terça-feira, 31 de outubro de 2017

Às Portas do Inferno. Domingos Amaral. «Para isso é que já estou velho. Os restantes cavaleiros ignoraram aquela suave celeuma, pois todos gostavam do Velho e o respeitavam»

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Soure. Julho de 1132
«(…) Colocara o seu cavalo a passo, ao lado do comandante do grupo. Magro, seco de carnes, com um cabelo ralo que ainda realçava mais as mil e uma rugas que lhe cobriam e cara e a garganta, o mais idoso dos templários possuía uma serenidade no olhar que acalmava. Zhakaria?, interrogou-se Ramiro. O Velho lutara nas tropas de El Cid, em Valência, o seu conhecimento dos hábitos guerreiros dos mouros era vasto e recordou que Abu Zhakaria era um exímio mestre com o alfange. Aquela cabeça saltara de uma só vez, com urn golpe implacável do cordovês. Só ele e os assassins cortam assim cabeças, sentenciou o Velho. Rarniro ignorou este último comentário e afirmou: intriga-me a presença de um galego por aqui. O Velho insistiu: os sarracenos preparam-se para novo ataque a Coimbra. Ramiro limitou-se a continuar o seu raciocínio anterior: o Trava quer a relíquia, quer dá-la a Afonso VII, não vai deixar que o príncipe a encontre. Terá enviado gente para isso? O Velho encolheu os ombros, parecia cansado e murmurou: os homens endoidecem com tesouros religiosos.
Aquele pensamento pessimista embalou-os nas horas seguintes e só se agitaram quando, ao atravessarem uma aldeia, um moçárabe os informou de que dias antes um grupo de galegos passara por ali, em direcção ao rio Nabão, mas só o cavaleiro sem cabeça regressara. Porém, quando lhe perguntaram se vira Abu Zhakaria, o lavrador respondeu que ninguém notara a presença do cordovês. Apesar desta informação tranquilizadora, os templários de Soure redobraram a vigilância enquanto se desviavam para leste, na direcção do Nabão, procurando vestígios do solitário degolado. E encontraram-nos... A poucas léguas do rio, o Peida Gorda distinguiu na estrada um despojo humano. Quando chegaram perto, o Velho desmontou e, rodando a cabeça do infeliz galego, confirmou que fora decepada por um afiado alfange. Zhakaria esteve aqui, declarou, perentório. Ramiro mandou-os recolher a macabra descoberta, para lhe darem um enterro digno junto ao resto do cadáver, e depois ordenou que avançassem até ao rio Nabão.
Cuidado, avisou o Velho. Ainda nos cercam. O outro ignorou aqueles temores com uma pequena provocação. Com a vossa idade ainda tendes medo da morte? Olhando em volta, o Velho relembrou os colegas de expedição: foi a cautela que me manteve vivo. Ramiro, que reagia sempre mal a quem o enfrentava, ripostou: questionais o meu comando? O idoso templário limitou-se a sorrir, multiplicando as muitas rugas que normalmente já exibia no rosto. Para isso é que já estou velho. Os restantes cavaleiros ignoraram aquela suave celeuma, pois todos gostavam do Velho e o respeitavam. O Rato chamava-lhe curandeiro e Ramiro ouvia-o sempre sobre questões relacionadas com armas, alimentação ou doenças. Era um combatente antigo e bem-sucedido, podia dizer o que queria. Já perto do rio, o Peida Gorda avançou primeiro, com a sua habitual coragem. Grande e obeso, o seu rabo era tão volumoso que transbordava pela traseira da sela, gerando risos nos outros. Mas tinha o espírito forte, nunca sentia medo de nada e por isso todos ficaram petrificados quando regressou muito pálido e disse: Deus lhes perdoe, é terrível. Lentamente, aproximaram-se. Estavam a pouca distância das ruínas de uma pequena povoação e já podiam ver o Nabão, mas à direita deles, numa clareira, um aterrorizador espectáculo aguardava-os. Espetadas no chão estavam nove lanças sarracenas, onde nove cadáveres masculinos se encontravam empalados. E, pousadas junto aos pés dos pobres desgraçados, viam-se nove cabeças». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. «Quando terminaram de comer, o pequeno desceu da cadeira e recolheu os pratos, examinou a cozinha e, com os olhos, procurou a pia para lavá-los»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Nessa noite, o mestre e o pequeno discípulo comeram em silêncio. Pela primeira vez em muitos anos, Francesco Monterga compartilhava a sua mesa com alguém além da sua própria sombra. Não se atreviam a olhar-se; seria possível dizer que o velho mestre não sabia como se dirigir a um menino. Pietro, por seu lado, tinha medo de importunar o seu novo tutor; comia tentando fazer o menor barulho possível e não parava de mover nervosamente as pernas, que pendiam da cadeira e não chegavam a tocar o chão. Gostaria de agradecer a generosidade do mestre, por tê-lo tomado a seus cuidados, mas, diante do silêncio de seu tutor, não se animava a dizer qualquer palavra. Até este momento, Pietro nunca se havia questionado sobre a própria orfandade, não conhecia outro lar além do Ospedale e não sabia exactamente o que era um pai. E agora que tinha uma casa e, de alguma maneira, uma família, uma tristeza desconhecida se instalou na sua garganta. Quando terminaram de comer, o pequeno desceu da cadeira e recolheu os pratos, examinou a cozinha e, com os olhos, procurou a pia para lavá-los. Sem levantar-se, Francesco Monterga apontou o lugar. Sentado na sua cadeira, enquanto o menino lavava a louça, o mestre florentino olhava o seu inesperado hóspede com uma mescla de estranheza e satisfação. Quando terminou a sua tarefa, Pietro aproximou-se de seu tutor e perguntou-lhe se precisava de mais alguma coisa. Francesco Monterga deu um meio sorriso e balançou negativamente a cabeça. Impulsionado por uma espécie de inércia incontrolável, o pequeno foi até o atelier e outra vez ficou a contemplar os tesouros que abarrotavam as prateleiras. Respirou fundo, enchendo os pulmões com aquele aroma feito da mistura de verniz, de pinho e de sementes usadas para preparar óleos e resinas. Então a sua tristeza se dissolveu nos eflúvios daquela mistura de perfumes até quase perder os sentidos. O mestre decidiu que era hora de dormir e conduziu-o até o pequeno mezanino, que daquele momento em diante seria o seu quarto.
Amanhã teremos tempo para trabalhar, disse, e entregou ao menino um lápis com cabo de vidro. Pietro dormiu com o lápis apertado entre as mãos, desejando que a manhã seguinte chegasse o quanto antes. Quando acordou, teve medo de abrir os olhos e descobrir que tudo aquilo havia sido apenas um sonho. Temia despertar e encontrar diante de si a mesma paisagem: o tecto descascado do orfanato. Mas ali estava, na sua mão, o lápis que Francesco Monterga lhe dera na noite anterior. Então abriu os olhos e viu o céu radiante do outro lado da pequena janela do quarto. Levantou-se num salto, vestiu-se tão rapidamente quanto pôde e desceu as escadas correndo. No atelier, de pé, em frente ao cavalete, estava o seu mestre preparando uma tela. Sem olhar, Francesco Monterga chamou a sua atenção, de modo amável mas severo, de que aquelas não eram horas de começar o dia. Ele teria que se acostumar a levantar antes do amanhecer. O pequeno Pietro abaixou a cabeça, e, antes que pudesse pensar numa desculpa, o velho mestre disse-lhe que tinham uma longa jornada de trabalho pela frente. Imediatamente, pegou num frasco cheio de pincéis e colocou-o nas mãos do seu novo discípulo. O rosto de Pietro iluminou-se. Finalmente, ia pintar como um verdadeiro artista, sob os sábios cuidados de um mestre. Quando estava quase escolhendo um dos pincéis, Francesco Monterga mostrou-lhe uma tina cheia de água castanha e ordenou: quero que fiquem bem limpos, que não se veja nem um resto de tinta. Antes de retomar o seu trabalho, o pintor apareceu novamente no vão da porta e acrescentou: e cuidado para que não soltem um só pelo». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT

domingo, 29 de outubro de 2017

O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. «Na sua pequena estatura, Pietro olhava fascinado os compassos, as réguas e os esquadros; na ponta dos pés, aproximava-se dos imensos cavaletes…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Então atirou o papel na cara do padre, deu meia-volta e, com passo decidido, dispôs-se a sair do atelier improvisado. O pequeno Pietro, mais decepcionado do que amedrontado, juntou o retrato e tentou alisar a folha com a palma da mão. No mesmo momento em que Francesco Monterga buscava o caminho da rua, o abade, que transformava a sua surpresa em indignação, o segurou pelo braço com toda a força enquanto gritava: miserável! Francesco Monterga parou, voltou-se para o padre Verani e, vermelho de raiva, pensou num rosário inteiro de insultos e xingamentos. E, justo quando ia soltá-los, viu como o menino assustado se escondia atrás do hábito cor púrpura do padre. Então, engolindo as palavras, limitou-se a agitar o indicador no ar. Tentando recuperar a calma, o padre Verani disse que era um pecado indesculpável condenar o menino outra vez à orfandade e que estava seguro de jamais ter visto tanto talento numa criança. Pediu-lhe que olhasse o retrato mais uma vez e disse que o mestre jamais se perdoaria por desperdiçar esse potencial que Deus havia posto no seu caminho. Vendo que Francesco Monterga se aproximava da porta para sair, o padre Verani concluiu: aquele que não tem um discípulo não merece ser chamado de mestre.
Aquela última frase pareceu causar um efeito imediato. Os momentos de fúria de Francesco Monterga costumavam ser tão fortes quanto efêmeros; imediatamente as águas voltavam para o curso normal do seu espírito, e a fúria se dissipava tão rapidamente como havia iniciado. O pintor deteve-se no vão do portal, olhou para o pequeno Pietro e não pôde deixar de lembrar-se do seu próprio mestre, o grande Cosimo da Verona. Francesco Monterga, de cabeça baixa e um pouco envergonhado, lembrou ao abade que era um homem pobre, que quase não tinha dinheiro para o seu próprio sustento; que o seu trabalho de decoração do Palácio Médici, sob a direcção de Michelozzo, além de acabar com suas costas, não lhe deixava mais que uns poucos ducados. Nada tenho para oferecer a este pobre órfão, lamentou-se, olhando para o chão. Talvez ele tenha muito para lhe oferecer, respondeu o abade, enquanto via como Pietro baixava a cabeça, ruborizado, sentindo-se responsável pela discussão. Então o padre Verani explicou formalmente ao pintor as regras que envolviam a tutoria, segundo as quais o benfeitor tinha o direito de servir-se do trabalho do afilhado e, no futuro, podia receber pelos gastos com alimentação e manutenção, depois que o desamparado atingisse a maioridade. O padre observou ao pintor que, nas mãos daquele menino, havia uma verdadeira fortuna, insistiu que, sob a tutela do mestre, o menino se transformaria no maior pintor já surgido em Florença e concluiu dizendo que Deus retribuiria aquela generosidade com riquezas na Terra e com um lugar no Reino dos Céus por toda a eternidade. O padre Verani, tomado por uma tristeza que lhe apertava a garganta e com uma expressão de pena dissimulada por trás de um sorriso satisfeito, viu como a enorme figura do mestre se afastava, seguida pelo passo curto, rápido e feliz do pequeno Pietro della Chiesa, finalmente salvo das vontades do prior Severo Setimio. Ao menos por algum tempo.
E agora, vendo como os coveiros terminavam de fazer a sua macabra tarefa, Francesco Monterga evocava o dia em que aquele menino de olhos negros e cachos dourados havia entrado na sua vida. A primeira vez que o pequeno Pietro entrou na sua nova casa sentiu uma felicidade como nunca antes havia experimentado. Os seus enormes olhos não foram suficientes para ver as maravilhas que, aqui e ali, abarrotavam as estantes do atelier: pincéis de todas as formas e tamanhos, espátulas de diversas grossuras, pilões de madeira e de bronze, carvões de tantas variedades como jamais havia imaginado, esfuminhos, conta-gotas, paletas que, de tão abundantes, pareciam geradas com a mesma naturalidade com que crescem as alfaces; sanguinas e lápis com cabo de vidro, óleos de todas as tonalidades, frascos repletos de pigmentos de cores inéditas, tintas e telas e tábuas e molduras, e inumeráveis objectos e substâncias de cuja utilidade nem sequer suspeitava. Na sua pequena estatura, Pietro olhava fascinado os compassos, as réguas e os esquadros; na ponta dos pés, aproximava-se dos imensos cavaletes e, virando a cabeça para todos os lados, observava a quantidade de papéis e pergaminhos, e até os velhos trapos com que o mestre limpava os utensílios pareciam, para ele, verdadeiros tesouros. Parou absorto diante de um painel inacabado, um velho retrato do duque de Volterra que Francesco Monterga há anos não conseguia terminar. Observava cada traço, cada uma das pinceladas e a superposição de distintas capas de tintas com a ansiedade típica do menino que era. Olhou de soslaio para o seu novo tutor com uma mistura de timidez e admiração. Seu coração estava imensamente feliz. Tudo aquilo estava, agora, ao alcance de sua mão. Gostaria de, naquele mesmo instante, tomar uma paleta e começar a pintar. Mas ainda não sabia o quanto faltava para que chegasse esse momento». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT

A Virgem e o Cigano. DH Lawrence. «Como que em resposta, o homem puxou as rédeas delicadamente, fazendo o cavalo parar quando ele já se desviava para o lado da estrada. Era um bom cavalo ruão e uma boa carroça, verde-escura e elegante»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O grupo mantinha-se silencioso havia já algum tempo. De cada um dos lados da estrada só se via erva, depois uma baixa vedação de pedra e a seguir a ondulada curva do alto da colina, traçada com os muros de pedra. E, por cima de tudo isto, o céu pesado e nebuloso. O carro avançou, sob o céu baixo e cinzento e os picos desguarnecidos. Paramos por momentos?, perguntou Leo. Oh, sim!, exclamaram as raparigas. Saíram de novo do carro, agitadas, para olharem em volta. Conheciam aquele lugar perfeitamente bem, mas, de qualquer modo, se se vai ao alto do Head, então é preciso sair e olhar. As colinas pareciam os nós dos dedos de uma mão, os vales estavam lá em baixo, entre os dedos, estreitos, íngremes e escuros. Lá no fundo, um comboio soltava vapor, avançando lentamente para norte: uma coisa pequenina, daquele mundo distante. Os ruídos da locomotiva ecoavam curiosamente para cima. A seguir, ouviram o som abafado e familiar de uma explosão numa pedreira. Leo, incapaz de estar parado muito tempo, moveu-se rapidamente. Vamos andando?, perguntou. Queremos ou não chegar a Amberdale a tempo do chá? Ou experimentamos noutro sítio mais próximo?
Todos votaram por Amberdale, pelo marquês de Grantham. Bom, por que caminho vamos regressar? Vamos por Codnor e Crosshill, ou por Ashbourne? Este era o dilema do costume, mas, por fim, decidiram ir por Codnor, pela estrada de cima. E lá partiu o carro, corajosamente. Estavam agora no topo do mundo, nas costas da tal mão. E era um topo do mundo também nu, como as costas da mão, desolado, monótono e verde-escuro, cortado por uma rede de velhos muros de pedra, dividindo os campos, interrompido aqui e acolá por ruínas de antigas minas de chumbo e de fábricas. Os edifícios de pedra de uma quinta isolada mostravam seis árvores espetadas e nuas. À distância, via-se uma mancha de pedra cinzenta, uma aldeia. Nalguns campos, carneiros cinzento-escuros alimentavam-se silenciosa e tristemente. Não havia um som nem um movimento. Era o telhado da Inglaterra, pedregoso e árido como qualquer telhado. Para lá dele, lá em baixo, estavam os condados.
E vejam agora as províncias coloridas, disse Yvette para si própria. De qualquer modo, aqui, as províncias não tinham nada de colorido. Um bando de gralhas surgiu, vindo de qualquer lado. Tinham andado a vaguear, debicando num campo nu que fora estrumado. O carro continuou a avançar por entre a erva e os muros de pedra daquela estrada do planalto e os jovens seguiam silenciosos, olhando por cima daquela rede de divisórias de pedra, por debaixo do céu, vendo as curvas inclinadas para baixo que indicavam um declive íngreme, em direcção a um dos vales, escondidos lá ao fundo. À frente seguia uma carroça conduzida por um homem e, caminhando penosamente ao lado, ia uma mulher, robusta e de idade avançada, com um fardo às costas. O homem da carroça tinha-a apanhado e agora acertava o passo pelo dela. O caminho era estreito. Leo tocou a buzina, violentamente. O homem da carroça olhou em volta, mas a mulher, que ia a pé, limitou-se a continuar a seguir em frente com maior firmeza e mais rapidamente, sem virar a cabeça.
O coração de Yvette deu um salto. O homem que se encontrava na carroça era um cigano, um daqueles ciganos escuros, de corpo elegante e descontraído. Mantinha-se sentado na carroça, de cabeça virada, olhando os ocupantes do automóvel, por debaixo da pala do boné. Mantinha uma pose descuidada e uma mirada insolente e cheia de indiferença. Tinha um fino bigode negro por debaixo do nariz estreito e direito e um grande lenço de seda, vermelho e amarelo, enrolado em volta do pescoço. Disse qualquer coisa à mulher. Esta parou por um segundo, virou-se e olhou para os ocupantes do carro, que estava agora já muito perto. Leo accionou de novo a buzina, imperiosamente. A mulher, que usava um lenço cinzento e branco amarrado em volta da cabeça, virou-se para a frente rapidamente, para acompanhar o andamento da carroça, cujo condutor também voltara à sua posição inicial e levantava as rédeas, movendo os ombros leves e elegantes. Mas continuava sem se desviar.
Leo carregou na buzina, enquanto travava e o carro abrandava, já muito junto da traseira da carroça. Ao ouvir toda aquela barulheira, o cigano voltou-se para trás, o riso estampado na sua cara morena, por debaixo do boné verde-escuro, e disse qualquer coisa que eles não ouviram, mostrando os dentes muito brancos por debaixo da linha do bigode negro e fazendo um gesto com a mão magra e morena. Saiam do meio do caminho!, gritou Leo. Como que em resposta, o homem puxou as rédeas delicadamente, fazendo o cavalo parar quando ele já se desviava para o lado da estrada. Era um bom cavalo ruão e uma boa carroça, verde-escura e elegante. Leo, irado, foi forçado a travar e a parar também. Não quererão as meninas, tão bonitas, ouvir ler as suas sinas?, perguntou o cigano da carroça, de rosto risonho, excepto os olhos, escuros e vigilantes, que saltavam de rosto para rosto, demorando-se na face jovem e delicada de Yvette. Ela encontrou os olhos dele durante um segundo, aquela mirada superficial, a sua insolência, a sua completa indiferença para com pessoas como Bob e Leo, e houve qualquer coisa que se incendiou no seu peito. Pensou: é mais forte do que eu! Não se rala! Oh, sim! Queremos!, gritou imediatamente Lucille. Oh, sim!, entoaram as restantes, em coro». In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN 978-972-370-164-7.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT 

Às Portas do Inferno. Domingos Amaral. «Nas casotas em redor, ouviu cavaleiros a saírem para o terreiro e, cada vez mais inquieto, o Rato viu o Velho abrir a porta e espreitar. Notando-o já desperto»

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Soure. Julho de 1132
«De madrugada, o Rato vestiu-se e abandonou a casota de Ramiro. Este ainda dormia em cima do colchão e o pequeno templário sorriu, enamorado. Gostava daquele bastardo bonito e musculado, cujo corpo amadurecera com o exercício físico a que se obrigava. Uma vez por semana, praticavam aqueles jogos proibidos em segredo, mesmo sabendo que arriscavam a condição de monges guerreiros. Se Martinho, prior de Soure, os topasse, podiam ser expulsos da Ordem do Templo de Salomão, mas a excitação era tanta que cegava. O magro e esguio Rato regressou à casota que partilhava com o Peida Gorda. Ao entrar, riu baixinho perante o fortíssimo ressonar do colega. Nem um exército de muçulmanos a entrar pela alcáçova de Soure perturbaria o sono daquele balofo!
Estava já a enrolar-se na manta quando ouviu vozes. Percorreu-o um arrepio de receio. Teria sido visto? Manteve-se quieto, escutou uma correria agitada, um soldado batia à porta da casota de Ramiro. Aterrado, pediu a Deus que não o denunciassem. A sodomia era um pecado mortal, seria certamente expulso de Soure. Pior do que isso, Ramiro perderia a posição importante que ali ocupava, o segundo na hierarquia, logo abaixo do mestre Jean Raymond. Tenso e hirto, o Rato aguardou, enquanto a barafunda prosseguia. Nas casotas em redor, ouviu cavaleiros a saírem para o terreiro e, cada vez mais inquieto, o Rato viu o Velho abrir a porta e espreitar. Notando-o já desperto, o outro gritou: Peida Gorda, toca a acordar! Chegou um cavalo com um morto... Há sarracenos na região!
Pouco depois, os três apresentaram-se no centro do terreiro, onde Ramiro, já vestido com a sua cota de malha, examinava um cadáver, enquanto Jean Raymond confirmava que o estranho cavaleiro chegara a Soure degolado. A cabeça deve ter caído quando foi decapitado. O observador Ramiro produziu uma conclusão imediata. É um galego. O Velho deu um passo em frente e perguntou-lhe: como sabeis? O bastardo de Paio Soares apontou para as insígnias na sela do animal, onde se viam as cores da família Trava. Ainda surpreendido, interrogou-se: o que faz um homem de Fernão Peres tão longe de casa? O cavaleiro sem cabeça viera de sul e, portanto, a sua morte acontecera em território muçulmano. Será um mensageiro?, perguntou o Rato. Ramiro nem pestanejou quando o viu aproximar, não revelando qualquer sentimento especial. O Rato notou, mais uma vez, que o seu amante era hábil a esconder de terceiros a simpatia por ele. Era uma das coisas que o Rato amava em Ramiro, a capacidade para a dissimulação, além dos braços fortes e das cristas ilíacas protuberantes. Mensageiro de quem? E para quem?, perguntou o ríspido Ramiro.
Para tirar aquilo a limpo, mestre Jean ordenou que se preparasse uma expedição. A sul de Soure, existiam umas aldeias a poucas horas de cavalo, talvez alguém tivesse visto o infeliz. O pequeno grupo de escolhidos foi liderado por Ramiro, e o Rato, bem como o Peida Gorda e o Velho, juntou-se naturalmente a ele. Os quatro eram os últimos sobreviventes do colectivo original que se formara seis anos antes, em Viseu, cujo objectivo era procurar a relíquia da Terra Santa. Da última vez que havia estado com Afonso Henriques, uns dias antes, em Coimbra, Ramiro sentira o seu desapontamento. O príncipe encarregara os templários de Soure de encontrarem a bruxa Sohba, a única que conhecia o mistério da relíquia, mas eles não o haviam conseguido. A mulher de negro ou morrera, como Ramiro acreditava, ou nunca voltara à caverna onde vivera alguns anos. Teria aquele galego, morto, alguma ligação à velha bruxa? Foi decapitado por um alfange, garantiu o Velho». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

sábado, 28 de outubro de 2017

A Vitória do Imperador. Domingos Amaral. «Os preceitos religiosos proibiam as folganças durante o Advento, mesmo entre os que se haviam casado numa igreja, como era o meu caso. Mas é sabido que, apesar de muitos cristãos…»

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Guimarães. Dezembro de 1130
«(…) A velha bruxa esticou o pernil!, sugeriu Gonçalo Sousa. Não concordei e declarei que devíamos procurá-la depressa, pois também Fernão Peres Trava desejava encontrar a relíquia, para a oferecer a Afonso VII, o que representava um perigo para o nosso príncipe e para o Condado Portucalense. Sohba é a chave do mistério da relíquia, proclamei, preocupado. Nesse momento, meu tio Ermígio franziu a testa e perguntou-me: tendes a certeza de que é uma bruxa? Pouco sabíamos sobre aquela duvidosa personagem, mas Afonso Henriques mostrou-se desinteressado dessas distantes questões e recuperou a habitual lengalenga do seu azar com as mulheres. Foi Gonçalo quem o interrompeu, relembrando: podeis sempre ir espetar a normanda! Se aquelas fabulosas tetas fossem minhas, espumava-me em Lanhoso todas as santas noites! Ouviram-se mais risos e novo protesto de Teresa Celanova, e só meu tio Ermígio permaneceu absorto nos seus tristes pensamentos, enquanto o príncipe afirmava que iria a Lanhoso afogar as mágoas no regaço da sua amiga Elvira, descendente de normandos! Sempre teatral, Gonçalo ergueu os braços ao alto e declarou: aleluia, ressuscitou!

Lanhoso. Dezembro de 1130
Os preceitos religiosos proibiam as folganças durante o Advento, mesmo entre os que se haviam casado numa igreja, como era o meu caso. Mas é sabido que, apesar de muitos cristãos tentarem cumprir as inúmeras leis de Cristo, essa é uma das que menos conseguem. Perdida Chamoa, o príncipe de Portugal deduziu que um regresso aos braços calorosos e fortes de Elvira era a única forma de se levantar do chão de tristeza onde tombara e mandou às malvas os princípios em que fora educado. Dias antes do Natal, apareceu em Lanhoso a cavalo, apenas escoltado por dois fiéis soldados. Elvira Gualter, a descendente dos vikings que ele havia conhecido em Viseu, ao vê-lo atravessar a porta da alcáçova de um dos mais íngremes e inexpugnáveis castelos portucalenses, abriu um largo sorriso e interrogou-o: vindes visitar vossas irmãs?
As filhas de dona Teresa e de Fernão Peres Trava, chamadas Sancha e Teresa, eram pequeninas e viviam em Lanhoso desde que dona Teresa morrera, na companhia de Elvira, que fora encarregue pela falecida regente de tomar conta delas. A normanda, loira e alta e com um corpo imponente, não era muito bonita de cara, mas aqueles cabelos dourados e sobretudo as suas formas polpudas, sempre haviam atraído fortemente Afonso Henriques. Mesmo sabendo que ele apenas a desejava, Elvira aceitava-o com alegria, pois era desprovida de qualquer sentimento de posse. De baixo nascimento, o pai era pescador de trutas nos rios, a normanda não ambicionava mais do que uma existência tranquila e sabia perfeitamente que o príncipe jamais casaria com ela. Essa aceitação serena da sua condição secundária permitia-lhe, sem qualquer sobressalto ou ciúme, dividir os afectos dele com outras mulheres, nomeadamente Chamoa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

O Gigante Enterrado. Kazuo Ishiguro. «Axl ficou tentado a acordar a mulher, pois um lado seu tinha a certeza de que, se nesse momento ela estivesse acordada e conversasse com ele…»

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«(…) No entanto, ficou tão absorto nos seus pensamentos que, quando se deu conta de como estava com frio, as estrelas já tinham praticamente sumido, um brilho começava a espalhar-se pelo horizonte e as primeiras notas do canto dos pássaros emergiam da penumbra. Axl levantou-se lentamente do banco, arrependido de ter passado tanto tempo do lado de fora. Gozava de boa saúde, mas tinha levado um bom tempo para se livrar da última febre e não queria que ela voltasse. Sentia agora a humidade nas suas pernas, porém, quando se virou para voltar para dentro do abrigo, o que mais sentiu foi satisfação, pois naquela manhã ele tinha conseguido lembrar-se de várias coisas que vinham-lhe fugindo à memória já fazia algum tempo. Além disso, sentia que estava prestes a tomar uma decisão muito importante, que vinha sendo adiada havia muito tempo, e isso lhe dava um entusiasmo que ele estava ansioso para compartilhar com a esposa.
Do lado de dentro, as passagens entre as tocas ainda estavam em total escuridão, e ele foi obrigado a tactear o caminho para vencer a pequena distância de volta até à porta da sua câmara. Muitas das portas no interior do abrigo não passavam de um arco para marcar a entrada de uma câmara. A natureza aberta desse arranjo não incomodava os aldeões por lhes tirar a privacidade, mas permitia que os quartos aproveitassem qualquer calorzinho que viesse da grande fogueira pelos corredores ou das outras fogueiras menores permitidas dentro do abrigo. No entanto, como ficava longe demais de qualquer fogueira, o quarto de Axl e Beatrice tinha algo que poderíamos reconhecer como uma porta de verdade: uma grande moldura de madeira entrecruzada com pequenos galhos, ramos de parreira e de cardo, que alguém que estivesse entrando ou saindo precisava levantar e empurrar para o lado, e que impedia a entrada de correntes de ar frio. Axl teria dispensado de bom grado essa porta, mas, com o tempo, ela havia-se tornado um motivo considerável de orgulho para Beatrice. Muitas vezes, quando voltava para o quarto, ele encontrava a esposa retirando ramos murchos dessa construção e os substituindo por outros mais frescos que ela colhera durante o dia. Naquela manhã, Axl afastou a porta apenas o suficiente para poder entrar, tomando cuidado para fazer o mínimo de barulho possível. Ali, a luz do amanhecer começava a infiltrar-se no quarto pelas pequenas frestas da parede externa. Ele conseguia ver vagamente a sua própria mão diante de si e, na cama de capim, a silhueta de Beatrice, que ainda parecia dormir sob as cobertas grossas.
Axl ficou tentado a acordar a mulher, pois um lado seu tinha a certeza de que, se nesse momento ela estivesse acordada e conversasse com ele, qualquer barreira que ainda restasse contra a decisão que ele acabara de tomar finalmente ruiria. Mas ainda levaria algum tempo para a comunidade se levantar e o dia de trabalho começar, então o homem acomodou-se no banquinho que ficava num canto do quarto, ainda bem embrulhado no manto da esposa. Ele perguntava se a neblina naquela manhã seria muito espessa e se, quando a escuridão desaparecesse, descobriria que ela tinha penetrado pelas rachaduras dentro do quarto deles. Mas, depois, os pensamentos dele desviaram-se dessas questões e se concentraram novamente no que o preocupava antes. Será que eles sempre tinham vivido assim, só os dois, na periferia da comunidade? Ou será que um dia as coisas já haviam sido muito diferentes? Mais cedo, lá fora, alguns fragmentos de uma recordação tinham-lhe voltado à mente: um breve momento em que ele estava andando pelo longo corredor central do abrigo, com o braço em torno dos ombros de um de seus filhos e o corpo um pouco curvado, não por causa da idade, como poderia acontecer agora, mas simplesmente porque queria evitar bater a cabeça nas vigas do corredor sombrio. Talvez a criança tivesse acabado de lhe dizer alguma coisa engraçada e os dois estivessem rindo. Mas agora, exactamente como acontecera antes lá fora, nada se fixava direito na sua mente e, quanto mais ele se concentrava, mais os fragmentos pareciam tornar-se indistintos. Talvez fossem apenas fantasias de um velho tolo. Talvez Deus nunca lhes tivesse dado filhos». In Kazuo Ishiguro, O Gigante Enterrado, Gradiva, 2017, ISBN 978-989-616-641-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O Gigante Enterrado. Kazuo Ishiguro. «Não quero dar a impressão de que era só isso que existia na Grã-Bretanha daquele tempo; de que numa época em que magníficas civilizações floresciam em outras partes do mundo»

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«Teria que procurar muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre. Em vez disso, o que havia eram quilómetros de terra desolada e inculta; por todo lado, trilhas toscas que atravessavam colinas escarpadas ou charnecas áridas. A maior parte das estradas deixadas pelos romanos já teria àquela altura se fragmentado ou ficado coberta de vegetação, muitas delas desaparecendo no meio do mato. Uma névoa gelada pairava sobre rios e pântanos, muito útil aos ogros que ainda eram nativos daquela terra. As pessoas que moravam ali perto, e pode-se imaginar o grau de desespero que as teria levado a estabelecer-se num lugar tão soturno, teriam razão de sobra para temer essas criaturas, cuja respiração ofegante se fazia ouvir muito antes de seus corpos deformados emergirem da neblina. Mas esses monstros não causavam espanto. As pessoas da época os teriam encarado como perigos quotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que a lenha acabasse; como curar a doença que podia matar uma dúzia de porcos num único dia e provocar brotoejas esverdeadas nas bochechas das crianças. De qualquer forma, os ogros não eram tão ruins assim, desde que ninguém os provocasse. Era preciso aceitar que, de vez em quando, talvez depois de alguma obscura desavença entre eles próprios, um desses monstros, tomado de uma fúria terrível, iria entrar atabalhoadamente numa aldeia e, apesar dos gritos e das armas brandidas na sua direcção, acabaria destruindo tudo o que lhe aparecesse pela frente e ferindo quem demorasse a sair de seu caminho. Ou que, de vez em quando, um ogro poderia agarrar uma criança e sumir neblina adentro. As pessoas da época tinham que se resignar com essas atrocidades.
Numa dessas áreas na beira de um extenso pântano, à sombra de algumas colinas de contornos irregulares, vivia um casal de idosos, Axl e Beatrice. Talvez não fossem exactamente esses os nomes, mas, para facilitar, é assim que vamos referir-nos a eles. Eu diria que esse casal levava uma vida isolada, mas naquele tempo poucos viviam isolados em qualquer dos sentidos que entendemos hoje. Para se manter aquecidos e ter protecção, os aldeões moravam em tocas, muitas delas escavadas bem lá no fundo da encosta da colina, que se ligavam umas às outras por passagens subterrâneas e corredores cobertos. O nosso casal de velhinhos morava num desses conjuntos labirínticos de tocas, ou abrigos, edifício seria uma palavra digna demais para descrever aquilo, com cerca de sessenta outros aldeões. Se saísse desse abrigo e caminhasse por vinte minutos ao redor da colina, chegaria à comunidade vizinha, que lhe pareceria idêntica à primeira. Mas, para os próprios habitantes, haveria muitos detalhes para distinguir um abrigo do outro, dos quais eles sentiriam orgulho ou vergonha.
Não quero dar a impressão de que era só isso que existia na Grã-Bretanha daquele tempo; de que numa época em que magníficas civilizações floresciam em outras partes do mundo, aqui ainda não estávamos muito além da Idade do Ferro. Se tivesse a chance de perambular à vontade pelo interior, poderia muito bem encontrar castelos cheios de música, boa comida, excelência atlética; ou mosteiros com moradores extremamente cultos. Mas não há como negar: mesmo montado num cavalo forte, com o tempo bom, poderia passar dias cavalgando sem avistar nenhum castelo nem mosteiro elevando-se do meio da vegetação. A maior parte do tempo, veria comunidades como a que acabei de descrever e, a menos que estivesse levando presentes como alimentos e roupas, ou estivesse armado até os dentes, não teria a menor garantia de ser bem recebido. Lamento pintar um quadro como esse do nosso país naquela época, mas o que se há.de fazer?
Voltando a Axl e Beatrice. Como eu dizia, esse casal idoso morava na margem externa do abrigo, de modo que a toca deles ficava menos protegida dos elementos e pouco se beneficiava do calor da fogueira da Grande Câmara, onde todos se reuniam à noite. Talvez tenha havido uma época em que moravam mais perto do fogo, uma época em que eles moravam com os filhos. Na verdade, eram exactamente ideias assim que vinham à cabeça de Axl quando ele ficava acordado na cama nas horas vazias antes do amanhecer, enquanto a sua mulher dormia um sono profundo ao seu lado, e nesse momento a sensação de uma perda indefinida começava a lhe doer no coração, impedindo-o de pegar no sono de novo. Talvez tenha sido por isso que, naquela manhã específica, Axl desistiu de ficar na cama e saiu de mansinho do abrigo para ir se sentar lá fora, no banco velho e torto que ficava ao lado da entrada, à espera dos primeiros sinais da luz do dia. Era Primavera, mas o ar ainda estava gélido, embora Axl estivesse enrolado no manto de Beatrice, que ele tinha pegado ao sair». In Kazuo Ishiguro, O Gigante Enterrado, Gradiva, 2017, ISBN 978-989-616-641-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT

A Carícia Essencial. Roberto Shinyashiki. «Já pensou o que seria de nós, se não tivéssemos permanentemente onde dormir, se a nossa casa mudasse de endereço todos os dias?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Cada vez mais gente ia à bruxa para adquirir unguentos e poções. Mas a bruxa não queria realmente que as pessoas morressem porque se isso ocorresse, deixariam de comprar poções e unguentos: inventou um novo plano. Todos ganhavam um saquinho que era muito parecido com o saquinho de Carinhos, porém era frio e continha Espinhos Frios. Os Espinhos Frios faziam as pessoas sentirem-se frias e espetadas, mas evitava que murchassem. Daí para frente, sempre que alguém dizia eu quero um Carinho Quente, aqueles que tinham medo de perder um suprimento, respondiam: não posso dar-lhe um Carinho Quente, mas, se você quiser, posso dar-lhe um Espinho Frio. A situação ficou muito complicada porque, desde a vinda da bruxa havia cada vez menos Carinhos Quentes para se achar e estes se tornaram valiosíssimos. Isto fez com que as pessoas tentassem de tudo para consegui-los. Antes da bruxa chegar as pessoas costumavam reunir-se em grupos de três, quatro, cinco sem se preocuparem com quem estava dando carinho para quem. Depois que a bruxa apareceu, as pessoas começaram a juntar-se aos pares, e a reservar todos os seus Carinhos Quentes exclusivamente para o parceiro. Quando se esqueciam e davam um Carinho Quente para outra pessoa, logo se sentiam culpadas. As pessoas que não conseguiam encontrar parceiros generosos precisavam trabalhar muito para obter dinheiro para comprá-los. Outras pessoas tornavam-se simpáticas e recebiam muitos Carinhos Quentes sem ter de retribuí-los. Então, passavam a vendê-los aos que precisavam deles para sobreviver. Outras pessoas, ainda, pegavam os Espinhos Frios, que eram ilimitados e de graça, cobriam-nos com cobertura branquinha e estufada, fazendo-os passar por Carinhos Quentes.
É importante termos consciência de que qualquer forma de estímulo leva o indivíduo a perceber-se vivo... Que serve como um factor de equilíbrio da pessoa, ainda que por vezes instável. Levine realizou uma série de experiências com ratos e chegou à conclusão de que qualquer estímulo, ainda que seja negativo, é melhor do que o abandono. O cientista separou-os em três grupos: o primeiro era colocado numa gaiola e submetido a choques eléctricos todos os dias, na mesma hora, por um certo tempo; e o segundo grupo também era colocado na gaiola de choques, todos os dias, à mesma hora, pelo mesmo período de tempo, mas não recebia os choques. O último grupo era deixado na gaiola permanentemente sem ser sequer manuseado. Para surpresa de Levine, não havia, no final da experiência, grande diferença no comportamento dos dois primeiros grupos, enquanto que o terceiro, que não recebia qualquer estímulo, comportou-se de forma bastante diferente. Quando colocados em ambientes estranhos, que lhes causavam tensões, os ratinhos do grupo que não recebia estímulos agacharam-se no canto da caixa, amedrontados e sem qualquer curiosidade para explorar; os que estavam habituados à tensão (choque eléctrico) no entanto, exploravam o ambiente, tanto quanto aqueles que não receberam choque. A estimulação positiva ou negativa, como nos mostra Levine, acelera o funcionamento do sistema glandular supra-renal, que desempenha um papel importantíssimo no comportamento dos animais adultos. Sem qualquer dúvida, os animais manipulados abrem os olhos mais cedo, sua coordenação motora é desenvolvida também mais cedo, o pelo do corpo cresce com mais rapidez e tendem a ser significativamente mais pesados quando desmamam. Apresentam, também, maior resistência a uma injecção de células de leucemia, por um tempo mais longo.
Fome sexual. O desejo sexual é também uma fome natural. É natural o desejo e esta vontade de concretizar esse desejo. que se manifesta. Simplesmente... Como um botão tende a formar uma rosa, como a vontade que se tem de agarrar e ser agarrado... É poder viver esse desejo... Assim como comer quando se tem fome... É tanto amor que se tem o desejo de estar dentro do outro, e ter o outro dentro de si, no mais profundo da entrega. Ter sexo como alimento, sem conflitos, como encontro amoroso, que seja muito mais que uma simples fome de estruturas. As estruturas são pontos de referência e os seres humanos necessitam ter as suas referências, ver o mundo de uma maneira estruturada, como por exemplo: a cama de uma certa forma, as suas cadeiras, o que vai fazer com o tempo, com sua vida. Já pensou o que seria de nós, se não tivéssemos permanentemente onde dormir, se a nossa casa mudasse de endereço todos os dias? Lembra-se da confusão que muitas vezes se dá quando alguém arruma os seus livros, a tal bagunça organizada? As estruturas levam as pessoas a terem as suas referências. É comum alguém dizer: eu sinto-me ansioso pois não sei o que nós somos; se amigos, amantes ou namorados... E quando as aquela coisa da paixão, da entrega...» In Roberto Shinyashiki, A Carícia Essencial, 1984, Editora Pergaminho, colecção Gente, 1995, ISBN 978-972-711-224-1.


Cortesia de EPergaminho/JDACT

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Na Romagna. Paul Strathern. «No entanto, durante quanto tempo mais manteria Orsini a aparência de que apoiava Bórgia?»

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Traição e Bluff
«(…) Soderini conteve-se, mas estava sem sombra de dúvida perturbado. Maquiavel pode ter ficado também perturbado, mas além disso sentiu-se impressionado e não deixaria de o transmitir no despacho que enviou para Florença: este senhor é verdadeiramente esplêndido e magnificente e, na guerra, não há empreendimento por maior que seja que não lhe pareça pequeno; é incessante na busca de glória e de território e não conhece perigos nem fadiga. Chega a um lugar antes que qualquer pessoa se aperceba de que saiu do lugar onde estava antes. É amado pelos seus soldados e tem ao seu serviço os melhores homens de Itália. Tudo isto lhe permite ser vitorioso e formidável, particularmente à luz da sua boa fortuna permanente. A notícia de que Bórgia tinha tomado Urbino de súbito, a chegada de noite, fatigado, após longa e dura cavalgada pelas montanhas, o ter sido levado apressadamente para o palácio mal acabara de desmontar, os guardas armados e o trancar das portas depois de terem entrado, e por fim o aparecimento teatral de Bórgia com a luz das velas atrás de si num salão às escuras, tudo isto deve ter contribuído para baixar as defesas de Maquiavel. Este tinha na altura 33 anos e já se encontrara com várias figuras importantes, e, no entanto, esta fortíssima primeira impressão permaneceria com ele para o resto da vida, afectando todos os seus posteriores pensamentos acerca de Bórgia.
Durante este encontro em Urbino, as aptidões políticas de Maquiavel levá-lo-iam a suspeitar de que havia um certo bluff no estilo bombástico de Bórgia. Mas nem isso podia já perturbar a imagem ideal de um conquistador enérgico e sem escrúpulos, que tão fortemente tinha ficado gravada na sua mente. Soderini e Maquiavel não o sabiam ainda, mas a situação de Bórgia tinha sofrido uma modificação drástica nos dias anteriores. Luís XII, que se encontrava prestes a estabelecer a sua corte em Asti, no Norte de Itália, não estivera tão distraído como parecia por causa da sua disputa com a Espanha. Observara a terceira campanha de César na Romagna e estava bem ciente do que ele era capaz. Mas isso ainda não era tudo. Como resultado da tomada traiçoeira de Urbino por Bórgia, os seus inimigos na região tinham fugido e iam a caminho para expor o seu caso a Luís XII, que, ao que constava, tinha ficado em particular aborrecido com o movimento ostensivo de Bórgia sobre Arezzo, em território florentino. Contudo, esta acção de Vitellozzo não era inteiramente da responsabilidade de Bórgia, e este estava bem consciente de que, na melhor das hipóteses, o seu comandante só estava parcialmente sob o seu controlo. Como se isto já não fosse mau o suficiente, Bórgia ouvira falar de uma conspiração contra si, que estaria a ser montada entre os seus comandantes Vitellozzo, Baglioni e Liverotto da Fermo. Muitos dos castelos e domínios que lhes pertenciam situavam-se ao longo das fronteiras ocidental e meridional do ducado da Romagna de Bórgia, e eles acabavam de compreender a sua vulnerabilidade face às contínuas intenções expansionistas de Bórgia. Só virando-se contra ele tinham probabilidades de sobreviver. Mesmo Paolo e Giulio Orsini, que se encontravam com Bórgia em Urbino, tinham, segundo os boatos, sido contactados para se juntarem à conspiração. No momento, ajudavam Bórgia a intimidar a delegação florentina, informando confidencialmente Soderini e Maquiavel de que a conquista de Arezzo por Vitellozzo contara com o apoio encoberto de Luís XII, o que significava que Bórgia podia agora com facilidade desencadear uma acção sobre a própria Florença, se assim o decidisse.
No entanto, durante quanto tempo mais manteria Orsini a aparência de que apoiava Bórgia? Estas eram as últimas famílias aristocráticas poderosas de Roma que ainda conservavam as suas terras e os seus castelos. Alexandre VI tinha anulado o poder das outras famílias notáveis uma a uma, quando surgia a oportunidade, acabando por confiscar os castelos e as terras da família Colonna escassos meses antes, quando esta cometera o erro de alinhar ao lado de Nápoles contra os franceses e os espanhóis. Os Orsini tinham evidentemente começado a pensar quanto tempo demoraria até eles próprios serem eliminados e as suas terras passarem a fazer parte do crescente domínio de Bórgia». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.

Cortesia do CAutor/JDACT

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O Papa e o Filho Bastardo. Paul Strathern. «Ao ter conhecimento disto, o rei Alfonso II de Nápoles, que subira ao trono apenas no ano anterior, decidiu abdicar e entrar para um mosteiro»

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«(…) Guicciardini descreveu de modo sucinto o desprezo dos italianos pelo rei francês: não só lhe faltava conhecimento das artes, como também mal sabia ler e escrever. Sentia ganância pela governação, mas ela bastante incapaz na sua prática, porque se deixava influenciar continuamente. Um homem assim mostrou ser seduzido com facilidade por toda a ostentação ancestral sofisticada exibida por Alexandre VI. Quando Carlos VIII se ajoelhou com a intenção de beijar os pés do papa, Alexandre VI ajudou-o graciosamente a levantar-se. Ainda assim, o papa foi obrigado a fazer algumas cedências. Quando Carlos VIII partiu para Nápoles com o seu exército, a 28 de Janeiro de 1495, insistiu em que o cardeal César Bórgia cavalgasse a seu lado, como companheiro amigável (e refém), junto com uma coluna de 19 mulas que transportavam tesouros e ricas tapeçarias. Dois dias depois, o exército francês chegou a Velletri, onde o rei e o seu companheiro de viagem deveriam ser os convidados do bispo local, que não era outro senão o cardeal Giuliano della Rovere. Esta teria sido de facto uma humilhação para o jovem e orgulhoso cardeal Bórgia, que não suportava o mais pequeno insulto pessoal. No entanto, este não chegaria a sê-lo. De acordo com o mestre de cerimónias de Alexandre VI, Johannes Burchard, no dia 30 de Janeiro soube-se que o cardeal César Bórgia tinha iludido o controlo do rei francês e fugira de Velletri disfarçado de palafreneiro das cavalariças reais, e que viajara tão veloz que nessa noite já dormiu em Roma. No dia seguinte, esgueirou-se discretamente da cidade ao nascer do dia. Para cúmulo, Bórgia conseguiu também que metade da coluna de mulas que carregava o tesouro fosse roubada, enquanto as caixas transportadas pelas restantes mulas foram encontradas vazias.
Quando Carlos VIII compreendeu que fora enganado, teve uma fúria e gritou: estes italianos são todos uns canalhas nojentos e o pior deles é o seu Santo Padre! O cardeal Bórgia manteve-se escondido na fortaleza da família em Spoleto durante dois meses, antes de se arriscar a voltar a Roma. No entanto, dias depois de regressar, daria a conhecer a sua presença de maneira bem característica. Um destacamento de soldados suíços que ocupavam Roma em nome de Carlos VIII foi atacado com violência na Praça de São Pedro por várias centenas de espanhóis fortemente armados; no decurso da peleja que se seguiu, foram assassinados 24 suíços e muitos mais conseguiram escapar com ferimentos graves. César Bórgia não era homem para esquecer um insulto: tinham sido soldados suíços os que saquearam a casa da sua mãe e lhe roubaram o dinheiro.
Entretanto, após saírem de Velletri, Carlos VIII e o seu exército continuaram em direcção a Nápoles. Ao ter conhecimento disto, o rei Alfonso II de Nápoles, que subira ao trono apenas no ano anterior, decidiu abdicar e entrar para um mosteiro; pouco depois, o novo rei, o seu filho Ferrante II, fugiu por mar para a Sicília. No dia 22 de Fevereiro, Carlos VIII e o exército francês entraram triunfantemente em Nápoles e logo se instalaram como em casa própria. Várias fontes referem o grande apetite sexual de Carlos VIII e o seu entusiasmo pelas mulheres de Nápoles. Diz-se que teria um livro com esboços dos retratos das preferidas, que ele folheava, salivando ao imaginar os seus favores. Outras confirmam a sua obsessão com as relações sexuais, mas alegam que insistia na novidade e nunca estava com a mesma mulher duas vezes». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.

Cortesia do CAutor/JDACT

Da Vinci. Maquiavel. Bórgia. Paul Strathern. «As suas aptidões de pintor sempre inovadoras atingiram o seu auge e, na sua busca incansável da originalidade, escolheu uma abordagem inteiramente nova para a pintura de frescos»

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O Mundo que eles Criaram. Uma Constelação Única
«(…) Igualmente espantosos eram alguns dos engenhos militares que Leonardo continuava a esboçar nos seus cadernos de apontamentos: tais como um grande morteiro móvel que dispara pedras como se fosse uma saraivada e um veículo blindado semelhante a um tanque com a forma de um cone achatado, acompanhado por um desenho da sua parte inferior demonstrando como funcionava a sua roda dentada. Estes desenhos estavam bastante à frente do seu tempo: só três séculos mais tarde é que um veículo militar blindado com semelhanças assinaláveis seria experimentado na Guerra Civil Americana. É pouco provável que estes desenhos tenham passado efectivamente à prática, mas experiências recentes demonstraram que a maioria deles funcionaria. Uma excepção assinalável era o carro blindado, cujo motor de rodas dentadas fora concebido de tal maneira que impulsionaria as rodas da frente e as de trás em sentidos opostos. É um erro tão elementar que pode muito bem ter sido cometido de propósito, para que qualquer ladrão inexperiente que tentasse construir sozinho um destes veículos não o conseguisse fazer. Por outro lado, este erro pode muito bem ter ficado a dever-se às desconfianças iniciais de Leonardo acerca deste tipo de trabalho. Apesar da sua crescente mestria na concepção de armas de guerra, ao longo de toda a sua vida manteve-se sigilosamente (isto é, nos seus cadernos de apontamentos) contrário à crueldade dos homens (...) que estarão sempre a lutar uns com os outros, infligindo as maiores perdas e morte frequente a ambos os lados.
Numa linha semelhante, Leonardo desenhou diques para controlar os canais que irrigavam as planícies férteis dos arredores de Milão, mas concebeu também um método para deixar uma inundação de água solta sobre um exército e pontes e muralhas de cidades. Estes planos podem muito bem ter sido inspirados pela inundação do Arno que testemunhou na juventude. Ao mesmo tempo, talvez para conter qualquer futura inundação do Arno, esboçou um mapa com um plano destinado a desviar o rio das proximidades de Florença para um canal que levaria directamente à costa, dando à cidade uma via navegável para o mar. Dadas todas estas preocupações, não é de surpreender que Leonardo tivesse pouco tempo para a pintura. De facto, durante os 17 anos que viveu em Milão, apenas completou seis obras, embora entre elas se contassem algumas das melhores que saíram do seu pincel, a mais notável seria A Última Ceia. Este mural, pintado no refeitório do mosteiro dominicano de Santa Maria delle Grazie, em Milão, revela Leonardo no seu melhor.
As suas aptidões de pintor sempre inovadoras atingiram o seu auge e, na sua busca incansável da originalidade, escolheu uma abordagem inteiramente nova para a pintura de frescos. Uma descrição em primeira mão feita pelo jovem Matteo Bandello, à altura noviço no mosteiro, mostra o sofrimento imenso por que Leonardo passou para concluir esta obra: chegava bem cedo, subia para o andaime e começava a trabalhar. Por vezes, ficava ali desde o nascer do dia até ao pôr do Sol, sem pousar uma única vez o pincel, esquecendo-se de comer e beber, pintando sem cessar. Noutras ocasiões, passava dois, três ou quatro dias sem pegar no pincel, mas ficando uma ou duas horas por dia de pé frente à obra, de braços cruzados, analisando e avaliando as figuras mentalmente. Também o vi, levado por algum ímpeto súbito, sair da Corte Vecchia ao meio-dia, quando o calor do Sol estava no seu máximo, sem procurar as sombras (...) e vir direito a Santa Maria delle Grazie, subir para o andaime, pegar no pincel, dar uma ou duas pinceladas, e ir-se embora de novo.
Cada rosto, cada feição, cada posição e gesto dos 12 apóstolos sentados à mesa com Cristo foram o resultado de uma profunda meditação artística. Cada figura é individual, inspirada em alguém que lhe chamara a atenção e que, de forma disfarçada, esboçara no caderno de apontamentos que trazia pendurado no cinto. Ainda assim, cada figura é reconhecível tanto psicológica como simbolicamente, desde o céptico Tomás com o seu dedo predestinado erguido, até ao afetacdo intelectual Lucas, todos fechados dentro das rígidas formas geométricas do cenáculo, cuja perspectiva conduz permanentemente os olhos para a figura central de Cristo, e depois permite que eles percorrem cada fila de discípulos que gesticulam, criando uma cena teatral repleta de presciência». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.

Cortesia do CAutor/JDACT

Da Vinci. Maquiavel. Bórgia. Paul Strathern. «Ludovico escolheu como amante uma jovem de 14 anos, inteligente e atraente, Cecilia Gallerani, e uma das primeiras encomendas importantes feitas por Ludovico…»

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O Mundo que eles Criaram. Uma Constelação Única
«(…) Leonardo passaria 17 anos em Milão, e este seria o período mais feliz e produtivo da sua vida. Embora tivesse demorado algum tempo até ser levado à presença de Ludovico Sforza, ficou de boa vontade na cidade, aceitando inicialmente encomendas em conjunto com os artistas florentinos irmãos De Predis. Leonardo apreciava a atmosfera comercial mais descarada e mais vibrante da Milão setentrional e enublada, depois daquela estufa do snobismo e da alta cultura de Florença. E foi aqui que ele arranjou um ajudante de dez anos, a quem deu a alcunha de Salai (traquina), cujos modos irreprimíveis e beleza de adolescente a desabrochar acabariam por cativar o coração do seu mestre. Leonardo comprava belas roupas para Salai, que lhe retribuía roubando-lhe o dinheiro da bolsa. Os cadernos de apontamentos de Leonardo ficaram cheios de referências a este pequeno demónio, a este mafarrico; a dada altura, exasperado, descreve-o mesmo como ladrão, mentiroso, obstinado, ganancioso, mas no entanto, ao mesmo tempo, os desenhos afectuosos que faz de Salai retratam um jovem cativante de uma beleza excepcional.
De maneira muito diferente, Leonardo sentiu-se também atraído pelo poderoso Ludovico Sforza, mais velho do que ele apenas um ano. Ludovico, conhecido como Il Moro (o Mouro) devido à sua pele escura, foi descrito pelo grande historiador suíço do Renascimento Jacob Burckhardt como o tipo perfeito de tirano, aludindo à mão firme com que governava Milão e ao seu desejo de transformar a capital do ducado numa cidade do Renascimento. Retratos de Ludovico mostram-no como uma figura bastante rechonchuda, quase sonolenta, mas esta interpretação é desmentida pelos seus actos, que revelam um homem complexo, enigmático. Quando o seu irmão mais velho, o duque Galeazzo Maria, foi assassinado em 1494, o ducado passaria para as mãos do filho do duque, Gian Galeazzo, então com oito anos, mas Il Moro usurpou o lugar do jovem sobrinho e assumiu o poder como regente, governando de forma secreta a partir do extenso e muralhado Castello Sforzesco, cuja silhueta sombria dominava a linha do horizonte do norte da cidade.
Ludovico escolheu como amante uma jovem de 14 anos, inteligente e atraente, Cecilia Gallerani, e uma das primeiras encomendas importantes feitas por Ludovico a Leonardo foi um retrato da jovem. Nele, Cecilia aparece senhora de si e casta na sua beleza, segurando ao colo um arminho branco, símbolo da pureza. No entanto, a maneira como os seus dedos compridos assentam na pele do animal, acariciando-o, provoca um frémito de sugestão erótica. Depois de estar sexualmente fascinado por Cecilia, Ludovico amou-a, e este retrato reflecte com subtileza a nova posição da jovem na sua vida, como Ludovico teria sem dúvida desejado. Leonardo estabeleceu como é evidente uma relação com Ludovico, mas não tinha quaisquer ilusões acerca do seu senhor, comentando no seu caderno de apontamentos, de maneira invulgarmente direta: a justiça do Mouro é tão negra como a sua pele. Quando Leonardo começou a trabalhar para Ludovico, mudou-se para um apartamento na Corte Vecchia (Corte Velha). Foi aí que o jovem herdeiro legítimo, Gian Galeazzo, esteve de início sob prisão domiciliária, mas naquele momento já havia sido transferido para uma residência fora de Milão, e o palácio estava vazio a maior parte do tempo. O apartamento de Leonardo dava para um dos grandes pátios interiores orlados de pórticos e ele tinha também à sua disposição, como atelier, o vasto antigo salão de baile.
Leonardo começou por ser contratado para produzir entretenimentos para Ludovico e a sua corte. Tocava para eles no seu alaúde de prata, dava recitais de canto, escrevia adivinhas e contava histórias. Para os grandes cortejos, fornecia artefactos engenhosos destinados a surpreender e deliciar Ludovico e os seus convidados, tais como estátuas de gelo, uma complexa mascarada com planetas em movimento e espetaculares exibições de fogo de artifício». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.

Cortesia do CAutor/JDACT

terça-feira, 24 de outubro de 2017

A Instrução dos Amantes. Inês Pedrosa. «Nessa noite os rapazes descobriram duas coisas: que a Cravo e Canela afinal se chamava Cláudia, e que Ricardo Luz passava a ser o chefe do grupo»

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«(…) Alimentaram-na e protegeram-na (do frio, do calor, das correrias, do mundo) como se ela não fosse mais do que uma boneca de porcelana ou um monstruoso bibelot. Mariana foi demasiado mimada para poder suportar o mundo. Sofreu a infância com a terrível maturidade de um adolescente e decifrou a adolescência com a impiedosa infantilidade de um adulto. O pai amou-a com o amor absoluto, sufocante, que era a memória do seu próprio desamor. Encontrou-se assim precocemente confrontada com o desajuste dos espelhos e com a sôfrega cegueira dos olhares. Mariana soubera escolher o seu destino, despojara-se do grosso véu de invisibilidade, era agora um deles. Estavam todos no patamar do 45-A quando se ouviu aquele baque seco. Foi ao princípio de uma tarde de domingo. O frio era tanto que não havia maneira de arranjar uma casa livre. As famílias estavam coladas aos aquecedores e à televisão. Para piorar a situação, a diva do chefe tinha voltado a levar com o cinto do pai, e estava incapaz de subir para a mota. Ninguém ousaria propor uma volta sem Cláudia e despertar a fúria de Ricardo Luz. As iras do chefe eram raras e definitivas. Ganhara o lugar de comando com um pontapé e dois murros: a Cravo e Canela estrebuchava debaixo do bruto corpo do Traficâncias, que tentava violá-la ali mesmo, em cima da mota, à entrada da garagem do 41. Eles estavam no costumeiro poiso do 45-A, e espreitavam, muito calados, encolhidos contra a porta. A rapariga desatou a gritar, o Traficâncias tapou-lhe a boca, e Ricardo irritou-se: embora. Vamos mostrar-lhe quem é que é homem, pessoal.
Deixa estar, que a miúda já vai descobrir o que é um homem, bichanou o Radar, num tremor de excitação. E se ela não ficar satisfeita, a malta vai lá depois dar-lhe o resto, acrescentou o João, com um sorriso meigo, acendendo um cigarro. Cambada de cães cobardes, é o que vocês são. Então vem mafioso de fora abusar das miúdas da nossa quinta, e vocês ficam a rir-se, borrados de medo, é, seus tarados? Oh Luz, tangareasy, pá! O Traficâncias não é para brincadeiras, sabes bem, recordava o Linhos, em voz de falsete. Tu nem conheces a miúda. Vamos que ela seja amiga do homem, hem?, aventava o Filipe, a dar lustro ao capacete da mota. Bem. Já vi que convosco não me governo. Até já, galinholas. Vou ali e já venho.
Nessa noite os rapazes descobriram duas coisas: que a Cravo e Canela afinal se chamava Cláudia, e que Ricardo Luz passava a ser o chefe do grupo. Aperceberam-se desta mudança de vida no breve minuto que mediou entre a saída de cena do Traficâncias, praguejando agarrado à braguilha, e a entrada fulgurante de Ricardo, com a beleza do bairro ao colo, desfeita em lágrimas. Pronto, boneca, já passou. O Lobo Mau não volta mais. E se voltar, estamos cá nós para lhe limpar o sebo, beldade, avisou o Radar, adejando em redor do casal. Xô! Vê se ganhas vergonha na cara, maricôncio, rosnou Ricardo, enquanto secava as lágrimas à sua protegida. Muito prazer em conhecê-la, apesar das circunstâncias infelizes. Filipe, para as amigas Marlon Brando. Como é que a menina se chama? Chama-se Cláudia, e não está para aturar os vossos desmandos imbecis. Não percebem que a rapariga não está bem, seus broncos? Calma, ó chefe! A gente só quer animar a pequena, com sua licença, explicou o João, lançando um dos seus sorrisos de encantador desprotegido. Obrigada pelos cuidados, chefe, disse Cláudia, com uma gargalhadinha nervosa. A partir daquele instante, a liderança de Ricardo Luz tornou-se inquestionável. Não era o mais forte: os músculos mais evidentes pertenciam a Filipe do Carmo, autoproclamado Brando das Avenidas, às vezes chamavam-lhe o Apertos, por causa da roupa, que escolhia sempre um número abaixo, para uma melhor exposição das saliências. O maior desgosto de Filipe era andar a pé; quando o vinha visitar, o pai prometia-lhe uma mota, mas acabava sempre por trocar de carro e ficar sem dinheiro». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

A Instrução dos Amantes. Inês Pedrosa. «Eles não tinham senão a sabedoria pura dos afectos brutos. Surripiavam os espelhos dos elevadores só pelo prazer de os esmigalhar pelas escadas…»

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«Se Cláudia fosse uma rapariga dada aos delírios românticos próprios da sua idade, teria escolhido um outro cenário para princípio de paixão. Mas Cláudia trazia os ânimos desprevenidos, e deu-lhe para entontecer por Dinis no funeral de Mariana. Tratava-se, aliás, de uma bela cerimónia. O pai da morta explicou que a pequena se tinha desequilibrado da varanda, e o padre lá fez de conta que o Senhor escreve direito por linhas tortas. Assim, a pobre alma passou oficialmente ao convívio dos anjos com um visto de vertigem involuntária. Os suicídios são excelentes estimulantes da solidariedade humana. Viva, Mariana não despertara maior entusiasmo que o das chalaças de circunstância. Nunca ninguém cuidou de averiguar quem ela era, porque ela trazia sobre o corpo o único antídoto de curiosidade eficaz numa mulher de dezasseis anos: a gordura. Mariana era realmente tão gorda que podia permitir-se passear pelas ruas do bairro às três da madrugada sem despertar o dente certeiro das porteiras ou o álcool fogoso dos rapazes. Nunca, ninguém disse mal dela, como normalmente ali se dizia das pessoas a quem se queria bem. Agora, pela primeira vez, Mariana tinha a importância da culpa. Mas nem aquela gloriosa culpa parecia pertencer-lhe por inteiro; os vizinhos culpavam o pai, a família culpava a morte precoce da mãe, os velhos culpavam os novos.
Só os novos, liderados pelo namorado de Cláudia, faziam a devida vénia à defunta: ela matou-se porque quis, disseram. Ela tinha ousado enfrentar a morte, e isso lhes bastava. Era por isso que estavam todos ali, aperaltadíssimos. Os rapazes puseram gravata e pentearam os cabelos. As meninas prenderam com ganchos as franjas enormes e rezaram convictamente as orações esquecidas. Até Luísa e Laura, as gémeas escandalosas, apareceram de saia pelos joelhos, com olheiras de martírio. Como os grandes santos e os grandes criminosos, eles preferiam as vaidades profundas às verdades aparentes. Teresa, a lírica, viria a escrever um poema intitulado Lágrimas por Mariana, combinando a chuva daquele enterro com os gritos da senhora do 34 que vinha do café e descobriu o corpo desfeito no cimento. Mas o grupo havia de ler o poema em voz alta e no meio de grande galhofa, para que Teresa percebesse que aqueles floreados piedosos eram de um despudor indigno.
Eles não tinham senão a sabedoria pura dos afectos brutos. Surripiavam os espelhos dos elevadores só pelo prazer de os esmigalhar pelas escadas, de se observarem multiplicados neles, e de esperar que algum estranho acabasse por se ferir. Estragar os adereços do mundo trabalhador e roubar-lhe pequenas utilidades, como carros e dinheiro, era cumprir uma missão de rigor e limpeza. Nunca eram descobertos e toda a gente sabia que eram eles. Esta impunidade provava-lhes que eram temidos, e que o mundo adulto era feito do palavroso convívio com o medo. Ouviam sermões imensos, pasmavam de ver a quantidade de palavras que os velhos eram capazes de arranjar para embrulhar os caminhos que não tinham tido coragem de seguir. Era só por isso que odiavam as escolas e faziam questão de prescindir das palavras. Para proteger essa pureza radical a que se tem chamado, consoante os tempos e as conveniências, loucura ou lucidez.
A tragédia de Mariana foi corriqueira e morna como todas as grandes tragédias: amaram-na tanto que se esqueceram de reparar nela. A mãe morrera-lhe ao primeiro ano de vida. O único facto que com ela partilhara, para além do parto, foi a febre tifóide que pouco depois a mataria. As mães têm normalmente uma vantagem sobre os pais: precisam menos dos filhos do que do exercício do amor que os filhos lhes proporcionam. Dedicam-se às crianças como os marinheiros antigos se dedicavam ao mar: com susto, surpresa e doidice. Privada de mãe, Mariana foi condenada a ser, desde a infância, adolescente. Uma estátua parada no tempo para proteger do envelhecimento o pai, os avós, a família». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.

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O Corsário dos Sete Mares. Deana Barroqueiro. «Sim, eu passei esses difíceis anos de Cochim perto deles. Viveram felizes nos primeiros tempos, depois desentenderam-se por causa de umas moças cativas»

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Cochim
«(…) Pelos ossos de meu pai!, exclama Fernão, incrédulo, recordando-se das dimensões e imponência da construção, muito embora tivesse chegado a Diu aturdido da extenuante viagem da carreira da Índia e, ocupado em buscar um rumo para a sua nova vida nos escassos dias que ali passara, pouco ficara a conhecer da sua história. Fizestes aquela fortaleza em apenas meio ano? Juro-vos pelos Evangelhos que é verdade, pois laborei nela duramente! A fortaleza, pelo lugar onde se achava, era cousa de tanta sustância para o serviço d’el-rei João III, que deu causa à inimizade entre Nuno Cunha e o Martim Afonso Sousa. O governador queria ter a honra de fazer aquela fortaleza, porém o capitão adiantou-se-lhe e tratou do negócio com Bahadur. Fernão solta uma gargalhada e, vendo a estranheza que o seu riso causa, justifica-se: pouco antes de eu vir para cá, chegou a Lisboa a notícia da construção da fortaleza. Foi o piloto Diogo Botelho Pereira que a levou, navegando desde Cochim numa pequena fusta, que foi cousa espantosa de se ver. Esse Diogo Botelho fez a volta da Índia, de Cochim para o reino, numa fusta?, pergunta o mercador aveirense, com assombro. Não o posso crer!
Uma proeza bem singular, de verdade, confirma Fernão. Durante muito tempo não se falou de outra cousa no reino. A fusta era o que mais fazia pasmar as gentes que acorriam de todos os lugares para a ver, pois parecia impossível que alguém pudesse fazer nela tão espantosa viagem. Diogo Botelho partiu de cá sem licença do governador, que quase ensandeceu de raiva! É a vez de Castanho rir com gosto: era mais um que lhe passava a perna e fazia perraria! Nuno Cunha temia que Martim Afonso Sousa se lhe adiantasse a mandar a notícia a el-rei João para receber as alvíssaras, por isso se dava muita pressa a consertar uma boa nau para enviar a nova ao reino por Simão Ferreira, o seu secretário de confiança. Não desconfiou do piloto e mestre esférico (geógrafo) que tirava as medidas à fortaleza e lhe fazia os debuxos dela, os quais o atrevido também levou a el-rei João, junto com o traslado das capitulações do tratado de paz entre Bahadur, rei de Cambaia, e o governador Nuno Cunha.
Não foi esse Diogo Botelho Pereira que el-rei degredou para cá, como castigo da sua prosápia em lhe pedir, sendo quase menino, a capitania de Chaul em troca dos seus serviços como fazedor das cartas de marear, em que era mestre apesar de tão moço? Esse mesmo, sem tirar nem pôr, retorque o soldado da Índia ao mestre que aproveita o tempo morto da navegação para se juntar aos passageiros. Ele já aí está de novo, pois veio do reino, no ano de trinta e quatro, com o capitão-mor Martim Afonso Sousa que se gaba de o trazer manso como um cordeiro! Diogo é filho natural de António Real, antigo alcaide de Cochim, e foi o primeiro português a nascer na Índia. É levado do diabo! Inda antes de vir ao mundo já a sua história dava que falar.. Nasceu cá? Então é pardo? Não, é branco. Iria Pereira, a sua mãe, foi também a primeira portuguesa a vir para a Índia, logo no ano de mil quinhentos e cinco, dando muito que falar por ter embarcado às escondidas, vestida de homem, na nau do vizo-rei Francisco Almeida.
Foi uma viagem dos diabos!, lembra o capitão. Ninguém desmascarou a moça na nau?, espanta-se Luzia Aveiro, a esposa do mercador, também ela portuguesa. Se foi descoberta, ninguém a denunciou. Que lhe aconteceu?, insiste a matrona. Havei-la conhecido bem? Sim, eu passei esses difíceis anos de Cochim perto deles. Viveram felizes nos primeiros tempos, depois desentenderam-se por causa de umas moças cativas que Afonso Albuquerque lhes requereu e António Real não lhe quis entregar. O governador cobiçou-lhe as moças?, pasma a mulher. Não, queria apenas dar-lhes alforria e dotes, como fazia a muitas outras gentias, livres ou cativas, a quem mandava criar como cristãs, cuidadas por donas honestas, para as casar com portugueses, gente limpa que ficasse a morar na Índia, nas terras que para isso ele lhes dava». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.

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