quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Michael Haag no 31. Maria Madalena. «Amarrar Maria Madalena a um ponto é como encontrar algum osso, algumas costelas ou crânio e dizer que são dela; lugares se tornam relíquias para as pessoas que precisam desse tipo de coisa»

Cortesia de wikipedia e jdact

Devassidão, peixe salgado e estudiosos da Bíblia

«(…) Escritos rabínicos datando do quarto para o quinto século d.C. mencionam um lugar chamado Migdal Tsebaya, o que significa Torre dos Tintureiros, e outro chamado Migdal Nunya, significando Torre dos Peixes. Por quanto tempo elas existiram não é sabido; certamente não aparecem em nenhum lugar do Velho e do Novo Testamentos. Da mesma forma o local de ambas é incerto; mas se pensa que a última estaria a menos de um quilómetro ao norte de Tiberíades, não suficientemente ao norte para estar em qualquer lugar perto do lugar hoje chamado de Magdala. O local pode corresponder a Tel Rakat (ou Tel Raqqat). Um tel é um monte antigo de detritos que cresce sobre aldeias abandonadas ou outras estruturas, e apesar de Tel Rakat ficar afastada do lago, isso pode não ter sido sempre assim; talvez houvesse um farol ali, ou talvez este fosse um lugar para o processamento de peixe. Sem escavar o local não poderemos saber mais.

Como Migdal Tsebaya significa Torre dos Tintureiros e como o tingimento é feito geralmente perto da água, possivelmente essa torre ficava às margens do mar da Galileia, mas a literatura rabínica não o diz. Em vez disso, faz um comentário, o de que Migdal Tsebaya foi destruída por sua prostituição, mas não explica quando ou como ou por quem, nenhum contexto é fornecido. Isso não impediu que Migdal Tsebaya fosse identificada com Tariqueia (Taricheia é uma ortografia variante), o seu nome, que é grego, significando lugar de peixe salgado. A identificação foi feita em 1920 pelo arqueólogo bíblico norte-americano William F. Albright, praticamente porque ele pensava assim. Albright também identificou Tariqueia com o lugar agora chamado Magdala, apesar das evidências em contrário.

As evidências apontam que Tariqueia ficava a seis quilómetros ao sul de Tiberíades, na margem oeste do rio Jordão, onde emerge a partir da extremidade sul do mar da Galileia, e não seis quilómetros ao norte, o local da actual Magdala. O historiador romano do século I, Plínio, por exemplo, descreveu o mar da Galileia na sua História natural como rodeado pelas cidades agradáveis de Julias e Hipopótamos no leste, Tariqueia no sul … e Tiberíades a oeste, o que coloca Tariqueia ao sul de Tiberíades, enquanto Magadan, conhecida desde os tempos bizantinos como Magdala, está ao norte de Tiberíades. Além disso, Tariqueia foi o local de uma batalha famosa em 67 d.C., durante a Revolta Judaica; o historiador Flávio Josefo, um comandante das forças judaicas durante o início da revolta na Galileia, descreveu o cerco romano, a ocupação da cidade e a batalha naval feroz que se seguiu, que deixou 6,7 mil combatentes judeus mortos e tornou vermelha a água do lago.

No entanto, escavações na actual Magdala não revelaram sinais de qualquer conflito ou de danos datados do período da revolta, enquanto a narrativa de Josefo sobre os deslocamentos romanos deixa claro que Tariqueia ficava ao sul de Tiberíades. Muito simplesmente, Magdala e Tariqueia eram dois lugares diferentes. No entanto, a conexão feita por Albright entre Migdal Tsebaya, Tariqueia e Magdala criou uma impressão duradoura, de modo que se encontram os nomes desses lugares usados alternadamente ou em combinação, com Migdal Nunya apresentado como precaução; e muitas vezes ler-se-á sobre a destruição romana da suposta cidade natal de Maria Madalena por causa de sua reputação de devassidão, que se encaixa perfeitamente na imagem mais tarde criada pela Igreja para Maria Madalena. A religião causou estragos ao identificar o local e o significado de Magdala e sua associação, se houve alguma, com Maria Madalena. O problema começou nos primeiros séculos cristãos e tem sido perpetuado e confundido ainda mais por arqueólogos bíblicos e estudiosos do Novo Testamento em dias modernos. Amarrar Maria Madalena a um ponto é como encontrar algum osso, algumas costelas ou crânio e dizer que são dela; lugares se tornam relíquias para as pessoas que precisam desse tipo de coisa» In Michael Haag, Maria Madalena, Zahar, 2018, ISBN 978-853-781-739-1.

Cortesia de Zahar/JDACT

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No 31. Maria Madalena. Michael Haag. «Jesus gostava de dar apelidos a seus discípulos, como nos é dito em Marcos: E a Simão ele denominou Pedro; … Maria Madalena teria recebido seu nome da mesma forma, Maria, a Migdal, a torre de vigia, o farol…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Um lugar chamado Magdala

«(…) A alteração do Evangelho de Mateus por um copista bizantino do século V estava tornando o nome de Maria Madalena num lugar no mapa. Ela era agora Maria de Magdala. Qualquer ideia de que seu nome poderia ter algum outro e profundo significado foi perdida.

A torre de vigia

Magdala deriva de magdal, que significa torre em aramaico, a língua falada por Jesus e seus discípulos e outros na Palestina e na Síria naquela época. A palavra hebraica para torre no Velho Testamento é migdal. Mas, como um nome, Migdal nunca aparece por si só em qualquer lugar na Palestina; ocorre sempre como Migdal-Algo, de maneira que, por exemplo, há Migdal Eder, Miqueias, Migdal Gad e Migdal El. Tivesse sido nomeada Maria Madalena por causa de um lugar, ela teria tido um sobrenome duplo. Em vez disso, o nome de Maria Madalena diz o que ele significa: Maria, a Torre, ou Maria, que é como uma torre. Mas em que sentido ela era uma torre? Migdal Gad e Migdal El constituíam lugares fortificados, mas Migdal Eder era algo completamente diferente. Eder (ou edar) é o termo hebraico para rebanho; em grandes pastagens pastores erguiam uma alta torre de madeira, a fim de supervisionar o seu rebanho.

De acordo com Gênesis, Migdal Eder, ou a Torre do Rebanho, era perto de Belém, oito quilómetros a sueste de Jerusalém. O profético livro de Miqueias do Antigo Testamento é parte de uma tradição judaica que esperava que o messias viesse de Belém, da linhagem de David, que foi pastor antes de ser rei. Miqueias diz: Mas de ti, Belém em Efrata, pequena que és entre os clãs de Judá, de ti sairá um rei para mim sobre Israel, um cujas origens estão longe de volta no passado, no tempo antigo. Um pouco antes Miqueias fala dos Últimos Dias que são marcados pelo aparecimento do Senhor, que, como um pastor, reúne os perdidos, os dispersos e os aflitos do seu rebanho:

Naquele dia, diz o Senhor, vou congregar a que coxeava, e recolherei a que tinha sido expulsa, e a que eu tinha maltratado. E farei da que coxeava uma sobrevivente, e da que tinha sido lançada para longe, uma nação poderosa; e o Senhor reinará sobre eles no monte Sião, desde agora e para sempre. A comparação de Miqueias do Senhor e o pastor conclui com este versículo sobre a torre do rebanho. E tu, ó torre do rebanho, a fortaleza da filha de Sião, sobre ti virá até mesmo o primeiro domínio; o reino virá para a filha de Jerusalém. Como o pastor que cuida de seu rebanho, assim David estabeleceu Jerusalém como a capital do seu reino, e vigiava seu povo da sua cidadela no monte Ofel, um afloramento rochoso em frente ao monte do Templo de Jerusalém, e da mesma forma esta torre, esta migdal, esta magdala, tornar-se-á uma torre de vigia para cuidar do rebanho do Senhor, aquelas pessoas que o messias veio para salvar. Assim, o nome de Maria Madalena faz alusão a esta profecia bíblica de vigiar o rebanho e carrega um sentido de salvação por vir.

Mas esta imagem da torre de vigia e o rebanho aplicava-se também ao mar da Galileia, onde a pesca era o esteio de cidades e aldeias ao redor de suas margens. Por exemplo, Magadan, o lugar posteriormente conhecido como Magdala graças ao escriba bizantino, foi um grande porto para pesca, processamento e exportação de peixe, e escavações hoje revelam ali as fundações de uma torre enorme que uma vez se ergueu acima do porto. O objectivo da torre era provavelmente abrigar um farol, um guia para os pescadores no lago, e como nos é dito por João eles pescavam à noite. Outros portos também teriam tido faróis. E assim, a torre era muito parecida com a Torre do Rebanho, perto de Belém, um meio para cuidar do rebanho, que, nesse caso, eram pescadores. Vários dos próprios discípulos de Jesus eram pescadores antes de se tornarem, nas suas palavras, pescadores de homens.

Jesus gostava de dar apelidos a seus discípulos, como nos é dito em Marcos: E a Simão ele denominou Pedro; em Tiago, filho de Zebedeu, e João, irmão de Tiago; e ele os nomeou Boanerges, o que significa os filhos do trovão. Pedro vem do grego Petros, que por sua vez vem do uso de Jesus do aramaico original que era Cefas, sendo que tanto Cefas quanto Petros significam rocha. Maria Madalena teria recebido seu nome da mesma forma, Maria, a Migdal, a torre de vigia, o farol; um nome poderoso, a mulher que ajudou o Bom Pastor a proteger seu rebanho; e também um farol à noite, um iluminador, um visionário, em contraste com a rocha de Pedro; rocha versus luz». In Michael Haag, Maria Madalena, Zahar, 2018, ISBN 978-853-781-739-1.

Cortesia de Zahar/JDACT

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Deana Barroqueiro no 31. O Corsário dos Sete Mares. «E Iria? Que parte teve nessa história?, pergunta a mulher do mercador, enfadada com os desvios que os homens davam constantemente à saborosa prática sobre as cativas…»

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Cochim

«(…) E como haveis de o matar?, perguntara el-rei, rindo. Senhor, de um só golpe todo o matarei. Assi!, respondera dom Lourenço e, levantando a alabarda, desferira um golpe no chão com tamanha força que a lâmina toda se meteu pelo sobrado dentro, arrancando muitos aplausos e brados de espanto aos assistentes. Não há dúvida que com tal golpe já todo o fogo será morto, felicitara-o Huriabem, encantado.

Senhor, eu bem vejo que não posso escapar das chamas, dissera dom Francisco, em tom de profunda tristeza, aproveitando a boa disposição d’el-rei e dos cortesãos para apresentar um novo pedido. Mais tarde ou mais cedo, o fogo queimará as casas onde guardo as fazendas d’el-rei de Portugal, vosso irmão, e os aparelhos dos navios da armada, que será a maior perda. Eu fui criado na guerra e nunca tive receio dela, mas agora tenho medo do fogo que qualquer mouro de Calecut me poderá pôr na porta, o que não me deixa repousar nem de noite nem de dia. Rogo a Vossa Alteza, por grande mercê, que, em lugar das casas de canas e ola que nos arderam, mas deixe fazer de pedra e telha, à nossa maneira, onde tudo esteja seguro. Porque, se o não puder fazer, ainda que eu e todos os portugueses estejamos prontos para morrer por vosso serviço, teremos de ir invernar em Angediva. Huriabem acabara por ceder aos rogos do príncipe e dos caimais, para que não fizesse inimigos daqueles poderosos estrangeiros que o haviam socorrido na guerra, e dera o seu consentimento ao vizo-rei para a construção da fortaleza em pedra, com a condição de não cobrir imediatamente os edifícios com telha, a fim de não escandalizar os seus súbditos. Dom Francisco lançara logo mãos à obra, pondo a gente comum e os fidalgos a trabalhar lado a lado, sem lhes dar descanso, a acartar e assentar pedra, a escoar com baldes a água das fundações, que eram muito próximas do mar, ou a fazer qualquer outra tarefa necessária. O rajá e o príncipe vinham visitar as obras e pasmavam de ver os fidalgos cobertos de lama a partir pedra ou vergados sob o peso de cestos e baldes. Nobres cavaleiros a trabalharem como escravos!, exclamara Huriabem. Quem me dera ser rei de tal gente que assi se sacrifica pelo seu soberano, mesmo quando se acham no outro lado do mundo, longe das suas vistas!

Só lhes faz bem, Alteza, rira-se o vizo-rei, porque ficam com os braços mais compridos, o que lhes dará vantagem na guerra, quando empunharem a espada ou a lança. Vestido, como sempre, de um saio de lã e boleta aberta do mesmo tecido, carapuça branca na cabeça e uma caninha na mão, dom Francisco distinguia-se pela simplicidade do trajo e nobreza da figura, a percorrer a obra cada dia, provendo a todos e tudo vigiando. Dava pressa aos homens, ansioso por terminar os panos das muralhas e as fortificações, não fosse o rajá mudar de aviso e suspender as obras, escondendo as bombardas que mandava trazer desmontadas das naus, durante a noite, para não criar alarme nos gentios e mouros que poderiam denunciá-lo a Huriabem. A conclusão dos trabalhos, em tão breve tempo que aos próprios construtores admirara, fora festejada com procissão, muitos comeres, música e danças de moças gentias.

E Iria? Que parte teve nessa história?, pergunta a mulher do mercador, enfadada com os desvios que os homens davam constantemente à saborosa prática sobre as cativas, para murmurarem das invejas dos capitães e das lutas pelo poder. Contai-nos, por vossa vida, o resto da sua lenda. De início, como vos disse antes, a vida parecia correr-lhes bem, mas quando começaram as guerras entre Afonso Albuquerque e o bando de Cochim, Iria Pereira apartou-se de António Real ou ele dela…

O som de um apito interrompe-o e o grumete, que acaba de virar a ampulheta, diz com voz entoada: Uma hora passou,/ outra começou/ melhor há-de ser/ se Deus quiser. E logo brada: É meia-noite. A pé, grumetes, qu’é o quarto da modorra, a pé! Por momentos a Cisne anima-se com o movimento dos matalotes que trocam de turno e alguns dos assistentes erguem-se com pena de deixar a história por acabar. Bento Castanho conforta-os: Vejo que se fez tarde, meus amigos. Ide dormir, que amanhã aqui estarei para contar a história de Iria, se houver quem ainda me queira ouvir. Com muitos risos, bênçãos de bem haja!, Deus vos bendiga! e desejos de uma santa noite, todos se recolhem às câmaras, catres ou recantos onde têm lugar para estender a esteira ou a rede de dormir. Céu salteado, vento fresco e variado!, entoa ao longe uma voz, que muitos já não ouvem». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

Deana Barroqueiro, JDACT, Literatura, Fernão Mendes Pinto, Crónica, 

No 31. A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Conhecíeis-lhe outras marcas? Conheço-lhe o corpo como ao meu próprio. Se alguém alguma vez o viu nu, fui eu e o seu camareiro Lopo Soares, que a mais ninguém o consentia»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Frei Estêvão Sampaio. ... Frei Estêvão! Não me faça chorar. Meu infeliz rei! É verdade, Sebastião Neto, é verdade. Infeliz..., clique clique clique as tesouras do mestre a aparar-me a barba. Mas eu, para o não chorar, ando antes à procura daqueles que de mais perto com ele viveram... Por mor de quê, frei Estêvão? Digamos que por mor de recolher os particulares sinais de seu corpo, de modo a poder reconstituir-lhe o verdadeiro vulto, como se eu fosse pintor e o quisesse debuxar na tela da minha alma. E veio Vossa Reverência bater à minha porta. Meu bom Sebastião Neto, quem melhor do que um oficial como vós para me dar a conhecer minúcias de que mais ninguém suspeita? Como o ministro de Deus conhece as intimidades da alma, o barbeiro, tal como o físico, conhece-lhe os mais íntimos sinais do corpo... E vós, padre, divulgais segredos de confissão? E quem vos pede que vos confesseis? Mas... Ora, Sebastião Neto. Quereis contar? Em que confusão me colocais! Conheceis sinais particulares do corpo de el-rei? Hesitava o homem. Por fim disse. Nem todos, nem todos, meu padre, cliqueava a tesoura elogiada. Nem todos, mas... Vejo que vos acodem à memória, atiçava eu as brasas. Verdade, frei Estêvão. Lembro-me de que..., ora deixai ver..., aí um ano ou dois antes que el-rei partisse para África..., mandou-me chamar. Andava de um lado para o outro, agarrado aos queixos, cheio de dores, que os reis também têm dores, sabeis? Arreiguei-lhe um dente da queixada de baixo, do lado direito... Os palavrões que me atirou! Quereis que vos diga? Dizei. Olhai que só comigo rebentava assim como um pelouro, ali sozinhos os dois no seu guarda-roupa, que de resto Sua Alteza..., uma contenção, uma cortesia!... Mas ali, que demasia e despejo! Ah! Fi de pu…! Porra, cabr… ladravaz, que te mando enforcar! E eu a rir, a empunhar o alicate, a filar-lhe o molar, a torcê-lo, a puxá-lo: Já vai passar, Alteza. Tende calma!... Depois mostrava-lhe a tachola na ponta da pinça: Fi de put… e ladravaz, Alteza, era este. Mandai-o enforcar a ele e dava-lhe a gargarejar um copo de água ardente para lhe adormentar a dor... Que sofrido era! Levantava-se, tentando sorrir: Desculpai, mestre. Mas crede que não devem doer tanto cutiladas de mouros... E o vão do dente lá lhe ficou na boca... Claro. Aquele não nasce mais.

Conhecíeis-lhe outras marcas? Conheço-lhe o corpo como ao meu próprio. Se alguém alguma vez o viu nu, fui eu e o seu camareiro Lopo Soares, que a mais ninguém o consentia. A mim, à puridade, pedia-me que lhe desse massagens quando lhe vinham as cólicas... Estou com curiosidade. Era um homem de muitas forças. Desde pequeno, no exercício das armas, da cavalaria, da montaria, desenvolvera de forma invulgar todo o lado direito do corpo, a mão direita mais possante e esse braço mais comprido... Quem vos poderá falar das medidas é o seu alfaiate... E onde...? Mora aqui perto. Se quiserdes, levo-vos lá. Quero, sim. Mas primeiro acabai». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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terça-feira, 30 de agosto de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Devo-o ao que me contava minha irmã, que foi dama de Sua Alteza a rainha dona Catarina. Mas a maior parte desbotou-se-me da memória... Eu também não pretendo saber muito, mas particularmente indagar de quaisquer marcas…»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) ... enquanto  para vós Portugal deixou de existir... E não deixou? ...e não passa de possessão da Espanha... E não passa? ...mesmo quando o seu legítimo rei, depois de atravessar o limbo, se apresenta a reclamar os seus direitos... Mandavam-me embora para a minha cela, malavindos consigo próprios... Dias e noites, noites e dias... Montanhas nevadas, desfiladeiros despenhados, vales e planícies espraiados, campos verdes, caminhos áridos, sol ardente... A que trabalhos te deitas, frei Estêvão Sampaio..., à chuva e ao vento, às tempestades desabridas, às neves e ao desvairo das águas transbordadas..., os meses que passam, invernada, estiagem, outonada, primavera..., os roubadores dos caminhos os pequenos e os grandes, que o maior de todos é aquele que rouba impérios e reinos e semeia a todo o lado destruição e morte, esculcas e meirinhos, planta forcas no alto dos outeiros e assenta garrotes nos calabouços das torturas..., Abril, Maio, Junho..., ir e voltar... A que trabalhos te dás, Estêvão Sampaio, só porque acreditas que o homem de Veneza é o teu rei e ainda chega a tempo de salvar o reino espoliado. O embaixador de França comunicou ao seu soberano Henrique quarto a detenção do meu senhor. Ainda tem dúvidas, também ele, quanto à identidade de el-rei. Não as tem a Senhoria? Não as tem a maior parte dos meus companheiros, que, nascidos um pouco antes ou um pouco depois da batalha, não tiveram ocasião de o conhecer? Não eu, que conheci el-rei na corte. Se me faço eco das dúvidas dos outros, é que mo não deixaram ver em São Marcos. Não é por isso mesmo que viajo a Portugal, a procurar os verdadeiros sinais identificadores de Sua Alteza? A pé, com o bordão do caminheiro, montado num asno burro, demudado o hábito de frade em trapos de mendigo, no porão enjoado de uma nau, disfarçado de almocreve no comboio de uma cáfila, de comerciante na caravana de traficantes, candongueiros e contrabandistas...

Mal cheguei, tornado já a meu natural estado de clérigo dominicano, fui procurar o cónego Rodrigues Costa de quem sempre me conservei particular amigo. Encontrei-o no fim de um lausperene, na igreja da Boa Hora. Frei Estê... Chiu! Tapei-lhe a boca. Não pronunciasse o meu nome! Esquecido de que eu já havia sido preso por...? A que vinha Minha Reverência e seu grande amigo? perguntava. Deu-me pousada em sua casa, na rua da Calcetaria, e durante a ceia e pela noite dentro falámos horas descuidadas. Queria eu ouvir pessoas que tivessem tido trato quase íntimo com el-rei e lhe conhecessem os sinais do corpo? Olhasse. Ali perto, na rua Nova dos Ferros, morava ainda a sogra de Rui Teles Meneses, que havia sido alcaide-mor de Moura. A irmã dela fora dama da rainha... E porque não falava com o antigo fronteiro da torre de Belém, Sebastião Neto, que fora barbeiro de el-rei? Apesar dos seus cinquenta bem puxados, ainda tinha loja no beco do Ourinol, ali a São Nicolau. Barbeiros eram gente curiosa, deviam saber coisas, conhecer o paradeiro do alfaiate, do camareiro, do sapateiro..., ou as mulheres deles, mais indagadeiras de solheiro...

Na manhã seguinte, encetava eu a minha ronda de inquérito. Na rua Nova, na moradia indicada pelo meu amigo, entrei pelas arcadas a uma porta ao lado de um oculista e subi, por escadas estreitas, escuras e malcheirosas, ao quinto piso. Bati. Veio abrir uma mulherzinha magra, chupada, o cabelo grisalho desalinhado, toda ela inculcando privações. Que deseja Vossa Reverência?, perguntou com delicadeza e cortesia inesperada. É aqui que mora uma nobre dama, mãe do senhor alcaide-mor de Moura, Rui Teles Meneses? Um sorriso esclareceu-lhe da nobreza esquecida o semblante: Sou eu, meu senhor. Venho da parte de Sua Reverência o cónego Lourenço Rodrigues Costa... Conheço muito bem. Costumo assistir à missa dele na igreja da Boa Hora. E que recado traz Vossa Reverência?

Permita que me apresente, minha senhora. Frei Estêvão Sampaio. Acabo de chegar de Veneza e encontro-me aposentado em casa do meu amigo cónego Lourenço. Pretendo reunir dados sobre o nosso malogrado rei dom Sebastião... Deus o tenha em glória! ...terá...,  e num rol de pessoas que o conheceram de perto, sugerido por Sua Reverência, figura Vossa Senhoria. Ah! É curioso! Já lá vai um ror de anos... Mas queira entrar, frei Estêvão. Entrei e, sentados a uma mesinha coberta com uma renda desbotada e suja, com uma jarra de flores contrastantemente viçosas, começámos a conversar. O que eu sei, meu senhor, pouca coisa é. Devo-o ao que me contava minha irmã, que foi dama de Sua Alteza a rainha dona Catarina. Mas a maior parte desbotou-se-me da memória...

Eu também não pretendo saber muito, mas particularmente indagar de quaisquer marcas especiais que el-rei tivesse em seu corpo. Sim, sim..., deixe ver..., lembro-me..., não sei se no esquerdo se no direito..., creio que era no pé direito, no dedo pequeno..., uma verruga tão grande que parecia unha de um sexto dedo... E outros sinais? Não sei, não sei, já não sei nada, repetia desolada. A lembrança apagada. Que escuridão!..., e caiu de súbito no encerro interior que, após uns minutos de silêncio à espera que ela continuasse, vendo-a ensimesmada, levantei-me e saí sem que o sentisse.

Não me foi difícil encontrar a loja de Sebastião Neto no beco do Ourinol. Mal entrei... Muitas bo's tardes a Vossa Reverência!, e estalava no ar a toalha a sacudi-la e estendê-la, enquanto me sentava... Aparar a barba? Rapar a coroa? Não, não, a coroa não!, respondi vivamente. Não? Parece um matagal. Nem se distingue que Vossa Reverência..., se não fosse o hábito... Se tenho que me disfarçar nas jornadas do regresso, pensei, convém-me eliminar a tonsura. Que me importa que o barbeiro resmungue, que bem lhe entendo o esgar contra os frades. Só a barba, por favor, senhor Sebastião Neto. Um clarão de sol o semblante do homem: Pois Vossa Reverência conhece-me? E quem não há-de recordar-se de um tão excelente servidor de Sua Alteza, el-rei dom Sebastião? Ah! meu senhor...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

 Cortesia de Difel/JDACT

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Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… ambos repararam que a rapariga galega parecia mais solta, talvez devido ao vinho, e sorria para os homens, pois vários lhe haviam dito que era a mais bela da tenda»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Os convidados emparelhavam-se, como era costume, comendo dois a dois de cada escudela de prata. Embora estivesse ao lado de Chamoa, Paio Soares ficou furioso quando compreendeu que era Afonso Henriques que formava par com a rapariga galega. Irritado, o nobre portucalense foi obrigado a partilhar a sopa com o conviva à sua direita, o pai de Chamoa, Gomes Nunes Pombeiro, enquanto escutava os sussurros trocados pelos apaixonados. Podemos voltar a passear, sugeriu Afonso Henriques, fixando os olhos verdes da rapariga. Chamoa corou, batendo as pestanas. O príncipe amava-a, queria voltar a encontrar-se com ela, e sentiu o coração acelerar. Nem queria acreditar no que lhe estava a acontecer, o seu sonho de criança tornava-se realidade! Eufórica, sorriu e aprovou: Sim, iremos ao rio da Loba.

Afonso Henriques mergulhou a colher na escudela, enchendo-a de sopa e Chamoa imitou-o. Os dois encostaram os ombros, sentindo o calor do corpo do outro, e ela riu-se, divertida e enamorada. O príncipe levou a colher à boca, sorveu o líquido e depois sorriu-lhe, mas a rapariga franziu a testa. Com a mão direita pegou numa napeira, que estava pousada na mesa, e ergueu-a à boca de Afonso Henriques, limpando-a enquanto dizia: Tenho de cuidar de vós. O príncipe piscou-lhe o olho e acrescentou: Espero que a vida inteira. Chamoa riu-se e corou de novo, mas de repente alguém lhe lançou um elogio, talvez Gonçalo ou mesmo o Braganção e ela distraiu-se, enquanto continuava a comer a sopa. A seu lado, Afonso Henriques reparou que a mãe estava atarefada a verificar se as pedras serpentinas mudavam de cor quando mergulhadas nos caldos de amêijoa ou berbigão, vigiando possíveis envenenamentos. Abanou a cabeça, e piscou-me o olho, enquanto eu notava que o prudente Paio Soares não tornava público o seu agastamento, pois um desaguisado com Afonso Henriques colocaria em risco a sua iminente promoção a mordomo-mor. Em esforço, só vendo as costas de Chamoa, mordia o ciúme e conversava com o pai dela sobre a caça aos ursos em Tui.

Na tenda, as agrestes palavras de Teotónio começavam já a ser esquecidas, até porque o Trava, sempre sorrateiro, pedira aos taberneiros que juntassem menos água ao vinho, como se fazia na Galiza, e os efeitos sentiam-se, nobres e senhoras falavam mais depressa e riam mais alto. A crueldade dos súbditos suspende-se quando são bem tratados. No final do jantar, foram servidos o pão de ló e os biscoitos de flor de laranjeira, e dona Teresa, que se poupara no vinho sabendo que ia discursar, levantou-se e informou a alegre assembleia que Bermudo, marido de sua filha Urraca Henriques, seria o novo governador de Viseu, o que originou as primeiras palmas da tarde. O visado corou, ergueu-se e fez uma pequena vénia à sua antiga esposa, agradecendo a honra, e depois beijou a actual na face, o que a deixou também ruborizada. Preparava-se Bermudo para realizar um discurso de gratidão quando dona Teresa, revelando o apreço que sempre tivera por ele, mandou-o, com um gesto, sentar-se e calar-se, o que ele fez de pronto, mostrando a todos que nada mudara no trato entre os antigos, mas malsucedidos, amantes.

De seguida, dona Teresa encarou Paio Soares, que se levantou para que todos o pudessem ver, ao mesmo tempo que sacudia do balandrau as migalhas e os bocados de comida, por forma a que o seu reluzente tecido mais se realçasse. A notícia foi a esperada: iria ser o mordomo-mor do Condado! O senhor da Maia executou uma vénia pomposa, agradecendo o título ao mesmo tempo que exibia a vestimenta, provocando risinhos em Chamoa. Terminadas estas proclamações, entraram na tenda jograis, trovadores e músicos. Uma imediata tensão se apoderou de mim e dos meus irmãos quando vimos aparecer Ordonho e Fruela. Contudo, os bobos galegos eram gordos mas não estúpidos, e não repetiram as afiadas chalaças da véspera, brindando aquela nobre plateia com cantigas de amigo e trovas célebres da Galiza. A dado momento, relembraram El Cid, o valente combatente que décadas antes tinha batido os árabes, e declararam-se orgulhosos por estar entre eles um homem capaz de semelhantes feitos, uma óbvia e encomendada alusão a Fernão Peres Trava, que sorria, satisfeito.

A um canto da sala, Ramiro e Raimunda, cúmplices desde o dia anterior, observavam o florir do encantamento de Afonso Henriques por Chamoa. No entanto, ambos repararam que a rapariga galega parecia mais solta, talvez devido ao vinho, e sorria para os homens, pois vários lhe haviam dito que era a mais bela da tenda». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

 JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Vi Afonso Henriques piscar o olho à minha prima Raimunda, agradecendo-lhe a informação preciosa. A sua mãe estava aflita, e o Trava também devia temer a contestação dos portucalenses»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Soure, Sábado de Aleluia, Abril de 1126

«(… ) Rapidamente os presentes retiraram as suas conclusões. Para os galegos e para os restantes apoiantes da rainha e do Trava, aquele ataque religioso confirmava a divisão cavada na corte e o ódio larvar sentido pelos portucalenses. Para estes, exceptuando Paio Soares, a ameaça de excomunhão era uma bem-vinda vantagem moral de quem não tinha ainda força militar para mais. Contudo, poucos ficaram convencidos de que aquela forte repreensão fosse suficiente para alterar as ideias futuras do casal régio. dona Teresa já antes fora excomungada, já mandara prender o arcebispo de Braga, já lutara contra a irmã Urraca, já afrontara Afonso de Aragão e também o arcebispo de Compostela, e nada a fizera parar. Não seria o discurso de Teotónio, por mais veemente que fosse, que lhe mudaria o carácter ou os propósitos.

A rainha limitou-se, portanto, a suspirar quando o prior de Viseu informou a congregação de que avisaria Roma daquela excomunhão. Até que o Papa se pronunciasse, havia de correr muita água debaixo das pontes. Levantando-se, a rainha sorriu a Teotónio, com uma desfaçatez magnânima, e abandonou a missa alegre e bem-disposta, de braço dado com o Trava. Depois de a igreja esvaziar, Soeiro Mendes e os irmãos Moniz de Ribadouro, bem como Afonso Henriques e seus amigos, dirigiram-se a Teotónio, para lhe beijar a mão, como era costume na Páscoa. Contente, Egas Moniz afirmou: O Trava ficou sem pinga de sangue. Os outros acenaram com a cabeça, concordando, e o prior resmungou as suas fúrias, que só terminaram quando pousou uma mão carinhosa no ombro do príncipe e disse: Querem tirar-vos o Condado. Mas nós não deixaremos. O meu grande amigo Afonso Henriques, apesar de muito respeitar Teotónio, a quem considerava um santo, calou a sua descrença nos resultados deste público vexame. Embora captasse o febril ambiente conspirativo entre os portucalenses, sentia-se estranhamente desinteressado. Como me confessou depois, queria ir ter com Chamoa, não voltara a falar com ela desde a véspera e só a vira na igreja, sempre linda, sorridente, sardenta e apetitosa, de touca no cabelo e botinhas de couro de cervo. Mas, quando saímos, foi Raimunda quem apareceu, exaltada.

A rainha fez de conta, mas está morta de medo! Diz que a querem envenenar. Obrigou os cozinheiros a provarem o jantar à frente dela! Quer chifres de unicórnio nas sopas, e ágatas e línguas de serpente nos molhos das carnes e dos peixes, para ver se mudam de cor! Dona Teresa tinha o pavor dos envenenamentos, e muitas vezes mandara para trás travessas repletas de manjares por suspeitar do cheiro, da cor, ou por ter apenas um poço de medo no lugar do coração. Banquetes reais já haviam sido amputados das melhores iguarias só porque ela temia o aspecto de uma vianda de leite, de uma peixota, ou de uma carne estufada. Devido ao que acontecera ao marido, em Astorga, tais receios não eram de estranhar, mas naquele dia lembro-me de que comentei: Ela que coma só passas! Gonçalo protestou de pronto: Que dizeis, só frutos secos? Cruzes, estamos pior do que os apóstolos, na Última Ceia!

Vi Afonso Henriques piscar o olho à minha prima Raimunda, agradecendo-lhe a informação preciosa. A sua mãe estava aflita, e o Trava também devia temer a contestação dos portucalenses. Animado, abraçou-me e a Gonçalo, e dirigimo-nos para a tenda onde decorreria o jantar de Páscoa. Quanta ilusão tínhamos...» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes…»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Soure, Sábado de Aleluia, Abril de 1126

«(… ) Não cometerás adultério é um dos mandamentos basilares de Deus, transmitido a Moisés nas tábuas da Lei, e estes dois ignoram-no há tantos anos!, bramou ele, no fim da missa, só para quem o ouviu. Tudo neles era pecaminoso: a traição inicial a Bermudo, o inenarrável destino que lhe deram, casando-o com a filha mais velha de dona Teresa, tornando o incesto duplo; e depois esta permanente exibição de pecados gulosos, sabendo todos que Fernão Peres Trava era casado, tinha mulher legítima na Galiza, e prole vasta para cuidar! Agora, a infâmia crescia para um patamar ímpio, com o desejo de um filho varão. E tinham o descaramento de o revelar, como se não se importassem com as suas consequências nefastas! Quando viu dona Teresa fechar os olhos, satisfeita com as festas que o Trava lhe fazia, Teotónio perdeu a tineta e dirigiu-se ao púlpito, agarrando-o com as duas mãos. Ó gente pecadora, ouvi o que vos digo!

Nas primeiras filas, ainda ninguém prestava atenção às palavras do prior. O Braganção abraçava agora Sancha Henriques, que se mostrava trombuda e enciumada; e dona Teresa pousara a cabeça no ombro do amante e permanecia de olhos fechados. Haveis pedido perdão a Deus pelas vossas tentações da carne? Pois não foi suficiente, e tereis de penar para obter as graças de Cristo! O Trava mirou o prior, desagradado, mas dona Teresa nem se mexeu. Até na casa do Senhor praticais o adultério!, gritou Teotónio. O Trava alertou subtilmente a rainha, que abrira os olhos ao ouvir o grito, indicando-lhe que Teotónio se estava a referir a eles. Dona Teresa franziu a testa, sem perceber. Não vos bastou o incesto do passado?, rugiu o prior. Ao escutar a palavra proibida, toda a igreja se calou, pois não houve uma única alma que não soubesse a quem ele se referia. Não vos bastou esse terrível pecado, que Deus considera aberrante? Ainda tendes de o agravar com um adultério vergonhoso?

A infanta Urraca Henriques estava já a choramingar, pois sofria sempre que alguém relembrava as origens duvidosas do seu casamento. Herdara o marido da mãe, mas Bermudo era bom homem, não era justo aquele fustigar impiedoso. Ao seu lado, o esposo mantinha os olhos no chão, envergonhado. Já dona Teresa sentou-se, hirta e zangada, olhando para Teotónio em desafio. Contudo, o prior de Viseu não se acanhou. É bem sabido que vós, Fernão Peres, tendes esposa legítima perto de Compostela! Porque não passais com ela as Aleluias? O Trava empalideceu. Nunca esperara tal humilhação pública e não sabia o que fazer. Num Domingo de Páscoa, não se interrompia a homilia de um prior, ainda para mais um com fama de santo! E vós, dona Teresa, sabeis que a excomunhão é a punição dos que não respeitam as regras da Santa Madre Igreja? Um rumor espantado percorreu a multidão. Teotónio ameaçava a rainha com uma excomunhão, em plena missa de Domingo de Páscoa? Até Afonso Henriques estava surpreendido com tamanha violência verbal! Porém, a seu lado, a família de Ribadouro mantinha-se calma, como se nada disto fosse uma surpresa, e foi essa inesperada tranquilidade que levou Paio Soares a murmurar a Egas e Ermígio, volteando o seu balandrau azul-escuro: Isto foi ideia vossa, é tão certo como me chamar Paio!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

sábado, 20 de agosto de 2022

O Corsário dos Sete Mares. Deana Barroqueiro. «Mandou a alguns dos seus homens de confiança que escondidamente fossem lançar fogo às casas de madeira dos portugueses e da feitoria (que mantinha vigiadas para não deixar o fogo alastrar e consumir as mercadorias armazenadas)…»

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Cochim

«(…) Se quereis saber como tudo se passou, anui, agradado do elogio, eu vo-lo contarei com toda a verdade, porque a tudo fui presente. Com um murmúrio de aprovação, cada um se acomoda o melhor que pode no espaço exíguo e desconfortável da coberta para ouvir o soldado da Índia que, como aquela dona dizia, é um bom contador de histórias. Bento Castanho cerra os olhos por momentos, como para arrumar as ideias, e começa: Para conseguir a fortaleza de pedra, o vizo-rei jogou com a gratidão e o receio do soberano a quem, no ano de mil quinhentos e três, os portugueses tinham ajudado a vencer o exército do Samorim de Calecut, livrando-o da sua vassalagem e fazendo dele um rei muito mais poderoso. Em paga desse auxílio, Huriabem permitira aos primos Albuquerque a construção de um forte de madeira na boca do rio, o lugar escolhido pelo feitor Diogo Fernandes Correia, por ter uma bela baía onde se poderia fazer um amplo porto para carregar as naus. Ao longe, os três grandes rochedos, dispostos em fileira e seguindo a linha da costa, pareciam sentinelas vigilantes…

Pela sua privilegiada situação, a sul de Calecut, Cochim era a escolha óbvia para capital da Índia portuguesa, necessitando para tal de uma fortificação de pedra e cal, defendida por muralhas, uma forte artilharia, sustentada por uma boa povoação de gente lusa com cristãos da terra que, em pouco tempo, se convertesse numa cidade populosa e próspera. Francisco de Almeida viera determinado a fazê-la, recorrendo a todos os meios pacíficos, como odiaas, peitas e promessas de futuros benefícios, para vencer a relutância d’el-rei Huriabem, o qual, muito embora predisposto a satisfazer todos os pedidos dos seus aliados cristãos, achava que uma construção muralhada, armada com grossa artilharia seria uma clara manifestação de medo face aos seus potenciais inimigos e, portanto, uma grande perda da sua honra. Para mais, querendo o vizo-rei construir edifícios cobertos de telha, um privilégio de que em todo o Malabar apenas gozavam as casas dos reis ou os templos dos seus pagodes e que, por uma antiga lei de Calecut, era também interdito aos pouco poderosos reis de Cochim, que se arriscavam a perder o reino em caso de desobediência.

Não querendo de nenhum modo agravar quem lhe concedera o monopólio da pimenta, carregando-lhe em cada ano todas as naus do reino com a preciosa especiaria, Francisco de Almeida fingira acatar a determinação do soberano e fizera construir uma grande povoação de muitas ruas com casas de madeira sobradadas, cobertas de palha ao modo malabar, onde também havia boticas e tendas da gente da terra que vendiam toda a sorte de coisas de comer, boas e baratas. Ao mesmo tempo, peitava em segredo os caimais, os seus duques e condes, bem como os regedores do reino, fazendo-lhes grandes honrarias e cumulando-os de presentes; como o seu filho Lourenço conquistara a amizade do príncipe herdeiro, que lhe chamava irmão, contava ter nele um formidável aliado. O rajá, todavia, não se decidia a satisfazer-lhe o pedido e o vizo-rei recorreu a remédios mais extremos. Mandou a alguns dos seus homens de confiança que escondidamente fossem lançar fogo às casas de madeira dos portugueses e da feitoria (que mantinha vigiadas para não deixar o fogo alastrar e consumir as mercadorias armazenadas), recompensando os donos pelos seus prejuízos à custa do rei Huriabem que lhes pagava os soldos. Por fim, fizera incendiar a sua própria casa e a igreja, que deixara arder até ao fim, para ter maior razão de queixa contra os mouros de Calecut que, a mando do Samorim, queriam escorraçar de Cochim os portugueses que defendiam el-rei contra os seus inimigos.

Nessa tarde, apresentara-se com o seu filho na corte do rajá, para agradecer a preocupação e o pesar que Sua Alteza manifestara pelo desastre. Apesar de muito moço, Lourenço ganhara o cognome de Aquiles Português, por ser um formidável guerreiro e se mostrar indestrutível em combate, com a sua armadura branca e a portentosa alabarda. Quando ia aos paços reais, nunca deixava de levar a arma, por saber quanto a sua vista maravilhava o próprio rei, que sempre lhe pedia para fazer algumas demonstrações com ela. Não haverá mais trabalho nem medo do fogo, anunciara o príncipe, indicando Lourenço que se mantinha respeitosamente atrás de seu pai, porque este valente cavaleiro me confirmou que vem para o matar com a sua poderosa alabarda. Era a arma mais espantosa que gentios e mouros alguma vez haviam visto no Oriente: uma haste grossa, chapeada com uma barra de ferro, dourada e retorcida em redor dela, com uma lâmina de quase meio côvado de comprimento, tendo no revés um bulhão ou punhal de três pontas e um punção roliço; na outra extremidade da haste, brilhava o aço de um ferrão quadrado, também de meio côvado. Era tão pesada que nenhum outro homem na armada a conseguia menear». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

Deana Barroqueiro, JDACT, Literatura, Fernão Mendes Pinto, Crónica,

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Os Bastardos Reais. Isabel Lencastre. «… conde de Arundell, que foi um dos primeiros entre os nobres que ajudaram Henrique de Bolingbroke, o filho de João de Gaunt, duque de Lencastre, a conquistar a coroa de Inglaterra. O contrato nupcial foi assinado a 21 de Abril de 1404»

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A Bastarda do Formoso

«(…) O jovem conde, porém, não anuiu de bom grado ao casamento, nem nos desposórios nem quando posteriormente se tratou de o efectuar. Fugiu para Avinhão, de onde só regressou apertado pelas ameaças paternas e a muito custo, ante o altar, disse o sim sacramental, em 1378. Mas não consumou o casamento. Morto o rei seu pai, Afonso pediu e, em 1379, obteve o divórcio, mas dele não se aproveitou, pois que não só consumou o matrimónio como teve de sua mulher vários filhos. E dona Isabel, esposa exemplar ou pura e simplesmente agradecida, nunca deixou de estar ao lado do marido, a quem acompanhou nas guerras que ele fez ao rei João de Castela, seu meio-irmão. Sofreu por isso a prisão, a confiscação dos seus bens e o exílio.

Após a morte do conde de Gijón, em Marans (França), no ano de 1395, dona Isabel regressou a Portugal, trazendo consigo seis filhos: (1) Pedro Noronha, arcebispo de Lisboa e pai de nada menos do que sete filhos, todos evidentemente bastardos; (2) Fernando Noronha, conde de Vila Real pelo seu casamento; (3) Sancho, primeiro conde de Odemira; (4) Henrique Noronha, capitão da gente de guerra na tomada de Ceuta; (5) João Noronha, sem descendentes; e (6) Constança Noronha, primeira duquesa de Bragança pelo seu casamento com dom Afonso, filho de dom João I, de quem não teve geração.

De dona Isabel descendem, entre muitos outros, o escritor e jornalista Tiago Rebelo, o pintor Luís Noronha Costa e a fadista Teresa Tarouca, que igualmente descende de Afonso Dinis e Urraca Afonso, bastardos de Afonso III. A condessa de Noroña e Gijón é ainda antepassada de Guilherme d’Oliveira Martins, que também descende de dona Teresa Sanches e Afonso Dinis (bastardos de Afonso III), e do advogado Francisco Teixeira Mota, que, sendo descendente de dona Teresa Sanches, dona Urraca Afonso e Martim Afonso Chichorro, descende também por via bastarda do rei Afonso IX de Castela.

Os Bastardos de Avis. Os Bastardos do Rei Bastardo

O único bastardo que foi rei de Portugal teve, também ele, filhos fora do casamento: um rapaz e uma rapariga, nascidos antes de João I casar com dona Filipa de Lencastre. O rapaz chamou-se Afonso e viu a luz entre 1370 e 1377; a rapariga recebeu o nome de Beatriz e veio ao mundo entre 1378 e 1380. Discute-se ainda hoje o nome de sua mãe. Mas a maioria dos historiadores e genealogistas entende que eles nasceram da relação do rei de Boa Memória, quando era ainda mestre da Ordem de Avis (e estava por isso obrigado à castidade), com Inês Pires, que era muito provavelmente filha de Pêro Esteves, o Barbadão. Conheceram-se, ao que se diz, numa cerimónia religiosa da Ordem. E só se separaram quando dom João casou. Inês saiu então da sua casa, ao pé da Cordoaria Velha, em Lisboa, e recolheu-se no Convento de Santos, de que se tornou comendadeira.

Dona Beatriz tinha pouco mais de 13 anos quando se tratou do seu casamento em Inglaterra. A ideia do consórcio partiu da rainha dona Filipa de Lencastre, sua madrasta, que o recomendou vivamente ao rei Henrique IV de Inglaterra, seu irmão. Acordou-se então que dona Beatriz havia de casar com Tomás Fitzalan, conde de Arundell, que foi um dos primeiros entre os nobres que ajudaram Henrique de Bolingbroke, o filho de João de Gaunt, duque de Lencastre, a conquistar a coroa de Inglaterra. O contrato nupcial foi assinado a 21 de Abril de 1404. E, em Outubro de 1405, dona Beatriz partiu para Inglaterra. Foi por mar com muita honra, diz o Livro da Noa de Santa Cruz de Coimbra, levando um avultado dote de 50 mil coroas. Acompanhou-a seu irmão, Afonso.

A chegada a Inglaterra no princípio de Novembro foi solene. E solene também foi o casamento a 16 do mesmo mês, celebrado na presença de Henrique IV e de toda a corte, na capela gótica de Lambeth, que fica sobre a margem direita do Tamisa, escreve o conde de Sabugosa, que acrescenta: Era o conde de Arundell a esse tempo um rapaz alto, forte, espadaúdo, e realizando o perfeito tipo da raça a que pertencia. Celebrado o matrimónio, partiu dona Beatriz para os domínios de seu marido, acompanhando-a sua dama favorita, Inês Oliveira. Viveu tempos felizes. Mas, aos 23 anos, ficou viúva, depois de Tomás falecer, vítima de uma epidemia, a 13 de Outubro de 1415, o dia em que ele completava 34 anos. Sem filhos, dona Beatriz teve de abandonar o castelo de Arundell. Possuía, no País de Gales, as terras que constituíam as suas arras. Os herdeiros do marido contestaram-lhe a posse, invocando a sua qualidade de estrangeira. Mas ela fez-lhes frente e venceu-os.

Em 1432, John Holland, conde de Huntingdon, filho do duque de Exeter, pediu a mão da condessa viúva de Arundell. E o casamento celebrou-se. Em 1439, acompanhou o marido, que foi combater para França. E, achando-se em Bordéus, adoeceu e, a 25 de Outubro, morreu. A instâncias da família do primeiro marido, foi o seu corpo trasladado para Inglaterra e enterrado no sumptuoso mausoléu da capela de S. Nicolau, ao lado do conde com quem primeiro casara». In Isabel Lencastre, Os Bastardos Reais, Os Filhos Ilegítimos, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-845-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

 JDACT, História de Portugal, Isabel Lencastre,  O Paço Real,  Conhecimento,

Os Bastardos Reais. Isabel Lencastre. «Estes incestuosos amores poderão ter tido um fruto, dona Isabel, uma menina nascida em 1364, quando dom Fernando ainda era solteiro. Há quem a diga filha de dona Beatriz, o que não parece de todo impossível»

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O Bastardo do rei Bravo

«(…) De dom João I descendem, por via legítima ou ilegítima, todos os reis que depois dele reinaram em Portugal, mas também muitos dos príncipes que reinaram (ou ainda reinam) em Espanha, França, Alemanha e Áustria, Bélgica, Luxemburgo, Hungria, Boémia, Baviera, Polónia, Saxónia, Liechtenstein, Württemberg, Bulgária, Roménia, Jugoslávia, Itália, Etrúria, Parma, Sardenha, Toscana, Brasil ou México. Para só falar nos mais importantes descendentes do bastardo de dom Pedro I.

A Bastarda do Formoso

O último rei da primeira dinastia, formoso em parecer e muito vistoso, não foi um modelo de virtudes. Mancebo valente, ledo e namorado, amador de mulheres e chegador a elas, como Fernão Lopes o descreve na sua crónica, dom Fernando esteve para casar primeiro com a infanta dona Leonor de Aragão, de quem alguns disseram nunca tão feia coisa terem visto. Mas esse casamento, contratado para obrigar o pai da noiva a participar na primeira guerra fernandina contra os castelhanos, acabou por não se realizar. E outro foi contratado, com outra Leonor, a filha de Henrique II, o Bastardo de Trastâmara.

Esse matrimónio ficou assente em 1371, quando Portugal e Castela firmaram as Pazes de Alcoutim. Mas também ele não veio a efeito, porque dom Fernando conheceu, entretanto, uma terceira Leonor, a famosa e formosa Leonor Teles, por quem ficou ferido de amor. O monarca desejou-a para amante; mas ela declarou que só casada se deitaria com ele. E dom Fernando fez-lhe a vontade, sem dar nenhuma importância ao facto de Leonor Teles ser a legítima esposa de João Lourenço Cunha, senhor de Pombeiro, a quem já dera um filho, Álvaro Cunha, e estava prestes a dar outro. Invocando impedimentos canónicos para o primeiro casamento da sua amada, dom Fernando apropriou-se dela. Munido das dispensas papais que oportunamente requerera para contrair matrimónio, João Lourenço ainda tentou contrariar o rei. Mas vendo que não lhe cumpria porfiar muito em tal feito deu à demanda lugar que se vencesse cedo e foi-se para Castela, por segurança de sua vida. Diz-se que, no reino vizinho, andou sempre com um chapéu decorado com um corno de oiro, para que todos pudessem conhecer a dolorosa razão do seu exílio forçado. E assim foi que dom Fernando se uniu a dona Leonor Teles Meneses, primeiro às ocultas (ou a furto, como então se dizia) e, a seguir, de praça, provocando o seu casamento grão nojo a Deus, aos fidalgos e a todo o povo.

Leonor Teles não foi, contudo, o primeiro amor do rei Formoso, que, sendo mancebo e ledo e homem de prol, se apaixonou por dona Beatriz, sua irmã, ou, mais exactamente, sua meia-irmã, por ser filha de dom Pedro e de dona Inês de Castro. Teve por ela, no dizer do cronista, uma afeição mui continuada, de que veio a nascer nele tal desejo de a haver por mulher que determinou em sua vontade casar com ela, cousa que até aquele tempo não fora vista. Ao que parece, chegou a dar alguns passos nesse sentido. E, em qualquer caso, eram os jogos e falas entre eles tão amiúde, misturados com beijos e abraços e outros desenfadamentos de semelhante preço, que fazia a alguém ter a desonesta suspeita da sua virgindade ser por ele minguada.

Estes incestuosos amores poderão ter tido um fruto, dona Isabel, uma menina nascida em 1364, quando dom Fernando ainda era solteiro. Há quem a diga filha de dona Beatriz, o que não parece de todo impossível. Mas a maioria dos historiadores e genealogistas declaram-na havida de mãe desconhecida. A única bastarda do rei Formoso (desde que se admita ter sido legítimo o seu casamento com dona Leonor Teles) estivera acertada para casar com dom João, filho do conde de Barcelos e sobrinho da rainha, que morreu de tenra idade. E, como dote do seu casamento, recebeu a cidade de Viseu e as vilas de Celorico, Linhares e Algodres. Mas, depois de dom Fernando assinar com o Bastardo de Trastâmara o Tratado de Santarém, que, em Março de 1373, pôs termo à segunda guerra fernandina, assentou-se que dona Isabel casaria com o conde de Gijón e Noronha, Afonso Henriques, que tinha 18 anos e era o primeiro dos 15 filhos bastardos de Henrique II». In Isabel Lencastre, Os Bastardos Reais, Os Filhos Ilegítimos, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-845-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

JDACT, História de Portugal, Isabel Lencastre,  O Paço Real,  Conhecimento, 

Os Bastardos Reais. Isabel Lencastre. «Mas quem lhe herdou a causa foi seu irmão mais novo, o infante dom Dinis. Aclamado rei pelos portugueses exilados em Castela, com aplauso da rainha dona Beatriz, filha do rei dom Fernando…»

 

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O Bastardo do rei Bravo

«(…) Nas Cortes de Coimbra de 1385 havia três partidos: o Partido Legitimista, que apoiava os reis de Castela; o Partido Legitimista-Nacionalista, que defendia o infante dom João; e o Partido Nacionalista, que defendia o Mestre de Avis. Foi este quem ganhou a contenda, beneficiando nomeadamente da prisão do filho de Inês de Castro. Com efeito, se em Portugal se desejava que reinasse um português, tudo recomendava, por muitos e bons direitos que assistissem a dom João, futuro duque de Valência de Campos, esquecer a sua candidatura e defender a do outro dom João, Mestre de Avis, que estava livre em Portugal e podia assim fazer frente ao maior perigo, representado pelo terceiro João desta disputa, o rei de Castela. Mas, depois de as Cortes de Coimbra aclamarem a realeza do Mestre de Avis e este ter vencido a batalha de Aljubarrota, o filho de Inês de Castro tornou-se feroz inimigo do novo monarca português. Libertado da sua prisão pelo rei de Castela, dom João recebeu dele o encargo de governar Portugal em seu nome. E foi com o título de regente que atravessou a fronteira para combater o rei de Boa Memória, seu meio-irmão.

Os combates chegaram ao fim em Novembro de 1389, com as tréguas de Monção. E, de regresso à corte castelhana, dom João foi feito duque de Valência do Campo. Mas o rei de Castela morreu no ano seguinte, sucedendo-lhe Henrique III, que, filho do primeiro casamento de seu pai, com dona Leonor de Aragão, não tinha qualquer direito à coroa de Portugal nem estava disposto a alimentar guerras com o país vizinho. Dom João de Castro continuou a reivindicar a coroa de seu meio-irmão, mas sem contar com apoios políticos e militares para fazer vencer a sua causa. E por 1397 morreu, deixando vários filhos: (1) dom Fernando Eça, nascido do seu primeiro casamento, um devasso acabado, que tinha o fraco de casar, chegando ao ponto de ter às vezes três e quatro mulheres vivas, e um nunca acabar de filhos, que, segundo os nobiliários, podem ter sido quarenta e dois; (2) dona Maria; (3) dona Beatriz e (4) dona Joana de Portugal, filhas do segundo casamento; e (5) dom Afonso, senhor de Cascais; (6) dom Pedro Guerra (que se acolheu à protecção do rei de Boa Memória ainda em vida de seu pai, fazendo-lhe dom João I grandes mercês e honras); (7) dom Fernando de Portugal, senhor de Bragança; e (8) dona Beatriz Afonso, bastardos.

Mas quem lhe herdou a causa foi seu irmão mais novo, o infante dom Dinis. Aclamado rei pelos portugueses exilados em Castela, com aplauso da rainha dona Beatriz, filha do rei dom Fernando, tentou fazer valer o que dizia ser os seus direitos, entrando em Portugal pela fronteira da Beira. Derrotado, não voltou a tentar a sua sorte. Mas não renunciou às suas pretensões. Falecido nos primeiros anos do século XV, sua filha, dona Beatriz, construiu-lhe um mausoléu no Mosteiro de Guadalupe, onde dom Dinis é declarado rei de Portugal…» In Isabel Lencastre, Os Bastardos Reais, Os Filhos Ilegítimos, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-845-2.

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JDACT, História de Portugal, Isabel Lencastre,  O Paço Real,  Conhecimento, 

domingo, 14 de agosto de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Aquela feira extravagante era habitual nas missas, fosse em Braga, mesmo com a Sé destruída; em Guimarães, em Zamora ou até em Compostela. Na Páscoa, todos aproveitavam para pôr a conversa em dia…»

 

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Soure, Sábado de Aleluia, Abril de 1126

«(… ) O almocreve estava cada vez mais baralhado e suspirou, desolado: Não compreendo o que dizeis. Ela olhou para o céu, onde uma ténue luz clareava já o longínquo horizonte a leste, e resmungou: Um dia ireis compreender. Depois, como se estivesse a falar consigo mesma, murmurou: Eram três, o que já morreu e mais dois, mas outro morrerá em breve. O último não me pode ver, senão vai recordar-se. Calou-se, espevitou a fogueira e foi buscar um vaso de água, por onde bebeu. Só depois voltou a falar, olhando para Mem como se lhe confidenciasse um segredo. Se perguntarem por mim, dizei que sou louca. Mem estava espantado. Aquela mulher sabia muito sobre ele e, no entanto, pedia-lhe ajuda, mostrando-se vulnerável, quase assustada. Curioso, interrogou-a: O homem que degolou o meu pai quer matar-vos? A mulher suspirou, mas não respondeu à pergunta dele, como se não a tivesse escutado, pois disse: Por uma razão ou por outra, todos vão querer matar-me, cristãos e mouros. Mas só um rei saberá a minha verdade, se as mouras não partirem daqui antes desse dia. Decidida, olhou para a fogueira e exigiu-lhe: Quando o fogo me chegar, tereis de me salvar. Prometei-me!

O almocreve tinha uma dívida de gratidão antiga para com ela e, apesar de desconhecer o que a incomodava, concordou com um aceno de cabeça. Então, a mulher lançou a mão na direção do fogo, num gesto rápido, e uma enorme labareda cresceu. Depois, atirou um pó para a fogueira, que se apagou em instantes. Mem teve a certeza de que ela era uma bruxa, embora parecesse aterrada com o futuro. Ouviu-a anunciar: A partir de agora, terei de viver no escuro. Sem nunca lhe dizer como se chamava, ou o que ele deveria fazer para a ajudar, a mulher afastou-se, contornando a torre tombada de Soure. Mem não a voltou a ver até partir para Coimbra. Foi isto que ele disse, anos depois, durante a minha investigação, quando me relatou o seu reencontro com a bruxa. E eu acredito nele. Apesar de tudo o que aconteceu, acredito nele.

 

O prior Teotónio, atrás do altar, semicerrou os olhos. Estava num daqueles dias, como ele dizia, em que os dragões negros o visitavam e o deixavam furioso com o mundo. Ao contrário dele, que reduzia ao mínimo as vestes, usando apenas uma alva branca e comprida, os nobres, em Viseu, faziam da Páscoa uma ocasião para se pavonear. Pregava constantemente que Jesus não era aquela explosão colorida e brilhante de roupas e jóias, mas sim a pobreza e o arrependimento, o despojo pelos haveres, o recato simples de uma oração, o coração puro e vazio de instintos menores. Mas o desejo de impressionar os seus semelhantes toldava os fiéis, e apresentavam-se na igreja luzidios, com os seus tecidos macios e os seus olhares invejosos, por descobrirem que alguém parecia melhor do que eles, uns bancos à frente. Com tantos mendigos nas ruas de Viseu, à fome... A igreja estava apinhada, lá atrás os populares acotovelavam-se, meio tontos devido ao cheiro a incenso. Viseu inteira comparecera, era Domingo de Aleluia, todos queriam celebrar a ressurreição de Cristo, e todos eram incapazes de se calar. Havia quem desse gargalhadas, quem trocasse argumentos em voz alta e ninguém ligava aos ritos visigóticos ou aos cânticos em latim. Afonso Henriques também sorria e falava com os amigos, enquanto o Braganção circulava alegremente entre os bancos, dando beliscões nos rabos das senhoras, fazendo Sancha Henriques espumar de raiva, com o descaramento do seu destinado esposo.

Aquela feira extravagante era habitual nas missas, fosse em Braga, mesmo com a Sé destruída; em Guimarães, em Zamora ou até em Compostela. Na Páscoa, todos aproveitavam para pôr a conversa em dia, para namoriscar, para comerciar, para rir. O que não era habitual era o que se passava no banco da frente! Desde que a missa começara, dona Teresa e Fernão Peres Trava não cessavam as ternuras. Davam o braço, faziam festas no cabelo um do outro, como jovens enamorados, acabados de casar. O prior Teotónio, como nos garantiu à saída, conhecia bem o significado daqueles mimos: Dona Teresa devia estar nos seus dias frutuosos, apesar da idade ainda os tinha. Aqueles salamaleques carinhosos não lhe causavam apenas repugnância física, mas também uma aguda dor moral. Teotónio considerava aquele casal o pior exemplo da depravação, da luxúria, da recusa de cumprir os preceitos da Igreja». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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