Estremadura, Os casos de Arruda e de Alcanede, Medievalista,
Instituto de Estudos Medievais, Universidade do Algarve, 2005.
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