quinta-feira, 30 de junho de 2022

Poesia. Trago Alentejo na Voz. «Ai, ventos na madrugada, que me transcendem demais, amigos, amigos, papoilas no trigo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Trago Alentejo na voz

Do cantar da minha gente
Ai, rios de todos nós
Que te perdes na corrente
Ai, rios de todos nós
Que te perdes na corrente

Ai, planícies sonhadas

Ai, sentir de olivais

Ai, ventos na madrugada
Que me transcendem demais
Ai, ventos na madrugada
Que me transcendem demais

Amigos, amigos, papoilas no trigo

Só lá eu as tenho
E de braço dado contigo a meu lado
É de lá que eu venho

E de braço dado, cantando ao amor
Guardamos o gado, papoilas em flor
Que o vento, num brado, refresca o calor

E de braço dado, contigo a meu lado

Cantamos, amor

Ai, rebanhos de saudades
Que deixei naqueles montes
Ai, pastores de ansiedades
Bebendo a água nas fontes

Ai, pastores de ansiedades
Bebendo a água nas fontes

Ai, sede das tardes quentes
Ai, lembrança que me alcança
Ai, terra prenhe de gente
Nos olhos de uma criança

Ai, terra prenhe de gente

Nos olhos de uma criança

Amigos, amigos

Papoilas no trigo, só lá eu as tenho
E de braço dado, contigo a meu lado
É de lá que eu venho
E de braço dado, cantando ao amor

Guardamos o gado, papoilas em flor
Que o vento num brado, refresca o calor
E de braço dado, contigo a meu lado
Cantamos, amor
E de braço dado, cantando ao amor


Guardamos o gado, papoilas em florQue o vento, num brado, refresca o calor

E de braço dado, contigo a meu lado
Cantamos, amor»

https://youtu.be/2eE-OlTMTtE

Cortesia de Wikipedia/Musixmatch/JDACT

JDACT, Poesia, Alentejo, A Arte,

quarta-feira, 29 de junho de 2022

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Tanto faz. Escolhe tu, irmã. Prefiro as brancas. É cor de bodas. dezasseis anos... pretendes casar? É cor de outra coisa, ordena as tuas figuras, não queres começar o torneio?»

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O Rei de Marfim

«(…) Que me estás tu a cantar, mofino?, agastado que te mostravas! Vendo-te tão apaixonado, juntei duas folhas de papel, desenhei um tabuleiro e aproximei-me da mesa, o rei ralhava o moço chorava: Senhor, trago aqui tabuleiro e com um pouco de cera apeguei-o ao tampo da mesa. Logo te serenou a ira: Ora estais a ver? Exclamaste sorrindo a todos. Para que é trazer tabuleiro nem coisa nenhuma? Basta trazer Resende…, contar as tuas bondades, reconhecer como eras agradecido de qualquer coisa pequena que fosse..., e tentar compreender como é que um homem tão generoso podia dar criamento dentro de si àquela fera, bicho era a tua expressão, que te impelia a praticares actos tão temerosos e cruentos como os que levaste a cabo em tua vida. Como os que levaste a cabo em tua vida. Res dura et regni novítas me talia cogunt molirí, ouvi-te certa ocasião dizer. Res dura, era matéria grave, sim, essa que te coagiu a derramares tanto sangue pelo caminho. Como foi tudo isso possível? Aí vais tu, hirto, deitado na tumba, frio como a alma do gelo, à luz das tochas. Esperam-te diante três alcofas de cal virgem para te ajudarem a seres comido mais cedo. Tinhas tu sete meses morre-te a mãe lacerada de desgostos..., que vozes grita a ventania nos galhos das árvores? Parecem embuçados a arranhar ameaças nos refegos da noite..., paira sobre esta família o espectro da morte violenta e da bastardia..., joga o teu xadrez, rei, um trebelho, outro e outro e outro, cabeças coroadas, bispos, cavaleiros, peões humildes, as paredes cruas de castelos e de paços..., pretas ou brancas, meu irmão?, perguntava-te Joana. sentados à sombra de um carvalho, nos paços de Santo Elói. Sobre a mesa de pedra o tabuleiro. Vestida de dó, de costas à borda do tanque, alheada, a tia Filipa dava migalhas às pombas.

Tanto faz. Escolhe tu, irmã. Prefiro as brancas. É cor de bodas. dezasseis anos...  pretendes casar? É cor de outra coisa, ordena as tuas figuras, não queres começar o torneio?  Não  te praz a conversa, bem te entendo. o rei nosso pai deve ter sobre isso suas tenções. Andar, andar. Gosto do teu sorriso, apesar da tristeza dos olhos e de ..., ora!  Estou pronto! Torneio  e justas é comigo. Avança. Este é o rei Duarte ..., nosso avô paterno? Então já sei que vou ganhar o jogo. Como assim? Após a morte do pai, nosso bisavô João..., primeiro deste nome. Tu serás um dia o segundo. Não quis o rei Duarte dilatar para depois do meio-dia a cerimónia do seu alevantamento nem sofreu aguardar melhor conjunção dos astros. Mestre Guedelha, seu físico e astrólogo, bem o avisava: Júpiter encontrava-se retrogradado, o Sol em caimento e havia no céu sinais de mau agouro...

Como é que sabes isso?,  contou-mo meu aio Diogo Soares..., bem conhecia, respondeu o rei, o grande amor que mestre Guedelha lhe tinha e não duvidava ser a astronomia ciência boa e entre outras permitida e aprovada, e estarem os corpos inferiores sujeitos aos sobrecelestes, porém sobre todos pairar a mão e a ordenança de Deus. Justa  sentença é essa na verdade. O  judeu profetizou então a el-rei um reinado curto e atribulado, o que veio a acontecer, como adiante se viu. por isso te digo, irmã, que este jogo será breve..., e eu o ganharei. Como  ganharás? Queres ver?, dizias manobrando com cuidado as pedras. Com o desastre de Tânger e o cativeiro do irmão Fernando...

Joana tentava defender-se contrapondo os cavalos, as torres, os peões, que iam caindo uns atrás dos outros. Move os cavaleiros, os bispos, frecheiros, archeiros, besteiros o que quiseres. Eu ganharei. Olha! Aí  está: o rei morreu..., e deslocaste o trebelho fatal. Oh! Pensam alguns que da amargura de lhe aparecer em insónias o corpo do irmão a apodrecer de maus tratos nas masmorras de Fez. Corriam boatos de que se lhe havia empeçonhentado uma ferida de um ombro ou havia aspirado veneno ao abrir de uma carta...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos, 

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «O grande terreiro em frente ao Tejo tornara-se uma vastidão de euforia. Ao invés dos pregões dos vendedores e do regateio dos fregueses nas bancas de pescado e das hortaliças…»

 

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Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405

«O rei dom João de Avis casava a infanta Beatriz, a filha que nascera bastarda, com um grande de Inglaterra, e dera folgança ao povo, com uma celebração de vários dias. Havia muito que a capital do reino não se via com aquele esmero de asseio e sinais de abastança. Varreram-se as ruas, bem escaroladas e passadas a várias águas, para que não restasse vestígio algum da habitual imundície, e só se visse o que podia comprazer o rei, a fidalguia, o clero e os enviados ingleses. Arcos de folhas alindavam as sacadas do casario e as ruas da maior urbe do reino, como em dias de procissão. As flores do Outono tapavam de tons garridos as fachadas murchas pela pobreza do desleixo continuado e, das varandas, pendiam as colchas mais lustrosas que o povo encontrara na fundura das suas arcas, desprovidas de quase tudo.

Escorraçaram-se as meretrizes, para não ferirem a vista d’el-rei e o pudor da rainha, dona Filipa Lencastre, e ocultavam-se os mendigos, para não trazerem à lembrança do monarca o depauperado tesouro real, por conta dos anos de guerra com Castela, cujas tréguas só tinham sido alcançadas havia três anos. Também não faltava por que pedir naqueles dias de fartura, em que se assavam bois nos espetos de rua, que as mãos do rei de Avis eram largas, quando se tratava de entreter em dias de festa.

O grande terreiro em frente ao Tejo tornara-se uma vastidão de euforia. Ao invés dos pregões dos vendedores e do regateio dos fregueses nas bancas de pescado e das hortaliças trazidas dos arrabaldes da cidade, a algazarra era de júbilo, com exibições de malabaristas e saltimbancos, jogos de paus, até largada de touros houvera, para animar o povo. As gentes associavam, assim, a vista do soberano com a abundância, uma combinação bem calculada por um monarca que ascendera ao trono a pulso e também por vontade do povo. E o amor dos portugueses por aquele rei era grande.

Dom João, o primeiro de seu nome, trouxera-lhes a paz e a garantia de que o trono de dom Afonso Henriques permaneceria com um rei português, iniciada a nova dinastia de Avis. Por conta do desvairo e da morte precoce do rei anterior, dom Fernando, que deixara a regência entregue à odiada rainha, dona Leonor Teles, viveram-se dias negros em Portugal quando a viúva renunciou à regência a favor da filha, dona Beatriz, casada com o rei de Castela.

Filho bastardo do rei dom Pedro, pai de dom Fernando, e de Teresa Lourenço, filha de um comerciante lisboeta, com quem o monarca afogara as mágoas depois do assassínio de Inês de Castro, dom João era, por aquela altura, um jovem mestre da Ordem Militar de Avis. Viu-se chamado a reclamar o direito ao trono, com vasto apoio popular, e esse longo caminho começara ali mesmo em Lisboa, cidade para sempre grata ao seu coração, onde fora aclamado Regedor e Defensor do Reino, antes de ser alçado rei nas Cortes de Coimbra». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.

 Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

 JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura,

terça-feira, 28 de junho de 2022

Constança. Isabel Machado. «A palavra correra depressa entre o povo e começavam a sair dos casebres os homens e as mulheres que tinham visto Constança crescer»

 

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Castelo de Toro, Castela

«(…) Foi um dia soalheiro que a acolheu .a chegada a casa. Dom Juan Manuel ordenou que se parassem os cavalos e tudo ficou silencioso. Apenas se ouviam algum relinchar desgarrado e os poucos sons da  terra, o chilreio dos pássaros, como Constança se recordava da sua infância, nos finais de tarde abrasadores de Peñafiel.

Ela colou o olhar ao casteio, ao longe, que se impunha majestosamente na aridez da meseta, muito acima do casario de cor ocre. Depois do rosto de seu pai, fora aquela imagem que lhe trouxera a força nos anos de reclusão. Peñafiel era um conjunto soberbo. Erguia-se no alto de um promontório, espraiando-se por todo o comprimento do monte, com três dezenas de torres. Ao centro a imensa torre quadrada de três pisos onde residia a família. O estandarte dos Manuel ondulava ligeiramente com a aragem da tarde.

O castelo era um dos orgulhos de dom Juan, que se vinha dedicando havia anos à sua recuperação. As extensas muralhas, que lhe conferiam a forma de uma embarcação comprida e estreita a alargar no centro, estavam já inteiramente reconstruídas e albergavam o exército do senhor da terra. A imponente cidadela tinha vida própria, como uma localidade dentro de outra.

 Contemplar aquele loca1, centro das suas raízes, afastava Constança do ressentimento. Entregou-se à visão sumptuosa e familiar e deixou as mãos tombarem sobre a garupa do cavalo. Voltou inteiramente ali, ao refúgio da curta infância despreocupada. Dom Juan apercebeu-se da emoção da filha, que secava rapidamente as lágrimas com as costas da mão, e fez aproximar o seu cavalo do dela. Desejei tanto este reencontro, minha filha, disse pausadamente, esforçando-se para que o tom saísse leve, não lhe fazendo reviver os fantasmas do passado. Ela crispou os lábios e manteve o olhar no castelo. Acenou em concordância, incapaz de falar.

Dom Juan gritou uma ordem e toda a comitiva recomeçou a marcha, com vagar. O rio Duratán estava tal e qual Constança se recordava; manso, seguia o seu leito com rumo certo, reunindo quase toda a verdura daquela terra seca e áspera, com árvores a convidar ao repouso debaixo das sombras generosas.

A palavra correra depressa entre o povo e começavam a sair dos casebres os homens e as mulheres que tinham visto Constança crescer. Saudavam-na com silêncio respeitoso e ancestral, mas de sorrisos abertos. Ela correspondia, sentindo as faces a estoirar de regozijo. A subida até ao castelo era íngreme e lenta e requeria controlo dos cavalos. À chegada, dom Juan auxiliou a filha a desmontar, devolvendo-a ao solo dos antepassados.

Bem-vinda, Constança, disse, com um sorriso galante. Obrigada, meu pai. Estou em casa.

Violante ajeitou-lhe a frente do vestido amassado pela viagem. A porta de acesso ao castelo, flanqueada por dois torreões redondos, estava aberta e pronta para a receber. Pela escada acima posicionava-se uma guarda de honra, como se a recém-chegada fosse uma visita real». In Isabel Machado, Constança, A Princesa traída por Pedro e Inês, 2015, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6-

Cortesia de EdLivros/JDACT

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Onde Vais Isabel? Maria Helena Ventura. «Dali alguns de nós alcançam o outro pátio interior, chamado de dona Isabel, com pórticos rasgados nos lados mais baixos da planta»

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VII

«(…) Depois de algumas paragens para breves descansos, as bestas caminham devagar, ao ritmo da natureza. Ouvimos cantar os pássaros sobre um leve rumor de fontes, depois nas terras mais altas de quase duzentos metros, o passar da brisa como voz amena a soprar aos ouvidos. De novo mais abaixo o refrão dos campos do vale do Ebro já tratados, a saudarem o sol à vista da linha fortificada da antiga Caesar Augusta. Foi ela a capital do limite superior do Andaluz, depois o primeiro reino independente de Taifas, antes de ser a nossa Zaragoza abençoada.

Atravessamos a ponte de pedra, até à praça da catedral de tijolo e revestimento cerâmico, La Seo, vai meio o dia. Tão próxima de casa dona Isabel recusa-se a parar, agora. Então viramos à direita, até à via César Augusto, para tomar o caminho do paço real de Aljaferia. Já o tinha avistado muitas vezes, uma delas quando meu tio Ángel me trouxe dos montes, órfão recente, a ver Soledad, ao serviço da rainha Constança, mãe de dona Isabel. Nunca antes me parecera tão imponente. É uma magnífica estrutura, a brilhar na margem esquerda do rio, seus grandes torreões encimados por ameias, como coroas reais. Fixo a Torre do Trovador com olhos cerrados, já um atalaia grita para dentro para baixarem a ponte levadiça, no lado oriental.

O cortejo passa o fosso, direito à porta sob um arco em ferradura. À medida que vão dispersando os cavaleiros apeados, a família real com sua comitiva recebe as boas vindas dos servidores do paço, dona Isabel hoje mais acarinhada. Pajens conduzem os nobres ao recinto onde se vai construir a igreja de San Martin, os criados acomodam bestas e serventes nas cocheiras e anexos. Dali alguns de nós alcançam o outro pátio interior, chamado de dona Isabel, com pórticos rasgados nos lados mais baixos da planta. A direita ficam os cómodos de criados e religiosos menores, talvez o meu próprio quarto partilhado com alguém que ainda desconheço.-

Antes de estender o corpo numa enxerga, meus olhos são atraídos para a formosura de um nicho em ábside, um recanto da antiga mesquita muçulmana virado para Meca, donde era costume chamar os fiéis do palácio à oração. Bela, a decoração elaborada com capitéis de alabastro. Mantê-la tão bem conservada até agora, só confirma a tolerância religiosa dos reis de Aragão, desde dom Jaime I. Não fora a família real, acompanhada dos convidados mais importantes, começar a subir a bela escadaria para ocidente, ali ficaria perdido em recantos do passado, poderosas alavancas de futuro». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel?, 2008, Edições Saída de Emergência, 2008, ISBN  978-989-637-034-3.

Cortesia de ESEmergência/JDACT

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sexta-feira, 24 de junho de 2022

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Três léguas bem puxadas de Alvor a Silves, todo o teu destino infeliz no meu pensamento. Morreres abandonado, um tal rei! Ires aí às costas de mula, metido em quatro tábuas disfarçadas à pressa de estofos reais…»

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O Rei de Marfim

«(…) Terminado o casario, pelo adiantado da hora alguma gente vai-se deixando ficar para trás arrimada às paredes, os braços cruzados cingindo o próprio corpo transido da friagem que sopra das dunas e se escoa a zinir pelas ruelas estreitas. um pequeno grupo de mulheres chorosas ainda acena um pobre adeus, mas, com o decorrer da caminhada por trilhos rudes que sobem de leve a ladear a ribeira do Arade, aos gritos e carpidos sucede o silêncio de almas cansadas. Ouve-se apenas o som continuado do patear das cavalgaduras e do andar dos peões neste fúnebre seguir à luz das tochas. É como se eu aqui vá sozinho contigo pela última vez. Gosto das sendas solitárias abeiradas de pinheiros mansos e palmeiras africanas, das breves encostas de amendoeiras e alfarrobeiras, das figueiras que vergam até ao solo os ramos carregados de frutos roxos que pingam mel. Passam canaviais inclinados pelo suão. Amarelejam agora aqui ao lado, no lampejo dos brandões, como olhos de fogo a espiarem-nos no negrume, os pomos de um laranjal. Três léguas bem puxadas de Alvor a Silves, todo o teu destino infeliz no meu pensamento. Morreres abandonado, um tal rei! Ires aí às costas de mula, metido em quatro tábuas disfarçadas à pressa de estofos reais, aos solavancos por carreiros pedragulhentos no segredo da noite!... Ninguém se atreveu a clamar, embora a todos espantasse, que é uma vergonha o duque Manuel não estar presente ao teu saimento. Ninguém ousou gritar que foi uma infâmia a rainha Leonor não ter assistido ao esposo moribundo. Cada um de nós, no foro íntimo, busca encontrar explicação para zanga mais teimosa que a morte..., e os nobres senhores onde estão eles? Os poucos que te acompanham, teus próximos servidores, já nem avanço dizer teus fiéis servidores, sabe-se lá quem é que..., quando o caminho alarga achegam as montadas e cochicham apreensões ou..., assim que as veredas apertam, seguem em fila, calados, focinhudos, escoltados pelas caras vermelhas e suadas dos servos que se afadigam de facho em punho por igualar o andamento dos animais. Os outros, lá longe em seus castelos e palácios, aprestam o ouvido se nos ruídos do vento distinguem galopear de cavalo que, por paradas nas estradas do reino, tragam recado de esculcas de que tu já morreste. De manhã, sinos a dobrar a finado..., sinos algures a repicar regozijos..., em cada coração o amor ou o ódio..., no teu, Deus me perdoe e perdoa-me tu também, ambas as coisas. De onde te veio esse raiarem-se-te os olhos de sangue? Essa comissura descaída e raivosa dos lábios? Como a de tua irmã Joana. Que parecença! Que gana e força de alma num e noutro!... E no entanto que sorriso bondoso e aberto tantas vezes te surpreendi..., até para mim!... Caminhamos agora por um trecho de velha calçada romana com suas grandes lajes sulcadas pelo rodado de carroças de outros séculos. É mais vivo o patear dos cascos ferrados da cavalgada. Para lá do clarão dos archotes apenas se enxergam trevas, mas eu, que conheço esta paisagem, adivinho para além da planície a colina em que se ergue o castelo de Silves, de pedra rosada, o corpo esbranquiçado da sé catedral, as casas caiadas de fresco e, lá bem ao fundo, os contrafortes da serrania. Nunca me tinha acontecido olhar perfurando a escuridão com os olhos da memória. Vem a calhar, que todo o espírito se me vaza atrás a buscar as coisas passadas. Ainda há poucos dias descias tu, com toda a tua comitiva, a serra do Algarve, a pedir saúde às águas das caldas. sol a pino, vibravam alfarrobeiras e aloendros a zunideira das cigarras. Paraste para jantar junto de um ribeiro, à sombra de umas sovereiras.

Chegai-me o xadrez para eu espantar o sono, pediste depois de comer, estes médicos! prescrevem-me que beba algum vinho... É o mais aconselhável no caso presente, meu senhor, dizia o físico-mor. Dá-me sonolência e vindes-me com essa de que me faz mal dormir a sesta… Chegou o moço da guarda-roupa muito aflito: Senhor, a bolsa com os trebelhos... e então? Está aqui..., mas, põe aí. Senhor, o tabuleiro,.., o tabuleiro ... Já lá vai adiante com a cama..., por esquecimento...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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quinta-feira, 23 de junho de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Senhores, el-rei foi preso. Que dizeis? Estávamos em casa do arcebispo quando chegaram os guardas, de mando do Conselho dos Dez, e o levaram preso. Meu Deus!, disse Nuno Costa. E agora?»

 

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O Sósia

«(…) O doge cofiou a barba com ar preocupado: Se ele é mesmo o rei de Portugal... Não pode ser! ... o rei Filipe de Espanha terá de... Senhor!, abespinhou-se o embaixador. Quereis arranjar conflito entre Veneza e Madrid? Não vejo em que possa a verdade provocar conflito entre dois estados soberanos e católicos. Pareceu-me ver nas vossas palavras um tom de ameaça... Não, mas... Mas?, levantou-se o doge, como a dar por finda a audiência. O que Espanha deseja é que a Senhoria de Veneza mande prender esse indivíduo que se diz rei de Portugal e... Senhor embaixador, considerarei o assunto com o meu Conselho dos Dez e verei o que há que fazer.

Marco Túlio correu esbaforido para o cais e embarcou numa gôndola: Depressa, depressa, San Beneto! A gôndola afasta-se a toda a pressa. Em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, Pantaleão Pessoa, frei Crisóstomo, António Brito Pimentel e Nuno Costa conversavam com frei Estêvão Sampaio recém-chegado de Paris. Era frei Estêvão um dominicano de grande prestígio. As obras que eu escrevi?, encolhia os ombros aos que o elogiavam pelas inúmeras vidas de santos e varões ilustres da sua ordem, que publicara em Paris e incorporara no seu Thesaurus. Também se não envaidecia do talento e saber que todos lhe reconheciam, do renome de grande latinista... Os meus pergaminhos são outros, o ter tido o meu berço em Guimarães, ser afeiçoado à casa de Vimioso e, por ter sido partidário do senhor Dom António, terem-me encarcerado os Castelhanos. E a vossa fuga, frei Estêvão? Sabeis o que é descer uma muralha altíssima pendurado de um lençol que a todo o momento ameaça romper-se e precipitar um desgraçado no abismo? E recordava o exílio em França, em Tolosa, a universidade, o doutoramento em teologia, a amizade com Carlos IX e Henrique III, reis de França, e com o seu capelão, o bispo de Angers, a quem dedicara o Thesaurus... Mas agora... Mal soube da novidade, meti-me a caminho. Dom João Castro, neto do grande vice-rei da Índia, dom Jerónimo  Portugal e o padre José Teixeira pediram-me muito empenhados lhes escrevesse logo que veja esse rei ressuscitado. Onde está ele? De visita ao arcebispo de Espálato, que muito o tem ajudado junto do papa. Chegará em breve. Estou ansioso, ficai sabendo, por beijar a mão ao meu rei.

No estreito rio a gôndola atraca à soleira de uma porta. Marco Túlio salta da embarcação para o degrau de pedra e entra estugado na casa e na sala onde estão os portugueses: Senhores, el-rei foi preso. Que dizeis? Estávamos em casa do arcebispo quando chegaram os guardas, de mando do Conselho dos Dez, e o levaram preso. Meu Deus!, disse Nuno Costa. E agora?» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Pode lá ser! O rei morreu naquela batalha... Exactamente. E vós dais importância a mais um impostor? Não fostes vós que me contastes terem aparecido já uns três outros e... e, uma vez desmascarados..., enforcados, eu sei»

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O Sósia

«(…) Procura-se o vulto do príncipe e logo se topa, nas pregas da noite, no esconderijo dos segredos, com o veneno, o punhal do assassino, o egoísmo do adulador, a hipocrisia do traidor... É verdade, Senhor. Lia aquela parte em que se diz que, para se conservar um reino conquistado, é preciso extinguir a família do príncipe... E eu fui traidor do meu próprio reino. Com levá-lo à ruína e a ser ocupado por estranhos, matei-me a mim próprio e, não prevenindo descendência, extingui a família do príncipe... Não, meu Senhor, não, acudia vivamente frei Crisóstomo. Vós ressuscitastes. Estais aqui. O que esse texto quer dizer, isso sim, é que todo o cuidado é pouco, aqui e agora, mesmo entre nós, com o embaixador espanhol don Inigo Mendoça. Sim, ajudou Pimentel. É de recear o que fará quando souber da vossa presença, Senhor, aqui em Veneza.

E quem de nós lho iria dizer?, perguntava Nuno Costa. Daqui não sairá qualquer inconfidência, confirmou com rispidez Pantaleão Pessoa. Todavia, de nada valeu a firmeza de Pessoa, que a traição já se havia instalado entre nós. Uma noite... Na noite húmida, embrulhado em capa negra, a aba larga do chapéu derrubada sobre a cara, caminha estugado um vulto, cosido cauteloso com as paredes das casas. Junto do palácio do embaixador de Espanha, passa a monumental frontaria, rodeia o edifício por uma viela e, depois de vigiar a todos os lados, estaca em frente de uma pequena porta das traseiras, a que bate três pancadas espaçadas. A portinhola abriu-se e ele sumiu-se no interior da casa. Caminhou por um corredor até um pequeno vestíbulo que dava para a copa e as escadas de serviço. Um mordomo, acompanhado de um criado com uma candeia na mão, indicou-lhe o caminho, depois de lhe ter pegado no chapéu, no capote e nas luvas. Por aqui, senhor, disse e, subidas as escadas e passada uma comprida galeria, abriu uma porta e introduziu a visita no salão do embaixador. Ah! Sois vós, Nuno Costa, saudou don Inigo Mendoça. Que novidades me trazeis? Estrondosas, senhor embaixador, completamente estrondosas!, disse o português sentando-se.

E, por mais de uma hora, estiveram conversando a meia voz. Acompanhado do seu secretário, o embaixador de Espanha, apesar da idade avançada, atravessou rapidamente a piazzetta e dirigiu-se ao portal do palácio do Doge. Entrou, passou o arco Foscari sem olhar para as estátuas de Adão e Eva, cópias de Rizzo, galgou a grande escadaria, entre o Marte e o Neptuno de Sansovino, e subiu ao salão do Conselho, em que foi recebido pelo doge, Já sabeis decerto, senhor, disse, após as saudações, que temos em Espanha novo rei? Quê! O rei Filipe morreu? ... e agora subiu ao trono seu filho Filipe terceiro. Deus tenha em sua glória o pai e cubra de bênçãos o filho. Amém. Mas, além desta notícia, que creio ter-vos trazido em primeira mão, venho comunicar-vos assunto que se me afigura grave e solicitar a vossa pronta intervenção. Credo, don Inigo! De que se trata? Apareceu em Veneza, vai para seis meses, um desconhecido que pretende ser o rei Sebastião de Portugal. Pode lá ser! O rei morreu naquela batalha... Exactamente. E vós dais importância a mais um impostor? Não fostes vós que me contastes terem aparecido já uns três outros e... e, uma vez desmascarados..., enforcados, eu sei. E então? Então..., o caso não teria importância, se não tivesse assumido proporções alarmantes. Como assim? Um grupo de portugueses aqui residentes reconheceu-o. Falaram com o núncio apostólico, foram ao papa..., e o papa...?, reconheceu-o... Que me dizeis?, ... e parece que vai emitir uma bula... Estais bem informado. A ambição, senhor, e o dinheiro..., sabeis como é..., sempre corromperam os fracos. Um traidor entre eles?  Traidor! Que nome tão feio! Um servidor de Sua Majestade o rei Filipe». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

 Cortesia de Difel/JDACT

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quarta-feira, 22 de junho de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Diz-me, Ordonho de Compostela, vou mesmo ser mordomo dela? O outro gargalhou-se, com ar de quem o estava a enganar: Cala-te, ó reles pigmeu, nem sequer mandarás no que é teu!»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(… ) Afonso Henriques, depois de se ter ausentado para falar com sua mãe, reapareceu junto de nós bem-disposto e decidiu seguir a minha sugestão de que fôssemos cear à festa dos populares, que decorria fora das muralhas do castelo. E o Braganção?, perguntou Gonçalo. Alguém garantiu que andava de roda de Sancha Henriques, e partimos mais uma vez sem ele, enrolados nos nossos mantos, para tentarmos passar despercebidos entre o povo, que comia, bebia, cantava e dançava à volta das fogueiras. Lavradores e almocreves, jograis e trovadores, soldadeiras e prostitutas, cavaleiros-vilões e peões, escudeiros e criadas do castelo, padeiras e talhantes, todos aproveitavam aquela noite para se alegrarem, enquanto os muitos mendigos de rua pousavam como moscas nos restos de comida da festarola.

A dado momento, cruzámo-nos com o homem que, no dia antes, interpretara Jesus durante a missa, e Gonçalo comentou: Lá vai o Cristo, ressuscitou um dia mais cedo, à conta da pinga! O indivíduo cambaleava e rasou um grupo de mal-encarados, sentados no chão sem beber ou dançar, um dos quais tinha a cara deformada, avermelhada e inchada, mal se vendo o olho esquerdo. Afonso Henriques murmurou: São os homens do Gondomar, vão para Soure amanhã. Gonçalo fez uma careta arrepiada e disse: E queriam que eu fosse com eles! Morria de susto, com aquele camafeu a meu lado todas as noites!

Talvez fosse aquela horripilante enfermidade que distinguia o grupo e o afastava da festa geral. Conversavam de cabeça baixa, como se suspeitassem de alguém ou estivessem fugidos à justiça régia. Deixámo-los para trás e dirigimo-nos a uma pequena tenda dentro da qual se servia o vinho, onde demos com a rapariga normanda, perante quem Afonso Henriques decidiu ridicularizar Gonçalo. O Sousinha diz que passou a noite de ontem convosco. Elvira parou de servir o vinho, irritada. Era mesmo alta e o seu cabelo estava agarrado com um carrapito, mas o brilho nos seus olhos, que crepitara ao ver o príncipe, extinguiu-se num ápice. Não falais verdade, não sois de confiança, disse a Gonçalo. Este, habituado mais a escarnecer do que a ser escarnecido, murmurou que estava bêbado, mas Elvira manteve o ar zangado. Pois ficai sabendo que nem em sonhos me daria a vós. Ofendida na sua reputação, virou-nos as costas e saiu da tenda, abandonando o serviço, apesar dos protestos de quem esperava por vinho. Afonso Henriques ergueu as sobrancelhas e murmurou: É no que dão as vossas trapaças...

Gonçalo encolheu os ombros e logo sugeriu que nos acercássemos das fogueiras, onde havia risada geral, originada por dois rapazes gémeos. Eram roliços bobos da Galiza, pagos pelo Trava para soltarem larachas e divertirem a populaça, chamando-se um Fruela e o outro Ordonho, como os antigos reis godos das Astúrias. O seu evidente talento enchera um círculo de gozo à sua volta, obrigando-nos a espreitar por cima das cabeças. De rabo para a plateia, Fruela perguntava: Ó Fernão Peres, é disto que queres? Depois da gargalhada geral, logo o irmão Ordonho, empertigando-se em imitação de um homem alto e forte, lhe retorquiu: Prepara-te bem, minha campeã, vais fazer tenda toda a manhã!

A malícia atingia Dona Teresa e o seu amante, embora de forma enviesada, glorificando o Trava como macho viril, o que não era de estranhar, pois era ele quem pagava aos bobos. Porém, depressa estes desviaram o alvo e apontaram a Paio Soares. O gorducho Fruela virou-se para o redondo Ordonho e perguntou, de mão na anca: Diz-me, Ordonho de Compostela, vou mesmo ser mordomo dela? O outro gargalhou-se, com ar de quem o estava a enganar: Cala-te, ó reles pigmeu, nem sequer mandarás no que é teu! O humor cínico dos galegos reduzia Paio Soares a uma frágil marioneta nas mãos do Trava. Afagando o baixo-ventre, como se estivesse com desejo de fornicar, Fruela questionou o irmão: Arranjam-me uma bela noiva para casar, onde minha velha piça possa enfiar? A multidão soltou uma risada e Ordonho piscou o olho ao mano. Já amanhã voltarás a filhar, minha bela sobrinha irás montar!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,


terça-feira, 21 de junho de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Minha prima olhou-o fixamente e acrescentou: É isso que tendes de contar a vosso pai. O rapaz deu o seu mudo acordo ao estratagema. Quando, já na tenda, Paio Soares lhe perguntou o que se passara entre Afonso Henriques e Chamoa…»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(… ) No dia seguinte, Maria Gomes disse-me que, naquele momento, Chamoa sentiu uma emoção muito forte. Era o seu sonho de criança, casar com um príncipe, e agora ali estava ela nas mãos de um, o príncipe de Portugal! Deus meu, que alegria! Mas, o que dirão meus pais, minha irmã?, pensou. Segundo contou, Afonso Henriques terá insistido: É a minha vontade e vosso pai aprova de certeza, a defesa de Toronho fica garantida! Será a união da Galiza, o príncipe do Condado casado com uma Trava! Dizei que me amais, que vos casais comigo!

Chamoa estava já enamorada dele e acenou com a cabeça. Acreditou que ia ser princesa, ou rainha. Inebriada com aquele pensamento intoxicante, esteve quase a deixar-se levar pela loucura do momento, mas conteve-se e alegou que, mesmo assim, era melhor ele não se meter dentro dela. Contudo, para o compensar da momentânea desilusão, Chamoa abriu-lhe a dalmática, puxou-lhe o saiote para cima e, entusiasmada com o que via, exclamou: Afinal, o milagre não foi só nas pernas! Quando terminou de o beijar, deitaram-se lado a lado, enamorados, e renovaram as promessas de casamento, antes de se comporem e regressarem pela estrada por onde tinham vindo. No seu lugar e embora destroçada, minha prima Raimunda mantivera-se imóvel, e quando observou Ramiro verificou, espantada, que ele havia desmaiado. Em passo rápido, aproximou-se dele, ajoelhou ao seu lado e abanou-o. O jovem acordou, atarantado, e Raimunda disse-lhe que os outros já tinham retornado à festa de Sábado de Aleluia. Confuso, Ramiro quis saber o que se passara, mas ela disse-lhe apenas: Nada, só conversaram.

Minha prima olhou-o fixamente e acrescentou: É isso que tendes de contar a vosso pai. O rapaz deu o seu mudo acordo ao estratagema. Quando, já na tenda, Paio Soares lhe perguntou o que se passara entre Afonso Henriques e Chamoa, o filho limitou-se a repetir as palavras de Raimunda: Nada, só conversaram. Tanto Raimunda como Ramiro mentiam muito bem, mas só dois grandes mentirosos, na sua ilusão, acreditam que as mentiras são seres mortos e bem sepultados e não seres vivos, que um dia reaparecem. Quando a verdade surge, o sonho dos mentirosos torna-se pesadelo. Ao final dessa tarde, enquanto muitos de nós jogávamos à malha, ou nos torneávamos em combates de espada que eu sempre vencia, correu a notícia de que o vaidoso Paio Soares se fechara, amuado, na casa onde pernoitava, e se recusava a comparecer à ceia. Alguns diziam que estava enraivecido com o desaparecimento súbito do seu belíssimo punhal, outros que se enciumara com a corte que Afonso Henriques fizera a Chamoa, mas, fosse qual fosse a razão, o certo é que dona Teresa cancelou o repasto público». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

 JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

O Segundo Sexo. Simone Beauvoir. «Mas a fêmea fecundada tem um triste destino: afunda solitariamente no solo e não raro perece de esgotamento, pondo os primeiros ovos»

Cortesia de wikiedia e jdact

Factos e Mitos. Destino

«(…) Um dos traços mais notáveis, quando percorremos os diversos graus da escala animal, é o facto de que de baixo para cima a vida se individualiza; em baixo, ela emprega-se unicamente na manutenção da espécie, em cima ela gasta-se através de indivíduos singulares. Nas espécies rudimentares, o organismo como que se deixa reduzir ao aparelho reprodutor; nesse caso, há primazia do óvulo, e portanto da fêmea, posto que o óvulo está principalmente votado à pura repetição da vida; mas ela não passa de um abdómen e a sua existência é por inteira devorada pelo trabalho de uma monstruosa ovulação. Atinge, em relação ao macho, dimensões gigantescas; muitas vezes seus membros são apenas cotos, seu corpo um saco informe, todos os órgãos degeneram em proveito dos ovos. Em verdade, embora constituindo dois organismos distintos, machos e fêmeas mal podem então ser encarados como indivíduos, formam um só todo com elementos indissoluvelmente ligados: são casos intermediários entre o hermafroditismo e o gonocorismo. Assim, entre os entoniscíneos que vivem como parasitas no carangueijo, a fêmea é uma espécie de chouriço esbranquiçado, envolvido em lâminas incubadoras que encerram milhares de ovos; no meio destes encontram-se minúsculos machos e larvas destinadas a fornecer machos de substituição.

A escravização do macho não é ainda mais total entre os edriolidíneos: acha-se ele fixado sob o opérculo da fêmea, não possui tubo digestivo pessoal e seu papel é unicamente reprodutor. Mas em todos esses casos não é a fêmea menos escravizada do que ele; ela está escravizada à espécie. Se o macho se encontra preso à fêmea, esta também se encontra presa ou a um organismo vivo de que se nutre como parasita ou a um substracto mineral; consome-se na produção dos ovos que o minúsculo macho fecunda. Quando a vida assume formas mais complexas, esboça-se uma autonomia individual e o laço que une sexos se afrouxa. Mas entre os insectos os dois sexos permanecem estreitamente subordinados aos ovos. Amiúde, como entre os efemerópteros, macho e fêmea morrem imediatamente depois do coito e da postura; por vezes, como entre os rotíferos e os mosquitos, o macho, desprovido de aparelho digestivo, sucumbe após a fecundação, enquanto a fêmea, que pode alimentar-se, sobrevive; é que a formação dos ovos e a postura exigem algum tempo. A mãe expira logo que o destino da geração seguinte se acha assegurado. O privilégio da fêmea, entre grande número de insectos, provém de ser a fecundação um processo geralmente muito rápido, ao passo que a ovulação e a incubação dos ovos exigem um trabalho demorado. Entre as térmitas, a enorme rainha, empanturrada de papa, que põe um ovo por segundo até que, afinal estéril, é exterminada impiedosamente, não é menos escrava do que o macho anão, grudado ao abdómen dela e que fecunda os ovos à proporção que vão sendo expelidos. Nos matriarcados dos formigueiros e das colmeias, os machos são uns importunos exterminados em cada estação: no momento do voo nupcial, todos os machos saem do formigueiro e alçam voo em busca das fêmeas; se as atingem e fecundam, morrem logo após, esgotados; se retornam, as operárias impedem-nos de entrar, matam-nos ou deixam-nos morrer de fome. Mas a fêmea fecundada tem um triste destino: afunda solitariamente no solo e não raro perece de esgotamento, pondo os primeiros ovos». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplomada, 2015, ISBN 978-989-722-193-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Simone Beauvoir, Sexo, A Arte, Literatura,

segunda-feira, 20 de junho de 2022

O Segundo Sexo. Simone Beauvoir. «É muito difícil dar uma descrição geralmente válida da noção de fêmea; defini-la como condutora de óvulos e o macho como condutor de espermatozoides é muito insuficiente…»

 

Cortesia de wikiedia e jdact

Factos e Mitos. Destino

«(…) Demonstrou-se, mediante várias experiências, que fazendo variar o meio endocrínico podia-se agir sobre a determinação do sexo; outras experiências, de enxertia e de castração, realizadas em animais adultos, conduziram à teoria moderna da sexualidade. Nos machos e fêmeas dos vertebrados o soma é idêntico, podendo-se considerá-lo um elemento neutro; é a acção da gonádica que lhe dá as características sexuais. Certos hormónios secretados operam como estimulantes e outros como inibidores; o próprio tractus genital é de natureza somática e a embriologia mostra que ele se determina sob a influência dos hormónios, partindo de esboços bissexuais. Há intersexualidade quando o equilíbrio hormonal não foi satisfeito e nenhuma das duas potencialidades sexuais se realizou nitidamente.

Igualmente distribuídos na espécie, evoluídos de maneira análoga a partir de raízes idênticas, os organismos masculinos e femininos, uma vez terminada sua formação, parecem profundamente simétricos. Ambos se caracterizam pela presença de glândulas produtoras de gametas, ovários ou testículos, sendo os processos de espermatogénese e ovogénese, já o vimos, análogos; essas glândulas depositam sua secreção num canal mais ou menos complexo segundo a hierarquia das espécies. A fêmea deixa sair o ovo directamente pelo oviduto ou o retém na cloaca ou em um útero diferençado antes de expulsá-lo; o macho lança o sêmen para fora, ou é munido de um órgão copulador que lhe permite introduzi-lo na fêmea. Estaticamente, macho e fêmea, aparecem, portanto, como dois tipos complementares. É preciso considera-los de um ponto de vista funcional para apreender-lhes a singularidade.

É muito difícil dar uma descrição geralmente válida da noção de fêmea; defini-la como condutora de óvulos e o macho como condutor de espermatozoides é muito insuficiente, porquanto a relação do organismo com as gonádica é extremamente variável. Inversamente, a diferenciação dos gametas não afecta directamente o conjunto do organismo. Pretendeu-se, por vezes, que o óvulo, sendo maior, consumia mais força viva do que o espermatozoide, mas este é secretado em quantidade infinitamente mais considerável, de modo que, nos dois sexos, o desgaste se equilibra. Quiseram ver na espermatogénese um exemplo de prodigalidade e na ovulação um modelo de economia, mas há também neste fenómeno uma absurda profusão: a imensa maioria dos óvulos nunca é fecundada. Como quer que seja, as gonádicas e os gametas não nos oferecem um microcosmo de todo o organismo. É este que se faz necessário estudar directamente». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplomada, 2015, ISBN 978-989-722-193-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

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domingo, 19 de junho de 2022

Os Conquistadores de Lisboa. Domingos Amaral 3. «Aquela era a senha de felicidade, o convite para Mem tomá-la, a palavra que abria as portas do seu corpo. Mas não era possível»

 

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Silves, Junho de 1141

«(…) Futuro poderoso, bem mais gostoso.

Já no palácio, Mem encontrou Zaida nos jardins. Há meses que não dormiam juntos, mas ela abraçou-o com um carinho demasiado intenso, apertando-o contra o peito de forma nada inocente. Tenho saudades de vós..., murmurou a princesa. Mantinha viva a ternura do passado, desejava continuar a vê-lo, podiam encontrar-se em segredo. Aliás, recordou a princesa, as mulheres de Córdova nunca haviam amado só um homem, essa tradição durava há séculos, queria honrá-la. Por isso, pegou na mão do almocreve e murmurou: Mem querido...

Aquela era a senha de felicidade, o convite para Mem tomá-la, a palavra que abria as portas do seu corpo. Mas não era possível. Zaida não podia ter o melhor dos dois mundos, um emir no palácio e um almocreve atrás de uma laranjeira no jardim. A guerra vai começar..., alertou Mem, dando um passo atrás, para melhor combater o feitiço que ela um dia lhe lançara. Logo após a derrota dos muçulmanos na batalha de Ourique, a princesa Zaida zangara-se violentamente com a irmã Fátima, com a prima Raimunda e com os respectivos maridos, Abu Zhakaria, governador de Santarém, e Ismar, príncipe de Córdova. As acusações mútuas de traição, a distribuição de culpas pela derrota perante os portucalenses, o acinte das duas mulheres contra ela, recipitaram a ruptura, e Zaida, acompanhada por Mem, fugira dos outros para se juntar a Ibn Qasi. Ismar, Raimunda, Fátima e Zhakaria vão guerrear-vos!, previu Mem, sugerindo uma nova estratégia. Seria inteligente propor um pacto ao rei de Portugal. Ibn Qasi precisa de aliados. O almocreve, apesar de a amar, também queria a glória dela. Contudo, naquele momento, ela não pensava em guerras e insistiu: Mem querido...

Roçou-se, dengosa, enquanto ele reparava nos criados que cirandavam pelo jardim ou espreitavam à varanda. Não podemos..., disse Mem. Falai com Ibn Qasi. E não vos esqueçais de denunciar-lhe o alcaide de Mértola, esse estafermo!

Terminada a batalha de Ourique, Mem e Zaida tinham rumado a Mértola, onde haviam passado mais de um ano à espera de Ibn Qasi, entretanto ausente em Marrocos.

Pretendente distante, diverte-se o amante.

Nesses dias, Mem dormira sempre com a princesa, mas enquanto esperavam pelo regresso do sufi deram-se conta de que o indivíduo a quem Ibn Qasi confiara o governo da cidade de Mértola era um falso. Uma víbora..., ajuizara certo dia Zaida. Ibn Wasir nascera árabe e descendia de sírios, mas era a sua propensão para a traição que os preocupava. As primeiras vezes que conviveram com aquele ser curto de perna e magro de carnes, que falava depressa de mais, cuspia saliva e parecia sempre nervoso, Mem e Zaida notaram que Ibn Wasir tanto proclamava como essencial a falência estrondosa do califado almorávida de Marraquexe, liderado por Ali Yusuf, como se alvoroçava contra o perigo do avanço dos almóadas, os novos aliados de Ibn Qasi. Talvez o meu mestre se tenha equivocado, murmurara o desleal.

Mais desagradável ainda fora a suspeita que ele lançara sobre as lealdades religiosas de Zaida. Haveis vivido muito tempo entre cristãos?, perguntara Wasir, com óbvia malícia. Disseram-me que haveis pensado em converter-vos, para poderdes desposar Afonso Henriques... Incomodada, nas semanas seguintes a princesa evitou o alcaide e limitou-se a conviver com Mem, mas depressa a beleza e a afabilidade serena do amigo começaram a causar-lhe sarilhos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Os Conquistadores de Lisboa, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

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sexta-feira, 17 de junho de 2022

Os Conquistadores de Lisboa. Domingos Amaral 3. «Órfã de pai e mãe, Zaida era uma desconhecida em Córdova, pois estivera prisioneira dos cristãos mais de duas décadas. O sangue real que lhe corria nas veias…»

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A Intriga de Compostela 1140-1142. Arcos de Valdevez, Março de 1141

«(…) Apesar deste alvoroço em Arcos de Valdevez, não chegara o momento certo de a intriga de Compostela tomar conta de Chamoa. A lealdade apaixonada de uma mulher só se quebra se ela se sentir traída, o que ainda não era o caso. Pouco depois, para evitar mencionar o que conversara com o imperador de Leão, Chamoa proclamou que devíamos saber por onde andavam a princesa Zaida e o almocreve Mem, pois Afonso VII iria atacar Córdova em breve e certamente que a vida dos seus queridos amigos poderia correr perigo. Mais uma vez, meus queridos filhos e netos, em Arcos de Valdevez, a minha cunhada adiou a desconfortável revelação da intriga de Compostela e nada me disse, preferindo desviar-nos a atenção para o Sul, para o mundo muçulmano, que andava, também ele, em violento turbilhão.

Silves, Junho de 1141

Naquela tarde de Junho, o almocreve Mem pediu para ser recebido pela princesa Zaida, que agora vivia no palácio de Silves e ia desposar Ibn Qasi, o sufi que reinava no Al-Gharb.

Amiga a casar, tempo de abalar.

Desde que a Primavera nascera e milhares de flores tinham transformado Silves num caleidoscópio maravilhoso de cores, tornara-se evidente para Mem que aquele príncipe sufi cuja barba era apenas uma fina linha junto ao queixo e que usava sempre sandálias para se sentir leve, estava possuído por uma fortíssima paixão por Zaida. Lisonjeada, a princesa entregara-se, sentindo que finalmente tinha a seu lado um amável e poderoso chefe.

Princesa sem dono, procura um trono.

Enquanto existira uma ínfima hipótese de convencer Afonso Henriques a casar-se com ela, Zaida tudo tentara para o seduzir, admitindo mesmo converter-se ao cristianismo. Mas, depois de rejeitada e mal se vira longe, forçara o coração a substituir o príncipe de Portugal por Ibn Qasi, o candidato alternativo disponível.

Mulher com talento, engrandece com o casamento.

Órfã de pai e mãe, Zaida era uma desconhecida em Córdova, pois estivera prisioneira dos cristãos mais de duas décadas. O sangue real que lhe corria nas veias, era neta do último califa cordovês, Hixam III, de nada servia no presente à bonita e voluptuosa princesa, se ela não tivesse a protecção de um marido, a riqueza de uma família nobre da Andaluzia onde se amparar. O generoso corpo, os longos cabelos negros, a fina inteligência e a sua imensa cultura nada obteriam sem o poder de alguém que os potenciasse.

Esposa de emir, poderá progredir.

Contudo e para Mem, a união amorosa entre Zaida e Ibn Qasi representava o fim de uma amizade que incluíra as brincadeiras tórridas na cama. O bonito e loiro almocreve sempre soubera que, no dia em que ela encontrasse um marido à altura das suas vastas ambições, ele teria de se afastar. Zaida era uma Benu Ummeya, uma das derradeiras descendentes da família dos antigos califas de Córdova, e aspirava ao regresso ao trono andaluz. E agora Ibn Qasi podia carregá-la até lá». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Os Conquistadores de Lisboa, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

 

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terça-feira, 14 de junho de 2022

Os Conquistadores de Lisboa. Domingos Amaral 3. «Que quereis que faça?, angustiou-se Chamoa. O imperador baixou a voz e falou na morte do conde Henrique, em Astorga, muitos anos antes. Nesse triste dia…»

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A Intriga de Compostela 1140-1142. Arcos de Valdevez, Março de 1141

«(…) A minha cunhada bateu as pestanas, baralhada, mas foi obrigada a novo volteio naquelas mãos masculinas fortes, antes de ouvir da boca de Afonso VII a intriga que escutara já de seu pai. Afonso Henriques podia não ser o verdadeiro filho do conde Henrique e de dona Teresa, pois esse tinha nascido aleijado! Foi um milagre!, contestou Chamoa, fiel à história oficial. Os milagres são sempre tão oportunos..., comentou Afonso VII. Sempre a sorrir, este recordou que já sua mãe, a rainha Urraca, contava que Egas Moniz decerto trocara os bebés, colocando o seu filho mais velho no lugar do verdadeiro príncipe. O Lourenço Viegas?, espantou-se Chamoa. O imperador ignorou a pergunta e, com a frieza de um mestre das estocadas, atirou-lhe de súbito: Vosso marido, Paio Soares, nunca vos falou disso?

Confrontada com tão inesperada interrogação, Chamoa tropeçou e o duo parou de dançar. Atrapalhada, ela sentiu a cabeça andar à roda e foi o monarca leonês, qual gentil cavalheiro, a ampará-la.

Meu marido sabia e nunca me contou?

Eu estava demasiado longe para os ouvir e apenas me apercebi da clara angústia estampada no rosto de minha cunhada. A referência ao primeiro esposo abanara-lhe as mais sólidas convicções e balbuciou: Paio Soares só me contou o segredo da relíquia... Como se apenas quisesse o bem dela, Afonso VII recordou-lhe que Paio Soares fora alferes do conde Henrique e homem de confiança deste. Se conhecia o esconderijo da relíquia sagrada, certamente também saberia o segredo das crianças trocadas. Com um franzir de testa inquisitivo, o imperador questionou-a: Não foi Afonso Henriques quem o matou, a mando dos nobres portucalenses, de Egas Moniz e de outros? Aterrada, Chamoa suspeitou pela primeira vez de que a morte de Paio Soares podia não se justificar apenas pelos ciúmes que Afonso Henriques lhe tinha, mas por algo mais sinistro, uma conspiração contra um dos poucos que conheciam a verdade sobre o nascimento do príncipe.

Bela Chamoa, porque desejam Egas e Peculiar afastar-vos da corte?, interrogou-se o imperador, respondendo de imediato à questão que lançara. Temem que façais revelações incómodas! As pestanas de minha cunhada batiam cada vez mais velozes, mas o monarca leonês não se comoveu e aplicou-lhe um golpe final afiado, declarando que o esclarecimento daquela questão seria essencial para decidir o futuro do pai dela. Ou Chamoa conseguia desvendar o mistério das crianças trocadas, caso em que Gomes Nunes se mantinha como conde de Toronho, ou o seu adorado pai sofreria um exílio doloroso.

Nossa Senhora, Virgem Santíssima!

Aterrada, Chamoa perguntou como poderia desatar tal nó sem afrontar Afonso Henriques? Se pusesse em causa a identidade do príncipe, não só perderia o amor dele, como seria expulsa do Condado Portucalense! Era um beco sem saída, por isso exclamou: Faça o que fizer, meu pai está perdido! Nesse momento, vi pelo canto do olho que finalmente Afonso Henriques se aproximava, irritado com seu primo por este monopolizar as atenções de Chamoa. Suspirei fundo, o pior passara, o meu melhor amigo não os vira enlaçados. Que quereis que faça?, angustiou-se Chamoa. O imperador baixou a voz e falou na morte do conde Henrique, em Astorga, muitos anos antes. Nesse triste dia, além de Paio Soares e de meu pai, Egas Moniz, também havia estado presente um confessor, que perdoara os últimos pecados do pai de Afonso Henriques. Talvez esse padre saiba a verdade, tentai descobrir quem é, terminou Afonso VII, virando-se depois para trás a sorrir, enfrentando Afonso Henriques». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Os Conquistadores de Lisboa, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

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