quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A Filha do Papa no 31. Luís Miguel Rocha. «Niklas desorientou-se um pouco, mas Luka colocou-lhe uma mão possante no ombro e indicou-lhe o caminho. Por aqui. Atravessamos ali à frente. Referia-se a uma passagem para peões a cerca de cem metros»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Alguns filamentos brancos emprestavam ao cabelo um ar grisalho que lhe assentava bem. Era o encanto dos 45 anos que para ele lhe era indiferente, mas fazia as mulheres olharem uma segunda vez para se desiludirem com aquele friso branco no colarinho, o cabeção, sinal de relação, pretensamente exclusiva, com Deus Pai Todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra. Caminhava a passos firmes, senhores de si, que faziam os cabelos loiros do pupilo, com metade da idade, arrepiarem-se de reverência e temor. Lembra-te, Niklas, avisou Luka com uma sedutora voz tonitruante, não lhe dirijas a palavra a não ser que ele ta dirija a ti. Certamente, professor, respondeu, sumido, o jovem. As vielas ao entardecer perdiam as pessoas. Restavam turistas, a maioria de mochila às costas, roupas descomprometidas com casacos por cima, máquina fotográfica pronta a disparar e olhos de estupefacção. A luz alaranjada do sol moribundo que se dignara aparecer naquele dia sem aquecer os corpos tingia as fachadas dos edifícios de um tom encantador, carregado de impressões, que hipnotizava os estrangeiros que passavam. Apesar de estrangeiros, Luka e Niklas não eram turistas, e passavam indiferentes. Prosseguiam a caminhada tenaz com passos gigantes, mais o primeiro, que obrigava o mais novo a esticar bem as pernas para o acompanhar. Viraram à esquerda na Via dei Santi Apostoli e percorreram os poucos metros da rua para depois virarem à direita na Via Cesare Battisti. Seguiram em frente, passando a Piazza Venezia, entraram na Via del Plebiscito, ignorando o colégio da Companhia de Jesus, que ficava do lado esquerdo, e a Igreja de Jesus, na piazza com o mesmo nome, que se erguia ao fundo, e desembocaram no concorrido Corso Vittorio Emanuele II, onde ainda havia bastante trânsito. Faltavam vinte minutos para as sete da tarde. Seriam precisas mais algumas horas para esvaziar as principais artérias da cidade dos milhares de veículos que as entupiam durante o dia.
Niklas desorientou-se um pouco, mas Luka colocou-lhe uma mão possante no ombro e indicou-lhe o caminho. Por aqui. Atravessamos ali à frente. Referia-se a uma passagem para peões a cerca de cem metros. Os homens de Deus seguiam, prudentemente, as regras dos homens…, quase sempre ou sempre que podiam, assim Deus o permitisse. A mão no ombro guiava Niklas, como uma orientação divina, mostrando-lhe o trilho do Senhor, que muito precisaria assim que soubesse para onde se dirigiam. Apesar do temor reverencial sentia-se bem com ele, ou não fosse Luka o seu tutor. Atravessaram a movimentada rua na passagem para peões que Luka indicara e prosseguiram no mesmo sentido, o do Largo di Torre Argentina. Uma vez lá, meteram pela Via del Sudario, junto ao terminal do eléctrico, uma viela estreita que findava na Piazza Vidoni. Depois voltaram à direita, retornando ao Corso Vittorio Emanuele II.
Cravada como se sempre ali tivesse estado erguia-se imponente a Basílica de Sant’Andrea della Valle, com a fachada barroca a apontar para o céu. E a verdade é que pernoitava naquele exacto local, na Corso Vittorio Emanuelle II, defronte para a piazza como mesmo nome da basílica, há cerca de 350 anos e vira aquela rua ter outros nomes antes deste, enquanto a sua estrutura permanecia imutável, apenas consumida pelo tempo, como hoje. Luka e Niklas subiram os seis degraus até à porta verde. Niklas tentou abri-la. Estava trancada. Está fechada. Não para nós, murmurou Luka enquanto olhava em redor para o movimento da rua. Em seguida, cerrou o punho e bateu duas vezes com vigor. Uma. Duas. Luka voltou a desviar a sua atenção para a rua, ignorando a porta da basílica. E agora, professor?, perguntou Niklas, a medo. Agora esperamos, respondeu o padre alemão sem fitar o jovem. Duas mulheres, na casa dos 30 anos, passaram e lançaram um sorriso a Luka que lhes retribuiu.
O fruto proibido…, sibilou, entre dentes, em alemão. Buon pomerigio, senhor padre. Niklas evitou olhar para as mulheres. Um ressentimento antigo. Provavelmente alguma delas, não estas, terá sido a responsável pelo seu apego à batina e pela oferta do seu coração a Deus Nosso Senhor, ou então não queria simplesmente cair em tentação. Ainda era muito novo para quebrar o voto de castidade que todos vinculava a esta provação celibatária. Terão ouvido, professor? Niklas referia-se à porta da basílica e às pancadas que Luka havia dado na madeira. Nesse preciso momento, ouviu-se a tranca rabujar com a ferrugem. Um homem de idade, descabelado e mal-encarado, surgiu do interior». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

31 na Poesia. Sofia de Mello Breyner «Mar, metade da minha alma é feita de maresia pois é pela mesma inquietação e nostalgia, que há no vasto clamor da maré cheia…»

Cortesia de wikipedia

Porque os outros se mascaram mas tu não
«Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não».

Mar
«Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras».
Poemas de Sofia de Mello Breyner

Cortesia de Wikipédia/JDACT

Poesia no 31. Jorge de Sena. «Passado o mar, passado o mundo, em longes praias, de areia e ténues vagas, como esta em que haverá de nossos passos a memória…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ode à Mentira
«Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
como sereis cruéis, como sereis injustas?
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos..., como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis».


Cantar do Amigo Perfeito
«Passado o mar, passado o mundo, em longes praias,
de areia e ténues vagas, como esta
em que haverá de nossos passos a memória
embora soterrada pela areia nova,
e em que sobre as muralhas quanta sombra
na pedra carcomida guarda que passámos,
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas esta, ó meu amigo?

Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos
da alheia juventude, impudica ou severa,
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se,
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas;
e o meu e o teu olhar guiando-se leais,
de nós um para o outro conquistando
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó meu amigo?

Também aqui relembro as ruas tenebrosas,
de vulto em vulto percorridas, lado a lado,
numa nudez sem espírito, confiança
tranquila e áspera, animal e tácita,
já menos que amizade, mas diversa
da suspeição do amor, tão cauta e delicada
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda as recordas, diz, ó meu amigo?

Também aqui, sorrindo em branda mágoa,
desfiámos, sem palavras castamente cruas,
não já sequer os íntimos segredos
que o próprio amor, porque ama, não confessa,
nem a vaidade humana dos sentidos, mas
subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó amigo?

Partiste e foi contigo a juventude.
Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo,
e o terror de não ser minha estátua jacente
sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância
desmentem, palpitar de traiçoeira fénix!
Que só do amor ou só da terra haja saudade.
Em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
tu sabes que a levaste, ó meu amigo?
Poemas de Jorge de Sena, in Pedra Filosofal

Cortesia de Wikipedia/O citador/ JDACT

Metamorfoses do Espaço Termal no 31. O Caso das Termas de S. Pedro do Sul. Ana Patrícia Carriço. «Das fases empíricas e observação clínica passou-se à fase de investigação e experimentação até à fase actual…»

Cortesia de wikipedia, dona helena almeida e jdact

Com a devida vénia à doutora Ana Patrícia Silva Carriço

Conceitos sobre a Água e Aspectos Históricos
Água
«(…) A influência da religião durante a Idade Média conduziu a um declínio no uso da água como forma de curar. Esta atitude persistiu até ao século XV, quando ressurgiu o interesse pelo uso da água como meio curativo. Durante esta época, as ervas não produziam as curas desejadas e a sociedade voltou-se novamente para as propriedades terapêuticas da água, recuperando o seu uso. A utilização da água transformou-se assim numa prática esporádica e anual, que ocorria num simples recipiente de água ou com recurso a panos húmidos para as limpezas diárias. Assim, a água na Idade Média e nos períodos mais próximos que se seguiram foi sempre um bem pouco explorado. Poucas cidades do século XVI, possuíam sistemas de abastecimento de água, existindo pouco mais do que fontanários públicos. As primeiras tentativas para entubar a água foram realizadas no século XVII. Nas povoações mais pequenas, os habitantes bebiam águas dos poços, mal protegidos de infiltrações, o que fazia com que as doenças intestinais fossem muito comuns, verificando-se este caso nas pessoas que saíam das cidades ou que chegavam depois de longas viagens. Nos séculos XVII e XVIII os banhos, como propostas higiénicas, não eram aceites como práticas, mas o uso da água como forma terapêutica começou a ressurgir gradualmente. A disciplina médica começa a referir a hidroterapia definida por Wyman e Glazer (1944) como a aplicação externa da água para tratamento de qualquer forma de doença. Também em Inglaterra, França, Alemanha e Itália se promovem aplicações internas (ingestão) e externas (compressas quentes e frias e banhos) e o tratamento de várias doenças (Martin, 1981). Em 1697, John Floyer (in Mosqueira et al., 2009) com a publicação do tratado An Inquiry into the Right Use and Abuse of Hot, Cold and Temperature Bath muito influenciou Frederich Hoffman e Curie, nos seus ensinamentos e experiências. Também John Wesley (Yrigoyen, 1996) publicou em 1747 o livro An Easy and Natural way of Curing Most Disease que relata como o uso da água é uma forma de cura. No renascimento, o uso da água e as práticas termais foram amplamente divulgadas, e o recurso à hidroterapia cresceu.
Com um maior conhecimento e difusão cada vez maior, ninguém ficou indiferente aos poderes e qualidades da água. Neste ponto da história, o uso desta substância, prosseguiu com técnicas que incluíam lençóis, compressas, fricção, banhos, etc. Em 1830,o salesiano, Vicent Priessnitz desenvolveu programas que usavam primariamente banhos ao ar livre, tendo publicado em 1842 o livro The Cold Water Cure, its principals, theory, and practice em que dava indicações para a autoaplicação dos tratamentos bem como relatava a evolução desses mesmos tratamentos em inúmeros pacientes. Durante esta época também Sebastian Kniepp (1821-1897), um padre bávaro, modificou as técnicas anteriores de tratamento alternado a temperatura da água (que consistiam em banhos frios, e banhos de chuveiro, mas que devido a não ser reconhecido pela comunidade cientifica foi desacreditado; alternando as aplicações frias com mornas e banhos quentes parciais, também fazia tratamentos com chuveiros a diferentes temperaturas com finalidades curativas, tornando-se a Kniepp Cure popular na Alemanha, norte de Itália, Holanda, França sendo utilizada até hoje).
Também Winterwita (1834-1912) professor austríaco e fundador da Escola de Hidroterapia e Centro de Pesquisa de Viena, bem como o dr. Simon Baruch usaram e estudaram os métodos do uso da água como tratamento de várias doenças, como a gripe, insolações, tuberculose, reumatismo crónico, gota, etc, publicando diversos livros.

No entanto a época de grande esplendor da utilização da água, nomeadamente em tratamentos, foi o século XX, quando factores sociais e científicos deram um passo gigantesco para o seu reconhecimento. Foram tempos de desenvolvimento científico, médico, geológico ou químico entre outros, que contribuíram para o desenvolvimento da aplicação da água. Algumas universidades como na Áustria, como a Universidade de Viena, ajudaram a compreender e a melhorar as técnicas, o funcionamento do corpo humano, contribuindo assim para um melhor diagnóstico. As duas guerras mundiais, especialmente a Segunda, salientaram a necessidade do uso da água para os exercícios e a manutenção do condicionamento dos soldados. Agiram como precursoras para o ressurgimento actual do uso da água em piscina e a utilização da imersão total como uma forma de reabilitação para uma ampla faixa de doenças.

No século XX a água termal é sujeita a experimentações científicas e observações clínicas. O saber científico aperfeiçoa-se. A hidroterapia e a medicina avançam e em finais do século XX o ritmo de vida acelerado faz com que se veja que é necessária uma pausa. Assim, a hidroterapia ressurge em forma de balneários, novas instalações sobre construções antigas que proporcionam tranquilidade, repouso e tratamentos variados que permitem uma boa qualidade de vida e bem-estar. Das fases empíricas e observação clínica passou-se à fase de investigação e experimentação até à fase actual em que se junta a vertente preventiva, a curativa, e a de lazer». In Ana Patrícia Carriço, Metamorfoses do Espaço Termal, O Caso das Termas de S. Pedro do Sul, Tese para obtenção do Grau de Doutor em Arquitectura, Universidade da Beira Interior, Faculdade de Engenharia, Covilhã, 2013.

Cortesia de UBeiraInterior/JDACT

No 31. Metamorfoses do Espaço Termal. O Caso das Termas de S. Pedro do Sul. Ana Patrícia Carriço. «Desde o tempo dos egípcios, hebreus, assírios e muçulmanos que a água era usada, como proposta curativa, havendo ainda informação que os hindus a usavam para combater a febre»

Cortesia de wikipedia, dona helena almeida e jdact

Com a devida vénia à doutora Ana Patrícia Silva Carriço

Conceitos sobre a Água e Aspectos Históricos
Água
«(…) Substância, liquida, incolor, transparente, inodora e insípida, que se encontra em grande abundância na natureza… Esta substância pode ser analisada através da história sob o ponto de vista químico, bioquímico, do direito, da culinária, da religião, da construção civil, da arte, hidrologia, constituindo um meio e um fim em si mesma. Meio de cura, veículo de calor ou frio, este líquido é um elemento vital à existência do homem, podendo ser analisada sob três grandes vertentes: fonte de vida, regeneradora e purificadora. Objecto de culto, provocadora de sentimentos, a água, tem sido objecto de análises e a simbologia a ela associada confere-lhe sempre aspectos diferentes, e nem mesmo o avanço da ciência fez com que a sua simbologia e os conflitos à sua volta a alterassem. A água desempenhou, desde os tempos mais remotos um elemento fundamental para a Vida. Inicialmente ligada à mitologia, a água desempenhou através das ninfas um papel mágico, que prometiam, com a água, a eterna juventude aos mortais, promovendo este bem como condição divina.
Desde o tempo dos egípcios, hebreus, assírios e muçulmanos que a água era usada, como proposta curativa (Baruch, 1920), havendo ainda informação que os hindus a usavam para combater a febre. Na Índia, na cidade de Mohenjo-Daro, existem vestígios das mais antigas termas (2000 a.C.). Também as civilizações japonesas e chinesas faziam longos banhos de imersão. Mas segundo Ramos (2005) foi com os Etruscos, considerados os inventores do termalismo, que os banhos se começaram a difundir. Junto às fontes construíam edifícios monumentais, ligando o termalismo à religião. Iniciaram a prática do banho nos domicílios ou em edifícios públicos, com técnicas especiais para aquecimento das águas (pois davam muita importância à temperatura das mesmas). A falta de redes de condutas de água era suprimida pelas bacias, que permitiram a prática do banho. Para Baruch (1920) em 500 a.C. a civilização grega, embora com uma elevada componente mística1 começa a deixar de ver a água com misticismo e começa a usá-la em tratamentos específicos, nomeadamente nas doenças do foro intestinal, que eram propagadas através da água. Alcmeon de Crotona (século V a.C., médico, filósofo pitagórico, destacou-se como físico, biólogo e anatomista) associava certas doenças intestinais à natureza da água consumida. Com Hipócrates, Heródoto, Demócrito e Aristóteles são definidas as primeiras regras termais e áreas como é o caso das termas de Oedpsus, com as quais rivalizarão mais tarde as termas de Lesbos, Melos, Thermopylas e Scotussa, passam a ter grande importância devido à veneração especial que havia pelas nascentes e os rituais a elas associados.
Ainda segundo o mesmo autor (1920). Os romanos herdaram, da civilização helénica o gosto pelas coisas requintadas e o culto das águas como principal elemento de saúde e bem-estar. Este reconhecimento das propriedades da água levou à sua sacralização, colocadas sob a invocação de uma ou mais divindades, com as quais os mortais, estabeleceram um pacto. É assim que junto às antigas termas romanas, aparecem muitas inscrições e votos. Uma mistura de temor ditou assim edificação de muitos balneários. O banho dividiu-se então entre banho público e banho privado. Pelas mãos do Imperador Agrippa, a civilização Romana viu construída a sua primeira grande estância termal. Cada vez maiores e mais extravagantes, cada imperador tentavam superar os feitos do seu antecessor.
Em poucos anos, os simples banhos transformaram-se em grandes complexos recreativos e sociais, onde não faltavam outros tipos de diversão: massagens, ginástica, etc. Os médicos passaram a receitar a prática termal encorajando os banhos públicos para melhoria da saúde. A queda do Império romano e a introdução do Cristianismo, que não tolerava a promiscuidade nem o nudismo fez com que se iniciasse um período de interregno, na utilização da água e mais particularmente nas práticas termais. Para Cavalcanti (1997) a água tem também servido para ritos de iniciação, como no caso dos banhos na Idade Média, onde o título de cavaleiro era concedido com grandes cerimónias. Nesta época, o banho era tomado pelos cavaleiros em grandes tinas com água quente aromatizada (para que ultrapassassem os combates sem mácula), possivelmente simbolizando uma purificação espiritual na véspera da sua investidura. Jorge I de Inglaterra, a 18 de Maio de 1725, criou assim a Ordem do Banho, formalmente A Mais Honoravel Ordem Militar do Banho, também conhecida como Ordem de Bath, como homenagem aos cavaleiros que experimentavam o banho na véspera da sua coroação. Desde a coroação de Henrique IV, em 1399 (que foi rei entre 1399 e 1413), a cerimónia ficou restrita para ocasiões reais importantes, como a coroação de um monarca, britânico, investiduras de príncipes, ou duques, bem como de bodas reais. A última ocasião na qual os cavaleiros do Banho foram investidos foi na coroação de Carlos II em 1661». In Ana Patrícia Carriço, Metamorfoses do Espaço Termal, O Caso das Termas de S. Pedro do Sul, Tese para obtenção do Grau de Doutor em Arquitectura, Universidade da Beira Interior, Faculdade de Engenharia, Covilhã, 2013.

Cortesia de UBeiraInterior/JDACT

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Amandine. Marlena de Blasi. «Ou um fidalgo de sangue azul e meios limitados? Sim, você completará a nossa mesa agradavelmente por duas semanas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Como todos de sua laia. De todos os garotos e homens para quem Andzelika podia ter-se entregado, porque ele? Que atracção venenosa é essa que liga a família dele e a minha? Duas mortes não foram o suficiente para extingui-la? Se ao menos eu tivesse compreendido quem ele era naquela primeira noite... Intensos olhos negros, a mão branca e delicada mexendo naquela cabeleira brilhante. Um desprezo bolchevique lá no fundo da sua cortesia. Posso ouvir Stas dizendo, Ciotka Valeska, tia Valeska, deixe-me apresentar o meu amigo do colégio, Piotr Droutskoy. Sim, sim, seja bem-vindo. É claro, seja bem-vindo. Seu nome não significa nada, você não significa nada. Outro cavaleiro errante, não é? Ou um fidalgo de sangue azul e meios limitados? Sim, você completará a nossa mesa agradavelmente por duas semanas. Eu deveria ter atirado nele bem ali no pátio, à luz fraca das torchières. Se eu tivesse percebido. Em vez disso, eu o acolhi. O amiguinho de Stas. Sim, sim, por favor, fique. Adam foi logo levar as coisas deles para o terceiro andar. E então ele possuiu Andzelika. O irmão da adorada libertina de Antoni possuiu minha filha. O irmão da encantadora baronesa Urszula. Urszula. Seus largos quadris ticianescos enroscados no meu marido mesmo na morte. Quantas noites teriam eles dormido assim? As expedições de caça de Antoni, os seus negócios em Praga, em Viena. Visitas às fazendas, às vilas. Sempre com ela. Sempre com Urszula. Dois disparos de uma pistola para que os dois pudessem dormir daquele jeito para sempre. Será que nunca me verei livre da visão dela, dos dois?
Toussaint estava de pé atrás de mim enquanto eu olhava da porta aquela manhã, as suas mãos como ferro sobre os meus ombros. O que foi que ele sussurrou então? Até Rudolf e sua baronesa tiveram a decência de se cobrir. Toussaint então colocou-se na minha frente, abaixou-se para pegar o kontusz de Antoni, que tinha sido atirado às lajotas de mármore do chão. Como ele adorava aquele casaco, o símbolo da sua comiseração pelos camponeses. Deixava abertas as mangas, erguia-as até bem acima das da camisa ou do casaco de couro e lá ia ele, a brisa inflando a longa peça de roupa. Toussaint cobriu-os com o casaco, a mortalha certa para um bom szlachta e a sua amada. Ainda me lembro de quando era eu a sua amada». In Marlena de Blasi, Amandine, 2010, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-017-8.

Cortesia de ERecord/JDACT

terça-feira, 29 de outubro de 2019

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «Apesar de tudo foi muito delicado, porque ele alcançara um êxito extraordinário. A Glória, a deusa-cadela, como se costuma chamar, andava à volta dos pés de Michaelis…»

jdact

«(…) O pai voltou a avisá-la: porque não arranjas um apaixonado, Connie? Aproveita o que há de bom na vida. Nesse Inverno, Michaelis veio passar alguns dias em Wragby. Era um jovem irlandês, que já tinha feito fortuna com as suas peças na América. Fora apoiado muito entusiasticamente por uns tempos pela alta sociedade de Londres, porque escrevia peças de salão. Depois, gradualmente, essa mesma sociedade foi percebendo que tinha sido ridicularizada por um rato sujo das ruas de Dublim, e a reacção súbita sobreveio. Michaelis era a última palavra em grosseria e má-criação. Descobriu-se que ele assumia uma posição antibritânica, e para a classe que tinha feito esta revelação, era pior do que o crime mais condenável. Foi completamente ignorado e o seu cadáver lançado à lata do lixo. Apesar disso, Michaelis tinha o seu apartamento em Mayfair, e a imagem de um cavalheiro descia a Bond Street, porque nem os melhores alfaiates põem de parte os clientes grosseiros quando estes pagam.
Clifford convidava um homem de trinta anos no momento menos auspicioso da sua carreira. Mas, apesar de tudo, Clifford não hesitou. Michaelis captara as atenções de talvez um milhão de pessoas, provavelmente, e, sendo um intruso sem remissão, sem dúvida ficaria grato pelo convite para Wragby no momento em que todo o mundo elegante o repudiava. Sem dúvida que a sua gratidão só poderia trazer vantagens a Clifford, do lado de lá, na América. Glória! Um homem consegue a glória, seja ele o que for, se se falar dele da maneira certa, especialmente do lado de lá. Clifford era um homem de futuro, e era notável o seu profundo instinto de publicidade. Afinal retratou-o magnificamente numa peça, e Clifford era uma espécie de herói popular. Até ao dia em que descobriu que tinha sido ridicularizado. Connie estranhava um pouco a tendência cega, imperiosa de Clifford de se tornar conhecido, conhecido nesse mundo vasto e amorfo, que ele próprio não conhecia e que receava com inquietação; ser conhecido como escritor, como escritor moderno de primeira classe. Connie sabia, pelo afortunado, velho, vigoroso e bonacheirão sir Malcolm, que os artistas faziam a sua própria publicidade e se esforçavam por exportar as suas obras. Mas o pai servia-se de vias já preparadas, que eram de todos os outros académicos que vendiam os seus quadros, enquanto Clifford descobria novas vias de publicidade, quaisquer que fossem. Convidava todos os tipos de pessoas para Wragby, sem no entanto se rebaixar. Mas, decidido a conseguir rapidamente uma reputação, servia-se de tudo o que estivesse ao seu alcance. Michaelis chegou no momento oportuno, num bom carro, com o seu motorista e um criado. Era incontestavelmente um homem de Bond Street! Mas, ao vê-lo, Clifford, que tinha qualquer coisa de fidalgo rural, retraiu-se. Ele não era de modo nenhum..., não era exactamente..., de facto, em suma, não era como pretendia parecer, atendendo à sua aparência. Para Clifford isto era decisivo e suficiente.
Apesar de tudo foi muito delicado, porque ele alcançara um êxito extraordinário. A Glória, a deusa-cadela, como se costuma chamar, andava à volta dos pés de Michaelis, quase humildes e provocadores, ao mesmo tempo rosnadora e protectora, e isso intimidava totalmente Clifford, porque ele também se queria prostituir à Glória, deusa-cadela, se ela o aceitasse. Obviamente que Michaelis não era inglês, apesar dos alfaiates, chapeleiros, barbeiros e sapateiros do melhor bairro de Londres. Não, era óbvio que ele não era inglês, tinha uma cara fora do comum, pálida e uniforme, e um rancor também fora do comum. Mostrava ressentimento e rancor, e isso era evidente para qualquer cavalheiro de genuíno sangue inglês, que nunca permitiria que tais sentimentos transparecessem. Pobre Michaelis, tinha sido tão maltratado, que ainda não perdera um certo ar de cauda entre as pernas. Tinha aberto o seu caminho por puro instinto e total ousadia até à cena, à boca da cena, com as suas peças. Tinha surpreendido o público e pensara que os maus dias tinham acabado». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.
                  
Cortesia de RD’ÁguaE/JDACT

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Apanho um trevo amarelo e ponho-me a chupar-lhe o caule acre, enquanto falo com Diogo. Às vezes vinha-me à ideia compor um hino só com perfumes... Que tal achava o amigo?»

jdact

A Letra Pitagórica
«(…) Que bem saberia agora aquele pichel de bom vinho que nos serviu frei Gaspar!, recordo eu. Que Deus tenha em sua glória!, emenda Diogo piedosamente com a boca cheia. Recosto-me na relva, de papo para o ar, e não demora muito que o sono tome conta de mim. Diogo, por caridade, não me acorda e, às tantas, faz o mesmo. Quando acordei ainda ele ressona. Ponho-me a cantar: Eu venho da macelada venho de colher macela. É daquelas cantigas de que os meus ouvidos de menino estão cheios e que eu aprendi não sabia onde. Então coisa curiosa se passa comigo. É nos olhos que eu sinto o perfume da macela e ouço os pássaros a trinar, a chilrear, a gorjear! Os meus sentidos estão todos baralhados! Certamente ainda não estou completamente acordado! A cor de um campo de papoulas, que se avista na outra margem do ribeiro, entra aos berros, a baloiçar, pelos ouvidos dentro, o sabor de um naco de presunto sinto-o no olfato, apalpo as formas boleadas e aveludadas do perfume das estevas e as pontas aguçadas e agrestes do cheiro forte da arruda. Todo eu sou sentidos tresloucados! Transmito a Diogo, que acaba de acordar, os meus pensamentos, as minhas sensações. Ele escuta pacientemente aquilo a que chama as minhas trenguices, mas às vezes acha graça e ri-se. Creio que entrevê pela primeira vez um mundo que sozinho nunca sonharia existir. Deitado de costas, com as pernas dobradas, deixo o olhar perder-se lá em cima, por entre as folhas de um olmeiro, no céu azul.
Apanho um trevo amarelo e ponho-me a chupar-lhe o caule acre, enquanto falo com Diogo. Às vezes vinha-me à ideia compor um hino só com perfumes... Que tal achava o amigo?... Ah! Se eu tivesse uma oficina de perfumaria!... Recolhia em frascos todos os perfumes do mundo e depois subia ao alto da serra mais alta e, desarrolhando aqui, tapando ali, como se faz com os registos dos órgãos das catedrais, iria deixando os perfumes evolar-se numa imensa sinfonia de tons e meios tons, numa polifonia de fusas e colcheias, sustenidos e bemóis numa hábil combinação de todas as figuras do gregoriano, a gradação do climacus, o alongar do porrectus, o volteado do torculus, volutas de incensamentos que iriam subindo, chegando ao Céu!...
De repente desato a cantar:

Megálio e cânfora da índia cinamomo e benjoim
louvai ao Senhor!
Malábatro da Pérsia mélino, cíprino
louvai ao Senhor!
Açafrão da Assíria e da Caldeia sândalo e aloés
louvai ao Senhor!

Aonde fora eu aprender aquilo?, alertado Diogo soergue-se apoiado nos cotovelos. Sem responder, continuo:

Rosas de Babilónia reseda, lírio
louvai ao Senhor!
Musgo e âmbar da Arábia mirto e cálamo
louvai ao Senhor!

A partir daqui, Diogo, rendido, passa a recitar o refrão do terceiro verso, após eu cantar a antífona dos dois primeiros:

Resinas de Sídon e Tiro incenso e esmirra
louvai ao Senhor! Ónix odorífero da judeia gálbano, estoraque
louvai ao Senhor!
Cífea do Egipto psagda, metópio
louvai ao Senhor!

Numa bouça próxima melros faziam o acompanhamento com as suas flautas e o pisco-ferreiro tinia ferrinhos.

Manjerona de Chipre mirostáfilo, bácaris
louvai ao Senhor!
Alforva da Hélade Panatenaico unguento
louvai ao Senhor!
Bálsamo de Cartago olor de mel e alcaria
louvai ao Senhor!
Briónia e ródino de Itália verbena, acácia
louvai ao Senhor!
Sandáraca da Gália exalações de lis
louvai ao Senhor!
Cravos de Espanha almíscar, espicanardo
louvai ao Senhor!

Suspendo o canto, de propósito, a espevitar Diogo. E nós?, pergunta ele». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Qualquer tugúrio servia para dormirmos. A primeira noite, descansámos num curral velho que encontrámos vazio numa cumeada, antes de Almodôvar…»

jdact

A Letra Pitagórica
«(…) Fiquei descoroçoado. Andei ao acaso pela cidade em ruínas e fui dar ao porto de mar. Um barco de Veneza recolhia a escada de portaló, preparando-se para a largada. Viam-se passageiros no convés a olhar tristemente a terra destroçada. Talvez alguns tivessem deixado ali pessoas queridas! Havia lenços brancos a enxugar olhos vermelhos, intumescidos! De súbito, no meio daqueles rostos, pareceu-me ver uma cara conhecida. Não, não era engano dos meus olhos! Era Sara, a mulher de mestre Jacob! O barco passava lentamente em frente de mim e eu vi com toda a nitidez que ela me lançava o olhar, me fazia um desolado gesto de adeus e desatava num choro convulsivo. Não me lembro de alguma vez antes disso ter chorado. Porque seria então que naquela altura se me arrasaram de água os olhos, se eu conhecera mestre Jacob há tão poucos dias?... Em silêncio, tendo presenciado a minha comoção, Diogo, que me procurara pela cidade, pousou a mão no meu ombro. Ainda olhei ao longe o barco a sair a barra. Caminhamos depois pela borda de água e o meu companheiro, que era de poucas falas, disse-me: talvez te interesse ler o papel que, na preocupação de preparar para a sepultura o corpo de frei Gaspar, meti inadvertidamente ao bolso...
Era a carta do superior do nosso convento de Évora para o nosso velho e infeliz amigo. Estava amarrotada e rasgada do cataclismo por que também ela passara. Muito breve dizia assim: de fr. Agostinho de Jesus a seu ir..., fr. Gaspar Conceição. Saudaç... s cristãs. Muito vos rogo, irmão, tomeis ao vosso..., noviços, Diogo e João..., entregar estas letras em mão própria..., é a pessoa que sabeis e há tanto tempo.... Pelo seu aspecto peculiar e pelo nome... logo vereis qual. Sede discreto como sempre..., a Inquisição (maldita) aqui. Avisai Jacob..., urgência. Os iniMigos querem apanhá-lo..., o Senhor vos..., e vos abençoe. Olhei desconcertado para Diogo, que, no seu costumado silêncio, me retribuiu um olhar compassivo. Tumultuavam-me no espírito os pensamentos: a conversa inicial com frei Gaspar, a nossa visita a casa de mestre Jacob mais as falas em voz baixa deste com o frade e com a mulher, a despedida comovente que me fizeram, as últimas palavras de frei Gaspar balbuciadas à hora da morte, o gesto doloroso de Sara no barco que partia e agora a leitura daqueles fragmentos da carta dilacerada, a ligar todos os factos!...
Diogo chamava-me à realidade. Deu-me a conhecer a sua preocupação pela nossa família franciscana de Évora e quanto era urgente pormo-nos a caminho, tanto mais que havia já rumores de, havendo ainda corpos debaixo dos escombros, ser iminente a pestilência. Dispusemo-nos, pois, a apressar o regresso, sem mais delongas, deixando de lado todos os nossos planos para a longa volta que nos propuséramos dar. Depois de nos termos abastecido, encetámos caminho esforçadamente, evitando as povoações com receio da peste, bebendo água apenas nas nascentes dos montes ou nas fontes naturais dos vales não povoados.

Qualquer tugúrio servia para dormirmos. A primeira noite, descansámos num curral velho que encontrámos vazio numa cumeada, antes de Almodôvar, e no dia seguinte, mal rompia a alva, pusemo-nos de novo a caminho, por trilhos de pampilho, e nardo, de carqueja e sargaço, cujas cores e rescendências me devolveram a minha normal boa disposição de espírito. Às vezes os caminhos embraveciam, a terra apresentava-se estéril, ressequida, gretada, o deserto escaldava, o suão queimava a vegetação precária e enfezada e estalava-nos os lábios e a pele. Cheios de calor, sedentos, não deixávamos de andar, que não se avistava no Horizonte sombra de árvore ou pano de água. Por isso, quando, passado o inferno, topamos com um pobre riacho que a terra sôfrega chupava, quase não o deixando caminhar, era de ver a pressa com que tiramos as roupas e nos banhamos e saciamos a sede. Lavámos todas as peças do nosso vestuário e pusemo-las a enxugar nos galhos das árvores e nos arbustos. Depois, sentados, nus, à sombra dos frescos álamos da margem, refizemos as forças comendo do farnel, gostoso pão de centeio, rodelas de salpicão, figos secos, e bebendo da água do regato». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Grita-me o louco: de amoras. De tintas rubras do instante é que se tinge a vida»

Cortesia de wikipedia e jdact

Via Espessa
[…]
«Devo voltar à luz que me pensou
De poeira e começos?
Devo voltar ao barro e às mãos de vidro
Que fragilizadas me pensaram?
Devo pensar o louco (a minha sombra)
À luz das emboscadas?
Ai girassóis sobre a mesa de águas.

Estetizante, disse-me o louco
Grudado à minha poética omoplata.

Os girassóis? Ah, Samsara, teu esquecido sol.
Uma mesa de águas? Que volúpia, que máscara
E que ambíguo deleite
Para a voracidade de tua alma.


Eram águas castanhas as que eu via.
Caras de palha e corda nas barcaças brancas.
Velas de linhos novos, luzidios
Mas resíduos. Sobras.

Colou-se minha sombra às minhas costas:
Que bagagem, senhora.
O Nada navegando à tua porta.


O louco se fechou ao riso
Se torceu convulso de fingida agonia
E como se lançasse flores à cova de um morto
Atirou-me os guizos.
Por quê?, perguntei adusta e ressentida.

Ó senhora, porque mora na morte
Aquele que procura Deus na austeridade.


É o olho copioso de Deus. É o olho cego
De quem quer ver. Vês? De tão aberto
Queimado de amarelo
Assim me disse o louco (esguio e loiro)
Olhando o girassol que nasceu no meu tecto.


De canoas verdes de amargas oliveiras
De rios pastosos de cascalho e poeira
De tudo isso meu cantochão e ervas negras.
Grita-me o louco:
De amoras. De tintas rubras do instante
É que se tinge a vida. De embriaguez, Samsara.

E atravessou no riso a tarde fulva.


Temendo desde Agosto o fogo e o vento
Caminho junto às cercas, cuidadosa
Na tarde de queimadas, tarde cega.
Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.
E ali reencontro o louco:
Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?
Por que não deixas o fogo onividente
Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder
Casando o Omnisciente à tua vida?»
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

Em Alto Mar. Wilbur Smith. «O príncipe Maomé fornecia informações de alta qualidade e, três anos antes, alertara Hector sobre um iminente ataque por mar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eles sabiam que não se tratava de uma ameaça vã. As risadas cessaram, e os olhos deles se tornaram sérios diante da expressão impassível de Hector, que os encarou assim que o silêncio se fez presente. Por fim, ele pegou o indicador da mesa à sua frente e se virou para a enorme imagem aérea e ampliada do terreno na parede atrás dele, e começou a ditar as últimas instruções. Delegou tarefas e reforçou ordens anteriores. Não queria nenhum tipo de descuido nesse trabalho. Meia hora depois, virou-se para eles mais uma vez. Perguntas? Não havia nenhuma, e ele os dispensou com uma ordem curta e grossa: qualquer dúvida, atirem e façam de tudo para que o tiro seja certeiro. Ele pegou o helicóptero e mandou Hans Lategan, o piloto, seguir pelo oleoduto até ao terminal na costa do Golfo. Voaram a uma altitude bem baixa. Hector estava no banco da frente ao lado de Hans, examinando o caminho em busca de sinais que indicassem actividades suspeitas, pegadas de estranhos ou marcas de pneus de veículos que não fossem dos caminhões GM de patrulha ou das equipes de engenheiros trabalhando no oleoduto. Todos os funcionários da Cross Bow usavam botas com a marca inconfundível de uma seta na sola, por isso até mesmo daquela altura Hector era capaz de diferenciar rastos familiares de potenciais malfeitores.
Durante o mandato de Hector como chefe de segurança, já haviam ocorrido algumas tentativas nefastas de sabotagem nas instalações da Bannock Oil em Abu Zara. Nenhum grupo terrorista tinha assumido a responsabilidade por esses actos, provavelmente porque haviam fracassado. O emir de Abu Zara, príncipe Farid al Mazra, era um aliado fiel da Bannock Oil. Os royalties de petróleo da empresa acumulados por ele somavam centenas de milhões de dólares por ano. Hector criara uma forte aliança com o comandante da força policial de Abu Zara, príncipe Maomé, cunhado do emir. O príncipe Maomé fornecia informações de alta qualidade e, três anos antes, alertara Hector sobre um iminente ataque por mar. Hector e Ronnie Wells, seu comandante de área no terminal, tinham conseguido interceptar os criminosos com o barco patrulheiro da Bannock, um antigo torpedeiro israelita de boa capacidade de aceleração, com duas metralhadoras Browning, calibre .50, montadas na proa. Havia oito terroristas a bordo do dhow, a embarcação árabe utilizada no ataque, juntamente com centenas de quilos de explosivos plásticos Semtex. Ronnie Wells era um antigo sargento-mor da Marinha britânica, um marinheiro bastante experiente e perito em ataques de embarcações pequenas. Ele surgiu do meio da escuridão por trás do dhow, pegando a tripulação completamente de surpresa. Quando Hector ordenou pelo megafone que se rendessem, a resposta foi uma saraivada de disparos automáticos. A primeira rajada de tiros das Brownings detonou os explosivos Semtex no porão de carga do dhow. Todos os oito terroristas partiram simultaneamente para os Jardins do Paraíso, deixando poucos traços da sua existência neste planeta. O emir e o príncipe Maomé ficaram satisfeitíssimos com o desfecho. Cuidaram para que nenhuma informação chegasse aos ouvidos da imprensa internacional. Abu Zara tinha orgulho de sua reputação de país estável, progressivo e amante da paz». In Wilbur Smith, Em Alto Mar, 2011, Editora Planeta Brasil, 2012, ISBN 978-857-665-880-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT