sábado, 30 de junho de 2018

A Carreira da Índia. Rui L. Godinho. «Botelho Sousa revela um profundo conhecimento dos “Livros das monções”, nos quais recolheu boa parte da informação mais interessante e reveladora do seu trabalho»

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A Carreira na historiografia moderna
«(…) Saturnino Monteiro teve a sensatez de avisar logo a abrir que o seu trabalho não pretende ter um rigor científico inabalável, devendo ser considerado mais como uma obra de divulgação. Neste sentido, obtém não só uma obra plenamente conseguida como supera largamente esse sentido de divulgação e constitui-se como um reportório muito interessante e importante de informações muitas delas só acessíveis a alguém que, como o autor, estudou alguns dos meandros da história juntando-os aos seus conhecimentos enquanto marinheiro e militar. Um último lamento prende-se com a não divulgação de todo o material estatístico ligado a este tipo de trabalhos. Já na década de 1960 Frédéric Mauro defendia a necessidade e utilidade da criação de uma base de dados sobre os navios portugueses. Chegados ao século XXI não só não temos nada de semelhante (e todos pareciam já então não contar com o trabalho de Quirino Fonseca, Os portugueses no mar) como se vai eternizando a promessa da criação de algo de semelhante, mesmo que seja só para os navios da Carreira da Índia. Embora com objectivos diferentes, Botelho Sousa seguiu também um piano bastante bem conseguido para uma obra que, parece-nos, tem vindo a ser pouco valorizada. Apesar de poder ser datada politicamente isso não impede o autor de reunir urna série de informações muito interessantes sobre a Carreira e, principalmente sobre o tema central do nosso trabalho que é a torna-viagem. Botelho Sousa revela um profundo conhecimento dos Livros das monções, nos quais recolheu boa parte da informação mais interessante e reveladora do seu trabalho. Igualmente datável do ponto de vista político, mas mesmo assim muito interessante para a Carreira da Índia, é a obra de Alberto Iria em que o autor recorre à imensa documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino para nos fornecer alguns quadros importantes.
Estamos, no entanto, ainda longe de algo semelhante àquilo que os holandeses fizeram no que respeita à sua navegação para o Oriente, embora as condições de trabalho e as fontes de pesquisa sejam, neste caso, bastante mais acessíveis e de fácil utilização. Noutras áreas surgiram importantes estudos para a Carreira (para além dos já bem conhecidos para as escalas, vida a bordo, etc.) como o de Frédéric Mauro, fundamental para a análise do Atlântico não só para a Carreira da Índia mas também para os outros destinos da navegação portuguesa. Com um impacto directo igualmente importante em termos de Atlântico temos o estudo de José Roberto Amaral Lapa, que, apesar de sair um pouco fora do contexto tratado do nosso trabalho, é de inegável valor para a compreensão de uma escala como a Baía. Vários outros assuntos mereciam destaque mas iremos referir apenas mais três autores que nos parecem fundamentais para um trabalho como este sobre a torna-viagem. Em primeiro lugar, citamos os estudos de Joaquim Rebelo Vaz Monteiro sobre as rotas da carreira e a forma clara e precisa como apresenta os seus resultados. Em segundo lugar, e com um âmbito cronológico muito preciso, surge o trabalho de A. Disney sobre a companhia portuguesa de comércio e todo um período conturbado e de viragem para a própria Carreira. Por fim, e alargando de novo o espaço temporal, surge o trabalho de James Boyajian que incorpora novos elementos de análise económica, misturando-os com a realidade naval da carreira para atingir uma súmula de informações significativa para a compreensão dos seus mecanismos». In Rui Landeiro Godinho, Aspectos e Problemas da Torna-Viagem (1550-1649), Fundação Oriente, Orientalia, 2005, ISBN 972-785-058-8.

Cortesia da FOriente/JDACT

A Carreira da Índia. Rui L. Godinho. «… através das suas omissões ou da sua inusitada generosidade para com os números, nos vem alertar para uma série de dados e factores que têm sido pouco explorados»

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A Carreira na historiografia moderna
«(…) Chegados a este ponto revelou-se-nos um novo trabalho, que pensamos ser pouco conhecido, mas que introduz uma série de novas questões e problemas. Sem dúvida que a vontade e o caminho a percorrer é ainda grande e T. B. Duncan decidiu dar um passo importante. Duncan utiliza uma série considerável de relações das armadas num esforço importante de cruzamento da informação dispersa por todas elas. Devido à natureza do trabalho ou aos objectivos do mesmo não existem referências às metodologias seguidas. Aqui surgem diversas interrogações. Duncan elabora uma série de cálculos que são, no mínimo, instáveis devido às bases indicadas pelo próprio. O factor mais relevante e inovador neste estudo é um cálculo da tonelagem média. O autor baseia-se em séries manifestamente incompletas (vinte e seis armadas no período de 1500-1578 que correspondem a um terço do total), retirando daí todo o tipo de conclusões. Já outros tentaram fazer este tipo de análise e debateram-se sempre com a enorme irregularidade das séries estatísticas. Outro problema que parece ter ficado esquecido é a enorme heterogeneidade das armadas e da própria arqueação dos navios que as compunham. Daí que a elaboração de séries e médias, alargadas e definidoras de padrões, tenha ainda hoje uma base muito insegura.
Duncan não fica por aqui e calcula não só o número de passageiros como até o de escravos a bordo, partindo de uma relação entre indivíduos e tonelagem que é a nosso ver discutível. O próprio reconhece a dificuldade nestes cálculos mas isso não o impede de fazer generalizações e extrapolações para corroborar as suas ideias. Esta tendência serial, e, diríamos, quase contabilística, estende-se a outros campos, igualmente duvidosos, como a mortalidade a bordo ou o efeito de despovoação que a Carreira da Índia exerceu sobre o Portugal metropolitano. O que se critica aqui não são os métodos ou o caminho que o autor toma na sua investigação, mas sim as generalizações e a homogeneização de uma quantidade apreciável de factores quando sabemos que os dados são incompletos e, principalmente, na maioria dos casos, não sequenciados. A grande virtude deste trabalho é que, através das suas omissões ou da sua inusitada generosidade para com os números, nos vem alertar para uma série de dados e factores que têm sido pouco explorados.
Um estudo mais recente tem vindo a ser desenvolvido por António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote. A consistência ao nível das fontes é abalada por uma fundamentação metodológica nem sempre clara. Em primeiro lugar, não são definidos os critérios de escolha das fontes ou até de separação das diversas dúvidas ao nível do movimento dos navios. Os autores referem, apenas, que fizeram um levantamento, o mais exaustivo possível, e que cruzaram toda a informação por forma a obter dados definitivos. O segundo problema surge com o cruzamento dessa mesma informação e com o facto de os autores não nos dizerem como chegaram ao nome de certos navios, certos capitães ou certas datas quando estas surgem de forma muito diversa nas diferentes relações. Outro problema revela-se ao nível da separação do ritmo das partidas e chegadas ao longo do ano (quer a Lisboa, quer ao Índico), tal como Vitorino Magalhães Godinho já tinha realizado. Falta também uma análise mais profunda e diferente das causas dos naufrágios com uma clara separação entre causas principais e secundárias. É que se existe uma causa imediata para o naufrágio (encalhe, afundamento ou incêndio), podem existir outras que provocam essa mesma perda e que no final têm um peso relativo forte. A divisão simples das causas pode, por vezes, distorcer e ampliar erros, não permitindo o apuramento de outros dados que podiam vir a revelar-se como muito interessantes.
O factor de maior surpresa é o recurso a uma obra como Três séculos no mar, que não apresenta valor científico para a maioria da sua informação. Apesar de na introdução se dizer ser um trabalho de investigação histórica, a ementa agora apresentada é um registo de notícias da vida dos navios do período brigantino organizado principalmente através de pesquisa nos Arquivos de Goa, da Marinha e das Colónias e apresentado em forma de inventário, de modo a mostrar a influência do elemento naval na vida militar, política e social de Portugal naquela época, este não é um trabalho histórico na medida em que não cumpre regras básicas de rigor científico como a apresentação de fontes ou a simples fundamentação da informação. Se não duvidamos da boa vontade e honestidade dessa informação também nada temos que comprove esse facto já que as referências, documentais ou bibliográficas, surgem apenas esporadicamente para alguns navios dos finais do século XIX». In Rui Landeiro Godinho, Aspectos e Problemas da Torna-Viagem (1550-1649), Fundação Oriente, Orientalia, 2005, ISBN 972-785-058-8.

Cortesia da FOriente/JDACT

Os Cinco Templários de Jesus. Didier Convard. «Os meus engenheiros só encontraram algumas galerias destruídas, destacou Balduíno. Vestígios do antigo Templo de Salomão. Bucelin balançou a cabeça de passarinho e piscou os olhos»

Cortesia de wikipedia e jdact

O rei de Jerusalém
«(…) Eles desceram uma escada que levava a um pátio onde os palafreneiros e jovens das cavalariças cuidavam dos cavalos. O odor de excrementos e de urina chegou ao coração de Balduíno. Por um instante, o rei alimentou-se desse cheiro, lembrando-se dos odores da fazenda por onde gostava de vaguear quando era criança. A sua infância... Ela apenas lhe aparecia episodicamente, atrofiando-se em recordações esfarrapadas, coberta de sangue, de gritos e de choro. Coberta pela guerra. O que querias me dizer, sire? Ah, sim..., continuou o rei. Às vezes, pergunto-me se o segredo que herdei não é um mito! Os seus clérigos poderiam ter-se enganado, ter cometido um erro de tradução. Bucelin exaltou-se: não, Balduíno, não! A Igreja, obrigatoriamente, precisa descobrir o Túmulo e desaparecer com os restos mortais que ali estão. Quereis que os fundamentos da cristandade sejam reduzidos a pó? Em algum lugar, em Jerusalém, repousa um cadáver com as marcas da crucificação: os restos de Tomé, que sofreu o suplício no lugar do irmão Jesus! O jovem rei levou a mão à testa. Como eu gostaria de nunca ter sido iniciado nesse conhecimento!, lamentou-se. Eu queria dizer... Sem dúvida são os champanheses que aguardamos que nos levarão ao túmulo maldito. Por Deus! E como? O núncio apoiou a mão com firmeza no ombro do soberano e lhe impôs o seu ritmo, conduzindo-o suavemente. Eles atravessaram o pátio das estrebarias e se dirigiram para o canteiro de obras. Explicarei, disse Bucelin. Eu pedi para ser informado de todos os factos e movimentos deles assim que chegarem à cidade. Ah, então é isso! Seriam espiões, não é? Na verdade, o que teme a nossa Santa Madre Igreja pelo facto de um desconhecido descobrir o túmulo de Tomé? Não me disse tudo, Monsenhor? Realmente, deveríeis saber...
Eles atravessaram um jardim esburacado. Homens transportavam cestos cheios de entulhos; carregavam a carga presa na ponta de cordas passadas pelos ombros, protegidos por pedaços de couro. Uma galeria havia sido escavada na base de uma muralha. Haviam escorado a abertura com uma complexa montagem de vigas e traves que poderia parecer rudimentar e grosseira à primeira vista. No entanto, prestando um pouco de atenção, notava-se que os arquitectos haviam realizado uma proeza com uma grande economia de recursos e conhecimentos empíricos. Um engenheiro e um padre consultavam as anotações. Bucelin continuou: Tomé teria compartilhado o túmulo com..., com o irmão Jesus, que teria se escondido dos romanos durante três dias nas trevas do sepulcro! Cristo teria ficado com o morto?, reagiu prontamente Balduíno. Isso não muda nada do nosso caso! A não ser que... A não ser que Cristo tenha deixado um vestígio da sua existência, falou pausadamente o núncio. Uma coisa que, se fosse descoberta, revelaria uma verdade que poria a Igreja em perigo. Compreendo: uma prova suplementar que teremos de eliminar dos olhares dos profanos!
Realmente, proferiu o prelado. Temos de suprimir tudo! Tudo! E queimar os restos mortais de Tomé. Para o mundo cristão, Jesus morreu e ressuscitou. Ele passou da sombra para a luz porque era filho de Deus, nascido de uma Imaculada Conceição. Nada deve ser escrito de maneira diferente! Balduíno parou. Estava sem fôlego. Esse calor! Essa maldita fornalha! E os champanheses?, perguntou com voz seca. Qual o papel deles? Bucelin olhou por cima do ombro. À direita, depois à esquerda. Estavam longe do engenheiro e do padre que faziam o levantamento das cotas. Portanto, poderia contar o segredo que o atormentava e torturava: eles dizem-se herdeiros de uma antiga tradição, legatários do Cristo! Os meus clérigos afirmam que eles estão de posse de informações que os levariam directamente ao túmulo maldito. O falecido papa Urbano II, originário de Champagne, havia obtido alguns segredos deles e, ao lançar a sua cruzada, acreditava que acharia o local onde Tomé estava sepultado sem dificuldade, eliminando, assim, os indícios que desestabilizariam a cristandade. Achamos que era aqui. Os meus engenheiros só encontraram algumas galerias destruídas, destacou Balduíno. Vestígios do antigo Templo de Salomão. Bucelin balançou a cabeça de passarinho e piscou os olhos. Havia sido atingido por um raio de sol reflectido numa enxada. O conde Hugues Champagne e o cavaleiro Payns trabalharão para nós!, disse ele, enfaticamente. Eles vêm à Terra Santa para nos impedir de pôr a mão no que Cristo deixou no túmulo de Tomé. Do que se trata, monsenhor?, impacientou-se Balduíno. O bispo destacou cada sílaba da sua resposta: está relacionado ao sudário do Impostor! Ao sudário?, perguntou o jovem rei. Um pedaço de tecido ordinário no qual Tomé apodreceu! Não é só isso, sire, articulou Bucelin. Há algo bem pior! Esse sudário contém um mistério inominável». In Didier Convard, O Triângulo Secreto, Os Cinco Templários de Jesus, 2006, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-663-7.

Cortesia de EBertrandBrasil/JDACT

Os Cinco Templários de Jesus. Didier Convard. «O núncio murmurou algumas palavras no ouvido do jovem rei de Jerusalém, de modo a não ser ouvido por André e Bertrand. Sorrindo, Balduíno desculpou-se com os amigos»

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O rei de Jerusalém
«(…) Um quarto homem mantinha-se retraído perto de uma grossa tapeçaria e parecia não querer participar na conversa. Tratava-se do bispo Bucelin, núncio do papa Pascoal. Com o olhar ausente, ele dedicava-se a descascar uma laranja com um cuidado quase feminino e uma expressão de desdém nos lábios finos. Uma delegação aguardava-o em Ascalão há mais de uma semana, esclareceu André. O rei suspirou e deu de ombros, ironizando: temo que Hugues e os seus companheiros só venham a Jerusalém para satisfazer a vontade das pessoas que pensam agradar a Deus. Ele virá acompanhado do cavaleiro Hugues Payns, de quem já ouvi falar algumas vezes, afirmou Bertrand. Balduíno completou: eu também! E se faz um grande mistério desse singular personagem de quem, ao que parece, Hugues nunca se separa. A ponto de se dizer que são irmãos, acrescentou Bertrand. Enfim, Payns seria um bastardo do conde Thibaud, que só teria reconhecido Hugues, o conde actual, como herdeiro! É um boato persistente em Champagne, onde é público e notório que Thibaud teria cometido algumas infidelidades a Adèle Valois! Balduíno ia-se levantar. Apoiou-se na mesa e ficou assim por um momento, curvado, olhando distraidamente a missiva marcada com o selo do poderoso Hugues Champagne.
Que seja, disse ele. Faremos um acordo com essas pessoas. Afinal, o conde de Champagne é marido de Constance, filha do rei Filipe... Talvez ele nos seja útil! André pegou numa pequena garrafa e serviu-se de uma grande taça de água, levando-a aos lábios. Depois de bebê-la de um só gole e enxugar a boca com as costas da manga, ele disse, rindo: para ser sincero, se conseguirmos defender a nossa causa, podemos pedir alguns benefícios a ele! Certo, sublinhou Bertrand, passando a mão na cabeleira ruiva e desgrenhada, em busca de piolhos. A nossa guarnição sofre incessantes ataques dos bandos sarracenos; homens, armas e víveres seriam bem-vindos. Naturalmente, frisou o jovem rei. Somos o exército de Deus... Um exército como esse não deve ser miserável! No entanto, ele via as olheiras azuladas no rosto dos companheiros, as faces magras, a pele rachada, prematuramente envelhecida... Via indigentes que se achavam mestres, guerreiros recém-libertos da adolescência. Estão todos assim, pensou ele. Todos os meus cavaleiros, os meus capitães, os meus valentes. Todos os meus cruzados! Um bando de aventureiros dizimados pela febre. Sire... Balduíno virou-se para o bispo: sim, Monsenhor?
O núncio murmurou algumas palavras no ouvido do jovem rei de Jerusalém, de modo a não ser ouvido por André e Bertrand. Sorrindo, Balduíno desculpou-se com os amigos: o bispo, cuja descrição nós todos apreciamos, deseja conversar comigo em particular. Continuem a consultar os últimos levantamentos dos nossos arquitectos enquanto me esperam. O núncio e o soberano saíram da sala e seguiram pela galeria externa. Esse peristilo corria ao longo do prédio; Balduíno imediatamente apreciou o seu frescor. Seguindo logo atrás do prelado, o rei se distraía ao vê-lo pôr um pé na frente do outro, com uma atenção ridícula, como um funâmbulo andando na corda bamba acima de um abismo imaginário. Um odor apimentado de suor acompanhava o bispo. Nunca vai perder o seu ar de conspirador, Bucelin? Imagino o assunto sobre o qual quer falar-me mais uma vez. A nossa missão, sire... O canto dos trabalhadores chegava até eles. Uma voz forte dava o tom e ritmava a cadência. Os assobios dos contramestres terminavam de pontuar esse balanço envolvente. A nossa verdadeira missão!, retomou o núncio. O empreendimento secreto dissimulado pela cruzada... Faço de tudo para cumpri-la e pode relatar isso ao papa. Retomei com zelo a investigação do meu saudoso irmão Godofredo.
A galeria dava para o pátio das estrebarias. Uma escada surgiu diante dos dois homens e eles subiram, fazendo uma parada no alto. Dali, eles viam um pouco do canteiro de obras. Uma grua presa a um edifício lançava os seus braços verticais de madeira num céu quase branco. O canto dos operários fazia-se mais presente e naquele momento se podia perceber as respirações roucas que tornavam esse canto doloroso. Não tenho nenhuma crítica a vos fazer, sire. Nada transpirou da nossa operação. Liberar o Santo Sepulcro continua a ser o engodo ideal enquanto procuramos o túmulo do Impostor. Posso imaginar a sua pressa em encontrá-lo, mas os nossos operários escavam sem parar e...» In Didier Convard, O Triângulo Secreto, Os Cinco Templários de Jesus, 2006, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-663-7.

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sexta-feira, 29 de junho de 2018

Os Cinco Templários de Jesus. Didier Convard. «Fazia pouco tempo que as ruínas, datadas da época israelita pelos engenheiros, haviam sido restauradas. Todos os dias, centenas de trabalhadores se matavam a trabalhar cavando uma terra vermelha e dura»

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A Primeira Cruz. Dezembro de 1107
«(…) Hélène não parava de gritar. Ela conseguiu chegar aos últimos degraus da escada de madeira. A mancha de luz da lamparina dançava enlouquecida. O outro, o assassino, continuava a cortar o ar com o machado logo atrás dela. O saguão. O homem estava quase em cima de Hélène. Mais três ou quatro passos e a atingiria. Ela virou-se ligeiramente e compreendeu que a sua hora chegaria se não reagisse. O matador e a sua sombra eram uma coisa só. A noite pareceu materializar-se ao criar vida na sua capa, no capuz, em toda a sua silhueta. A lâmina do machado brilhou na luz produzida pelo lampião a óleo. O lampião... Hélène jogou-o repentinamente em cima do agressor, atingindo-o na parte debaixo da capa, cujo tecido se colou à perna direita. Enquanto ele se debatia contra as chamas, a mulher conseguiu sair da casa, chegando à rua coberta de neve. Os flocos crepitavam na noite. A jovem tratou de se distanciar da sua casa. Persianas se abriram ao redor. A cabeça de um homem gordo, cheio de sono, com os cabelos desgrenhados, apareceu na janela. Hélène, é você quem está fazendo toda essa algazarra?, surpreendeu-se ele. Mais cabeças se inclinaram para a rua onde a fugitiva, descalça na neve, girava sem sair do lugar, boneca apavorada que procurava uma salvação com os olhos. Arcis foi massacrado no escritório!, proferiu ela. O assassino saiu da casa. Ele havia rasgado a opalanda em chamas e ainda a segurava nas mãos, parecendo rodá-la à sua volta como uma asa de fogo. Hélène recuou por reflexo. Discernia vagamente o olhar do demónio sob o capuz. Olhos de gato que pareciam sorrir.
O homem exibiu a mão de Arcis Brienne como um troféu e, finalmente, livrou-se da capa largando-a na neve, onde, como uma poça de sangue negro, ela acabou de se consumir. Em seguida, fugiu, deixando Hélène cheia de frio e de dor, soluçante e perdida. O seu velho amor estava morto. O seu Arcis... O seu esposo tão bom, a quem ela amava mais do que a um pai.

O rei de Jerusalém
Jerusalém, três anos antes.
Um calor húmido colava as roupas no corpo. O jovem Balduíno, rei de Jerusalém, irmão de Godofredo Bulhão, morto no ano 1100, consultava as plantas junto com os cavaleiros Bertrand e André. Grandes folhas haviam sido desenroladas numa mesa e o suserano, mal-barbeado, com o suor escorrendo pelo pescoço, deslizou um dedo preguiçoso nas linhas traçadas por um dos seus melhores arquitectos. A sala era ampla e, num dos lados, grandes ogivas davam para uma galeria externa sombreada que conservava um pouco do frescor da noite. Bandeirolas, auriflamas, bandeiras e pendões haviam sido erguidos aqui e acolá, orgulhosos sinais da presença dos cavaleiros cruzados que haviam tomado posse dos limites do Templo de Salomão, bem como das suas dependências, onde estabeleceram um reduto solidamente fortificado para fazer escavações ao pé da sede e em toda à volta da mesquita al-Aqsa.
Fazia pouco tempo que as ruínas, datadas da época israelita pelos engenheiros, haviam sido restauradas. Todos os dias, centenas de trabalhadores se matavam a trabalhar cavando uma terra vermelha e dura sob as ordens de contramestres vigilantes, atentos para que os enxadões e as pás não quebrassem uma jarra antiga nem estragassem uma estatueta de ouro... Os homens cantavam para ter coragem, com a pele nua das costas cozinhando sob o sol, as mãos que se tornavam calosas de tanto manejar ferramentas pesadas, a garganta cheia de uma poeira grossa que a água, apesar de bebida em grande quantidade, não conseguia extinguir. Mesmo assim eles cantavam, misturando os seus dialectos como os operários de Babel. O jovem Balduíno dobrou as plantas e largou-as num canto da mesa, depois pegou novamente numa missiva que já havia lido várias vezes nos últimos dias. Precisamos realmente do apoio dos champanheses?, perguntou, percorrendo de novo a mensagem com os olhos. O conde Hugues é rico demais para se  interessar por soldados do Cristo como nós! No entanto, teremos de ser simpáticos com ele, sire Balduíno, disse Bertrand, sorrindo». In Didier Convard, O Triângulo Secreto, Os Cinco Templários de Jesus, 2006, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-663-7.

Cortesia de EBertrandBrasil/JDACT

quinta-feira, 28 de junho de 2018

A Carreira da Índia. Rui L. Godinho. «A análise do movimento da Carreira da Índia tem sido um dos pontos centrais e mais polémicos sobre o qual tem recaído muita da historiografia mais especializada»

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A Carreira na historiografia moderna
«A Carreira da Índia tem sido um dos assuntos mais focados e analisados pela historiografia nacional e estrangeira no que toca à análise da história da marinha portuguesa. Enquanto fenómeno transversal no campo temporal, económico político, militar, social e até geográfico, a Carreira viu recair sobre si uma natural atenção que lhe permitiu chegar aos dias de hoje com um conjunto de estudos mais do que razoável sobre a sua realidade. Apesar disso é ainda desigual o conhecimento que temos sobre diversos desses aspectos, com temas bastantes perscrutados, enquanto outros estão ainda no início do seu desbravamento. Sem pretender fazer uma listagem (ainda que ligeira) da historiografia ligada à Carreira, pensamos ser essencial destacar alguns autores e analisar a obra de outros. Um ponto que parece estar bem assente e que, apesar da destruição dos registos da Casa da Índia no terramoto de 1755, temos ainda um vasto leque de fundos documentais e áreas de investigação que nos permitem fazer um rastreio, relativamente apurado, dos principais temas da Carreira da Índia. Os investigadores neste campo podem-se queixar de algumas coisas que não da falta de material (apesar do desaparecimento da maior parte dos registos oficiais), mas talvez o possam fazer em relação à sua dispersão. Se esta profusão de elementos pode ser uma desvantagem, ela é também razão suficiente para que sobre este assunto nos deixemos de lamentar pelo dito terramoto ou que sobre essa capa se façam análises recorrendo a partes ínfimas da documentação.
Um dos primeiros trabalhos a pretender analisar especificamente a Carreira da Índia (embora tenha horizontes mais amplos) deve-se a Inácio Costa Quintela que apesar da sua idade continua a ser um repositório importante de informações e até de uma análise bastante esclarecida, tendo em conta o ano de edição e as metodologias então aplicadas. Este foi um trabalho pioneiro que, apesar de alguns erros e limitações documentais e metodológicas, cumpre bastante bem o seu propósito. Se quisermos ater-nos a visões globais da Carreira da Índia temos de recorrer a autores mais recentes. Neste grupo podem-se incluir os trabalhos de Charles Ralph Boxer, Vitorino Magalhães Godinho ou os de António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote. De entre estes estudos, os de Vitorino Magalhães Godinho revelam uma evolução muito interessante que lhes concede uma complementaridade e um carácter fundamental. O aspecto mais controverso é a sua atitude hipercrítica com as relações das armadas, enquanto que o maior destaque vai para o tratamento estatístico e a análise dos diversos factores que o autor faz a partir dos números apurados.
A análise do movimento da Carreira da Índia tem sido um dos pontos centrais e mais polémicos sobre o qual tem recaído muita da historiografia mais especializada. Desde os já citados Anaes da Marinha Portugueza, que utilizam ainda e apenas uma simples descrição das armadas, até aos mais recentes estudos de António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote, muitos têm sido os que tentaram e enveredaram por diversos caminhos no sentido de apurar as linhas de rumo do movimento da Carreira. Quirino da Fonseca seguiu uma das vias mais originais, fazendo um levantamento dos navios portugueses, com especial destaque para os que serviram na Carreira. Talvez por ter sido pioneiro ou por lhe faltar muito do material documental hoje conhecido, esse estudo está completamente ultrapassado. Os erros, as falhas e até as gralhas impedem que constitua, como seria de esperar, uma boa base de partida. Quem o fizer corre o sério risco de se perder nessa teia de confusões e enganos em que o próprio autor parece ter sido enredado. Seria, aliás, um exercício interessante, embora moroso e difícil, fazer um levantamento e posterior correcção de tais erros. Um outro trabalho que tentou fazer a análise do movimento da Carreira da Índia foi levado a cabo por João Vidago. Também neste caso o resultado não foi o melhor, com o autor a não justificar certas escolhas e a não definir de forma precisa quais os critérios na selecção da informação. A base documental apresentada é escassa e insuficiente para aquilo que o próprio depois apresenta, nomeadamente ao não revelar as diferenças na informação, resolvendo-as sem as explicar, quando se sabe que muitas delas são uma incógnita. Ainda mais incongruente é a opinião que o mesmo revela num estudo posterior sobre as relações das armadas, quando antes as utilizou (parte delas, não justificando também a selecção feita) de forma a dar corpo ao levantamento e análise do movimento da Carreira da Índia». In Rui Landeiro Godinho, Aspectos e Problemas da Torna-Viagem (1550-1649), Fundação Oriente, Orientalia, 2005, ISBN 972-785-058-8.

Cortesia da FOriente/JDACT

quarta-feira, 27 de junho de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. « Foi difícil convencê-los. O que teria acontecido? Ela sentiu o coração disparar e ficou ouvindo. O seu pai, Natã? E acenou para ela. Sim, respondeu ela»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) O Sol foi descendo no céu até ficar quase no horizonte, lançando sobre o acampamento sombras coloridas das árvores e dos camelos próximos. A fumaça das várias fogueiras levantou-se, projectando nuvens igualmente coloridas e a paisagem tornou-se uma espécie de névoa violeta. Está quase tudo pronto, disse a Maria mais velha, com um suspiro de alívio e satisfação. Colocou alguns pães para assar no forno, retirando dois que já estavam prontos. Colocou-os ao lado, para esfriarem e o seu cheiro espalhou-se pelo ar. Rute e Lia haviam transferido o feijão para tigelas de cerâmica, que dispuseram sobre a coberta onde a comida seria servida. As duas lamparinas do Sabá também foram colocadas ao lado da coberta. Os meninos trouxeram um odre com vinho, e as suas irmãs, as taças; queijo de cabra, peixe seco, amêndoas e figos foram dispostos sobre um pano. O Sol chegara ao horizonte. O que ficara faltando, teria que ser feito rapidamente, ou esquecido. As cordas das barracas estavam firmes? Durante o Sabá não se podiam atar nós. O fogão fora apagado? Não se podia cozinhar nem esquentar comida durante o Sabá. Alguém tinha alguma coisa para escrever? Tinha de fazê-lo rápido, não se podia escrever durante o Sabá, excepto com tinta de sucos de frutas, ou na areia, ou com a mão esquerda, se esta não fosse a mão que normalmente se usava para escrever.
Rapidamente, Rute penteou o cabelo, no Sabá não era permitido pentear-se, Lia tirou as fitas do cabelo de má vontade, os enfeites eram proibidos. Os homens tiraram as sandálias com pregos, não eram permitidas. Jesus voltou e, rapidamente, sentou-se, tirando as suas sandálias. Encontrou as nossas famílias?, perguntou Maria. Falou com eles? Permitiram que ficássemos?, perguntou, sem falar. Tinha a certeza de que teria de voltar para lá, e bem rápido, antes de o Sol se pôr. Sim, disse Jesus. Encontrei todos. Inclinou-se para a frente, ainda sem fôlego. Quezia, a sua família pareceu ficar contente por ter sido convidada a passar o Sabá connosco. Olhou em volta, para Raquel e Sara. A sua família não ficou tão contente, mas deram a sua permissão. E a sua... Olhou para Maria. Foi difícil convencê-los. O que teria acontecido? Ela sentiu o coração disparar e ficou ouvindo. O seu pai, Natã? E acenou para ela. Sim, respondeu ela. Ele disse que não era certo, que não nos conhecíamos e que ele era muito rigoroso em relação a não se misturar com famílias menos devotas. Sim. Claro, Maria sabia disso. Queria alguma prova de que éramos respeitáveis. E como, como é que o poderia saber? Fez um teste comigo. Jesus riu, achando que fora mais uma diversão que um insulto. Quis saber os meus conhecimentos das escrituras, como se isso revelasse as minhas insuficiências.
Aí, foi a vez de sua mãe dar uma gargalhada. O teste errado!, disse, balançando a cabeça. Os rabinos de Jerusalém já sabem disso. E voltou-se para as convidadas. No ano passado, Jesus ficou para trás, em Jerusalém, discutindo alguns aspectos das escrituras com os escribas e os rabinos do Templo. Entendo a preocupação dos seus pais, de uma filha ficar com outras pessoas, Maria, mas ninguém ganha uma competição sobre as escrituras com Jesus. Jesus meneou a cabeça. Não foi uma competição, disse. Ele só me perguntou sobre alguns textos... E deu de ombros. Todos se juntaram em torno da coberta, embora ainda sobrassem alguns raios de sol. Rute abaixou-se e acendeu as lamparinas do Sabá, com o cabelo enrolado em volta da cabeça. Calmamente, observaram o pôr-do-sol. Maria lembrava-se de que o fazia semanalmente quando estava em casa, mas esta era a sua primeira experiência de passar o Sabá com uma família que não era a sua. Em casa, sempre havia uma expectativa, uma ansiedade pela chegada do Sabá. E quando chegava..., é, parecia diferente, desta vez. Quase mágico. Podia dizer para si própria: este é o pão do Sabá, esta é a água do Sabá, esta é a luz do Sabá.
De algum lugar do acampamento soaram duas notas de uma trombeta, repetidas por três vezes. Assinalava o início do Sabá, o entardecer entre o surgimento da primeira e da terceira estrela no céu ainda claro. Segundo a tradição, as primeiras duas notas avisavam quem estava trabalhando para que parasse de o fazer; as duas segundas preveniam os mercadores para que terminassem os seus negócios; e as terceiras, para avisar que chegara a hora das luzes do Sabá. O Sabá começara a iluminar, dizia-se. Maria, a mãe, aproximou-se das lamparinas para fazer a prece. Abençoado seja o Senhor nosso Deus, Rei do Universo, que santificou os dez mandamentos e nos mandou acender a lamparina do Sabá. Sua voz, baixa e agradável, fazia que as palavras parecessem mais ricas. Todos se acomodaram junto à coberta. O céu escurecia rapidamente e a luz das lamparinas se tornava cada vez mais clara; havia outras lamparinas, colocadas do lado de fora da barraca. Exceptuando um ou outro mugido ou balido de algum animal, parecia que um leve sopro estava suspenso no ar». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

terça-feira, 26 de junho de 2018

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de sinal. Como portugueses esperámos do milagre, no sentido mais realista da palavra…»

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«(…) Esta experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas que o primeiro. E disto, os nossos historiadores não cuidaram. Só Olíveira Martins, de quem se diz tão mal, mas a quem ninguém substituiu (o que se chama substituir), pois fora da sua não há História de Portugal como remeditação global do destino e devir colectivos, mas meras mantas de retalhos falsamente unidas por falsos fios de opostas ideologias, anteviu qualquer coisa nesse sentido. Os sessenta anos que, absurdamente, perpetuando o velho jogo de avestruz que jogamos com a nossa alma, nós arredámos da consideração séria da História, não são esse vácuo que os falsos patriotas gostavam que tivesse sido, mas também não são a mera continuação do nosso devir nacional. Historiograficamente, esta hipótese tem a seu favor o simples bom-senso e a realidade documental de um viver sem descontinuidade, bem pouco resistente até, como uma idealística visão do nosso passado se apraz em imaginar. O problema da independência nacional não tinha então o perfil que a historiografia romântica e nacionalista lhe atribuirá. Hoje, todos os escritores que nós celebramos dentro desses sessenta anos filipinos seriam, pura e simplesmente, colaboracionistas. A verdade é que não há na sua actividade literária sombra de má consciência. A vinculação política fazia-se em relação ao Estado (a Coroa) que tinha o seu domínio próprio, hierárquico e administrativo, mas não cultural; a vinculação orgânica fazia-se em relação à Pátria que não é ainda Nação,mas terra comum, gente comum que a vicissitude política não altera. Faria Sousa celebra em castelhano as glórias lusitanas, sem ver nisso contradição alguma, e o que é mais importante, sem que os espanhóis com elas se apoquentem. Na classe dirigente há uma oscilação de fundo entre o vínculo natal e os deveres de Estado, cujo estatuto político lhes parece normal. É nas camadas populares ou nos que estão mais próximos delas, que o vínculo imediato ao ser racional resiste, mesmo inconscientemente, à coexistência superficialmente pacífica de espanhóis e portugueses. Elas que têm o largo hábito do desamparo curtem segunda experiência de desamparados de rei próximo e aos poucos forjam uma relação diferente com a totalidade do ser racional. Nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de sinal. Como portugueses esperámos do milagre, no sentido mais realista da palavra, aquilo que, razoavelmente, não podia ser obtido por força humana.A morte do padre Malagrida, um Vieira sem génio nem sorte, pôs termo (ou interrompeu) esse ciclo de sebastianismo activo que representou, ao mesmo tempo, o máximo de existência irrealista que nos foi dado viver; e o máximo de coincidência com o nosso ser profundo, pois esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real. Das duas componentes originais da nossa existência histórica, desafio triunfante e dificuldade de assumir tranquilamente esse triunfo, aprofundámos então, sobretudo, a nossa dificuldade de ser, como diria Fontenelle, a histórica dificuldade de subsistir com plenitude política. Tornou-se então claro que a consciência nacional (nos que a podiam ter) que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova do fogo.O viver nacional que fora quase sempre viver sobressaltado,inquieto, mas confiado e confiante na sua estrela, fiando a sua teia da força do presente, orienta-se nessa época para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva,do passado. Descontentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós começámos a sonhar simultaneamente o futuro e o passado. Nunca se meditou a sério em actos tão significativos como os da invenção de falsos documentos pelos monges de Alcobaça para provar a nossa existência legal no passado, assim como, já depois da ressurreição, no labor incrível dos nossos juristas para justificar o nosso direito a um lugar ao sol entre os povos livres». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

Cortesia Gradiva/JDACT

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Colombo colhendo num lance de dados sem igual os louros próximos do Gama. Os Lusíadas recebem uma luz espectral e fulgurante quando lidos no contexto de uma grandeza…»

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«(…) Na verdade nada falta no cenário para que o símile da cura psicanalítica se justifique. O nosso surgimento como Estadofoi do tipo traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos lavantámos até à plena assumpção da maturidade histórica prometida pelos céus e pelos séculos a esse rebento incrívelmente frágil para ter podido aparecer, e misteriosamente forte para ousar subsistir. (Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao nascimentode Portugal tenham um perfil tão freudiano com sacrilégios maternos e palavra quebrada, Teresa e Egas Moniz...). A mistura fascinante de fanfarronice e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de cinconsciência alegre e negro presságio, que constitui o fundo do carácter português, está ligada a esse acto sem história que é para tudo quanto nasce o tempo do seu nascimento. Através de mitologias diversas, de historiadores ou poetas, esse acto sempre apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível, do milagroso, ou num resumo de tudo isso, do providencial. É de uma lucidez e de uma sabedoria mais fundas que a de todas as explicações positivistas, esse sentimento que o português teve sempre de se crer garantido no seu ser nacional mais do que por simples habilidade e astúcia humana, por um poder outro, mais alto, qualquer coisa como a mão de Deus. Esta leitura popular do nosso destino colectivo exprime bem a relação históricaefectiva que mantemos connosco mesmos enquanto entidade nacional. Nela se reflecte aconsciência de uma congenital fraqueza e a convicção mágica de uma protecção absoluta que subtrai essa fragilidade às oscilações lamentáveis de todo o projecto humano sem a flecha da esperança a orientá-lo. Esta conjunção de um complexo de inferioridade e superioridade nunca foi despoletada como conviria ao longo da nossa vida histórica e, por isso, misteriosamente nos corrói como raiz que é da relação irrealista que mantemos connosco mesmos. Segundo as contingências da situação internacional ou mundial, aparece ao de cima um ou outro complexo, mas com mais constância os dois ao mesmo tempo, imagem inversa um do outro. É por de mais claro que ambos cumprem uma única função: a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade. Não fomos, nós somos uma pequena nação que desde a hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara em grande nação. Contudo, se exceptuarmos talveza Macedónia e Roma, poucas vezes um povo partindo de tão pouco alcançou (embora sob uma forma desorbitada fautora de nova consciência de impotência mascarada de poderio) um direito tão claro a ser tido por grande. Acontece, todavia, que mesmo na hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção. Nós éramos grandes, dessa grandeza que os outros percebem de fora e por isso integra ou representa a mais vasta consciência da aventura humana, mas éramos grandes longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda.
Europa via-nos mais (como dignos de ser vistos) que nos veria depois, mas via-nos menos do que se via a si mesma entretida nas celebrações sumptuosas ou fúnebres de querelasde família com que liquidava o feudalismo e gerava o mundo moderno (capitalismo, protestantismo, ciência). À hora exacta da nossa glória excessiva, o espanhol, enfim unido, começava a levantar a sua sombra imensa, ao mesmo tempo sobre a nossa aventura e a imagem dela no tempo europeu, até assumir em nosso nome tanto uma como outra. Colombo colhendo num lance de dados sem igual os louros próximos do Gama. Os Lusíadas recebem uma luz espectral e fulgurante quando lidos no contexto de uma grandeza que subterraneamente se sabe uma ficção ou, se se prefere, de uma ficção que se sabe desmedida mas precisa de ser clamada à face do mundo menos para que a oiçam do que para acreditar em si mesma.Da nossa intrínseca e gloriosa ficção Os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema épico assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e requiem? O livro singular é o lençol de púrpura dos nossos deuses (heróis) mortos. Mas à hora nona, o nosso cadáver era já daqueles que Nietzsche diria prometido a todas as ressurreições. O primeiro traumatismo fora superado por três séculos de pé no redemoinho peninsular e século e meio de equilíbrio sobre o mar português. Antes da noite o poema recolhe a nossa primeira e eterna figura que acaso, sem ele, houvesse perdido a chave e a vontade da sua ressurreição. Sessenta anos em contacto directo (e na economia invisível da história porventura frutuoso) com o interlocutor imediato de um viver que foi e é sempre múltiplo diálogo mas que nós teimamos em contemplar como solilóquio, permitiram, enfim, que nos descobríssemos às avessas, que sentíssemos na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

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O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Uma Pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos. Nem a Camões, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia alguma coisa»

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«(…) Se o for, será sobretudo pelo excesso de fixação numa temática que subentende tudo quanto escrevi, mas que a ausência porventura terá reforçado. De qualquer modo, não escrevi estes ensaios para recuperar um país que nunca perdi, mas para o pensar, com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que o pensava quando tíve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneirro de alma. Menos os escrevi ainda para me justificar de um amor pátrio que não pertence ao género dos que se cantam ou descantam pedindo recompensa. Uma Pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos. Nem a Camões, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia alguma coisa. Devia-lho o Rei a quem mecenaticamente fez apelo e lhe pagou como entendeu e os tempos consentiam. Do que Portugal não lhe devia e o seu amor por ela exigia, só ele mesmo se podia pagar pelas suas próprias mãos, confundindo num só canto a errância pátria e a sua mortal peregrinação. Que mais alta recompensa?

Vence, 25 de Abril de 1978. Psicanálise mítica do destino português
As nações, com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se extaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm que desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável em concordância com o seu ser permanente. Joaquim Carvalho, Compleição do Patriotismo Português (1953) Casos, opiniões, natura e uso, fazem que nos pareça esta vida que não há nela mais que o que parece. Camões se a História, no sentido restrito de conhecimento do historiável, é o horizonte próprio onde melhor se apercebe o que é ou não é a realidade nacional, a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de si mesmos. Não nos referimos às simples deformações de carácter subjectivo ou de natureza ideológica, não só por serem inevitáveis, como por não arrastar com elas uma fatal transfiguração no sentido desse irrealismo. O que visamos é mais largo e profundo, pois afecta na raiz a possibilidade mesma de nos compreendermos enquanto realidade histórica. Em lugar da autognose de uma realidade movente mas perfeitamente definida à qual nos referimos com o nome Portugal, nós historiamos um ser perdido de antemão e que milagre algum de dialéctica poderá reencontrar ao fim de uma análise que começou sem ele. As Histórias de Portugal, todas, se exceptuarmos o limitado mas radical e grandioso trabalho de Herculano, são modelos de robinsonadas: contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente deserto. Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor. (E esta famosa forma mentis reflecte-se na nossa criação literária, toda encharcada de monólogos, o que explica, ao mesmo tempo, a nossa antiga carência de fundo em matéria teatral e romanesca). Esta situação não pode ser objecto de uma simples referência de passagem. Reflecte a estrutura de um comportamento nacional que a obra dos historiadores apenas generaliza e amplia. O que é necessário é uma autêntica psicanálise do nosso comportamento global, um exame sem complacências que nos devolva ao nosso ser profundo ou para ele nos encaminhe ao arrancar-nos as máscaras que nós confundimos com o rosto verdadeiro». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

Cortesia Gradiva/JDACT

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Não Respire. Pedro R. Duarte. «No dia seguinte, estava no hospital a conhecer uma mulher sorridente, forte, simpática, mas com a atitude que anos e anos de jornalismo me ensinaram a distinguir: frontal»

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«O teu telefone toca, tu vês de onde vem o telefonema e sabes que não são boas notícias, se fossem, esperavam até à consulta marcada para a semana seguinte. Tu sabes que não são boas notícias, até porque tinhas tido um aviso prévio. E o olhar da A., uns dias antes, pelo FaceTime, a milhares de quilómetros de distância, não era tranquilo, como de costume. Também não era dramático. Talvez apenas suficientemente preocupado para antecipar o que não queres ouvir. Uns dias mais tarde: Pedro, não são boas notícias, confirma-se: tem um tumor no pulmão. No estádio iii. O estádio iv é o último. Ouves a frase como se a tivesses já ouvido. Ou talvez a tenhas imaginado. Em sonhos? Ou nas noites que intermediaram os exames e este dia? Segue-se um diálogo pragmático sobre passos a seguir, análises complementares, quadro diagnóstico. Ouves tudo como se fosse a notícia mais óbvia do mundo. Desligas o telefone, tinhas acabado de tomar o pequeno-almoço, e parece óbvio o que se segue: um gim tónico. Pronto.
Foi o que se passou no dia 18 de Outubro de 2016, por acaso o dia em que o meu filho completou 21 anos. Tento perceber a atitude, confesso-me incapaz. Por muito menos, no passado, sofri muito mais. Por quase nada, chorei como se não houvesse amanhã. E agora estou sentado no sofá da sala, gim tónico na mão, a pensar que o pior e mais difícil vai ser contar à mãe e ao meu filho (que ainda por cima está longe e vai saber desta mer… pelo Skype). Nos dias seguintes, esse foi o pensamento recorrente mais doloroso. Esta má notícia que vou ter de contar. O mensageiro é sempre culpado, neste caso acumula, dado que também é vítima. Sou capaz de rir sozinho, imaginando uma empresa de comunicação que faça esse trabalho por mim. Mas dura pouco. Tenho de contar, da melhor forma possível, isto que me aconteceu. Más.
No dia seguinte, estava no hospital a conhecer uma mulher sorridente, forte, simpática, mas com a atitude que anos e anos de jornalismo me ensinaram a distinguir: frontal. Sem medo. Olhos nos olhos. Nessa primeira consulta, a dra. M., em breve apenas M., pega descontraidamente numa folha branca e numa clássica Bic e começa a desenhar os meus pulmões, para explicar quão grave é a situação. Antes, perguntara-me se era dos que aguentavam a verdade ou preferiam não saber. Respondi que queria saber, mesmo que pudesse não aguentar a verdade. Ela olhou para mim, sorriu e tranquilizou-me: aguenta, acho que aguenta. Senti-me confortado. Ou pelo menos bem enganado. Vamos lá. E a dra. M. começou a desenhar o que seria, previsivelmente, um final à vista. Para ser sincero, ouvi tudo como se me estivesse a falar de outra pessoa. Parecia que repentinamente tinha ganho uma distância improvável sobre o que dizia e o que, passe a redundância, me dizia respeito. Aquilo não devia ser comigo.
Será isto a maturidade? A estupidez pura de quem enterra a cabeça na areia? Ou será apenas o primeiro impacto de algo que, estou consciente, vai viver comigo daqui para a frente, sejam meses ou anos, e em breve cairei na realidade e serei, como Roger Vailland escreveu, o homem mais infeliz do mundoIn Pedro Rolo Duarte, Não Respire, Letras & Diálogos, Manuscrito, Editorial Presença, 2018, ISBN 978-989-887-150-3.

Cortesia de Manuscrito/EPresença/JDACT

domingo, 24 de junho de 2018

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcello Simoni. «O jovem concordou, embaraçado. Ramón protestou por causa do preço do vinho. Recusou-se a pagar e o taberneiro começou a bater-lhe...»

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O Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Perdoai-me, peço-vos, disse o jovem. Não quero causar-vos problemas. Mas o facto é que já causaste. Cada acção tua reflecte-se em mim, compreendes? Suger estava tão irritado que só lhe apetecia esbofeteá-lo. Bernard era um estudante bastante dotado e, se se aplicasse no estudo, teria um grande futuro, só que não conseguia dominar o temperamento fogoso que o levava a meter-se em brigas e a perseguir raparigas. Naquele momento, um rapaz mais novo e ruivo abriu caminho por entre os passantes e pôs-se ao lado de Bernard, como se pretendesse tomar a sua defesa. Suger olhou-o de fugida para não o encorajar. Conhecia-o de vista. Chamava-se Ramón, olhos de fuinha e lábios proeminentes que lhe conferiam a típica expressão do trapaceiro. O ruivo pigarreou e afrontou o magíster com um sorriso descarado. Esta noite o nosso Bernard apanhou uma tareia de um taberneiro de Saint-Marcel. Embora fosse aragonês, exprimia-se em latim, como todos os estudantes estrangeiros em Paris. E por que motivo?, quis saber o médico. Por culpa daquele tacanho! Ramón abriu os braços fazendo um gesto dramático. Queria que pagássemos o vinho a preço de ouro! E nós... Com um gesto, Suger mandou-o calar e dirigiu-se ao seu aluno. Bernard, a pergunta era para ti. Queres explicar-me?
O jovem concordou, embaraçado. Ramón protestou por causa do preço do vinho. Recusou-se a pagar e o taberneiro começou a bater-lhe... Oito denários!, continuou Ramón, batendo na testa com ar de mártir. Oito denários por um copo de vinho! Um roubo! O taberneiro era maior do que ele, explicou Bernard. Por isso entrei em sua defesa. Então o seu companheiro começou a gritar: vede, magíster! Vede que rixa!
Com uma expressão cada vez mais sombria, o médico censurou Bernard: já te disse mil vezes para te manteres longe da periferia, sobretudo do Bairro de Saint-Marcel. Ali só poderás encontrar aborrecimentos. Ramón começou a rir-se. Se por aborrecimentos entendeis vinho e prostitutas... Suger estava farto daquele impertinente. Se continuasse a ouvi-1o, a sua delicadeza iria definitivamente pelo cano. Daí que o tenha agarrado pela gola e empurrado para dentro de um carro que passava naquele preciso momento. Ramón acomodou-se no banco, afastando-se desfalecido como um rei deposto. Quanto a ti, o médico agarrou Bernard pelo braço, vais acompanhar-me até à aula.
Amuado, Bernard caminhava ao lado do magíster, dando pontapés nas pedras da calçada. Os rumores do Carnaval eram agora menores e distantes. A rua, quase deserta, continuava por um declive cheio de erva que ladeava umas ruínas antigas, as termas romanas e a arena de Lutécia. O jovem dedicou-lhes um olhar ocioso. Rugas de velhice no rosto de Paris. A Abadia de Sainte-Geneviève ficava perto, mas Suger atrasara o passo de propósito. As lembranças da noite precedente já iam longínquas. A ânsia e o medo que experimentara durante o caminho pareciam ecos de um sonho esfumado. O pensamento do suevo, abandonado inconsciente no seu quarto, não lhe suscitava a menor apreensão. De momento, tudo o que importava era fazer com que o rapaz que tinha a seu lado ganhasse juízo». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
                                                                                            
Cortesia do CdoAutor/JDACT

sexta-feira, 22 de junho de 2018

A Princesa Determinada. Catarina de Aragão. Philippa Gregory. «… possa viver tranquilamente e com amor-próprio, uma vez que todos somos Povos do Livro. O seu erro foi que pretendiam essas tréguas, e confiaram nelas, e nós, como se verificou, não»

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«(…) O meu pai reúne-se com emissários estrangeiros na Sala dos Embaixadores, leva-os para a sala dos banhos para manterem conversações, como qualquer sultão ocioso. Aminha mãe senta-se de pernas cruzadas no trono dos Nasrid que reinaram aqui por várias gerações, os seus pés despidos, metidos em chinelos de pele macia, o tecido elo seu kamiz caindo em seu redor. Ouve os emissários do próprio Papa, numa sala de audiências cujas paredes esteio revestidas de ladrilhos coloridos e onde oscila uma luz pagã. Para ela, é como estar em casa, pois foi criada o Alcazar de Sevilha, outro palácio mouro. Passeamos nos seus jardins, banhamo-nos no seu hammam, calçamos os seus chinelos de pele macia perfumados e vivemos uma vida mais refinada e luxuosa do que poderiam sonhar em Paris, Londres ou Roma. Vivemos graciosamente. Vivemos, tal como sempre aspirámos virer, como mouros. Os nossos compatriotas cristãos criam cabras nas montanhas, rezam à Nossa Senhora em monumentos à beira da estrada, vivem aterrorizados pelas superstições e cheios de doenças, vivem no meio da sujidade e morrem jovens. Nós fomos ensinados pelos professores muçulmanos, examinados pelos seus médicos, estudamos as estrelas no céu, a que eles deram nome, contamos pelos seus números que começam no zero mágico, comemos os seus frutos doces e deleitamo-nos nas águas que correm pelos seus aquedutos. A sua arquitectura agrada-nos, a cada virar de esquina sabemos que riremos no meio da beleza. Agora, o seu poder protege-nos; o Alcazaba é, de facto, invulnerável a ataques, aprendemos a sua poesia, rimo-nos dos seus jogos, deliciamo-nos nos seus jardins, com os seus frutos, tomamos banho nas águas que fizeram fluir. Somos os vitoriosos, mas eles ensinaram-nos conto reinar. Por vezes, penso que nós é que somos os bárbaros, como os que vieram depois dos Romanos ou dos Gregos, que podiam invadir os palácios e capturar os aquedutos e, depois, sentar-se como macacos num trono, brincando com a beleza sem a compreender.
Pelo menos, não mudámos de fé. Todos os empregados do palácio têm de respeitar os credos da Única Igreja Verdadeira. As cornetas da mesquita foram silenciadas, não haverá mais chamamentos para as orações aos ouvidos da minha mãe. E se alguém discordar, pode partir para a África de imediato, converter-se de imediato, ou encarar as fogueiras da Inquisição (maldita). Não nos deixamos amolecer com os espólios da guerra, nunca nos esquecemos de que somos os vitoriosos e de que conquistámos a nossa vitória, pela força das armas e pela vontade de Deus. Fizemos uma promessa solene ao pobre rei Boabdil, de que o seu povo, os Muçulmanos, ficaria tão seguro sob o nosso governo como os cristãos estavam sob o seu. Prometemos a convivência, um modo de vivermos em conjunto e eles acreditam que construiremos uma Espanha onde qualquer pessoa, mouro, cristão ou judeu, possa viver tranquilamente e com amor-próprio, uma vez que todos somos Povos do Livro. O seu erro foi que pretendiam essas tréguas, e confiaram nelas, e nós, como se verificou, não». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.

Cortesia CivilizaçãoE/JDACT

quinta-feira, 21 de junho de 2018

A Princesa Determinada. Catarina de Aragão. Philippa Gregory. «… a querida do harém onde me ensinam a brincar, a dançar e a cantar, e a favorita da cozinha, onde me deixam vê-los a preparar os bolos e pratos doces com mel e amêndoas da Arábia»

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«(…) Em seguida, voltou-se para ver os empregados domésticos do palácio aproximando-se lentamente, de cabeça inclinada. Eram liderados pelo grão-vizir, cuja altura era enfatizada pelas roupas fluidas, os olhos negros penetrantes encontraram os seus observando o rei Fernando ao seu lado, e a família real atrás: o príncipe e as quatro princesas. O rei e o príncipe estavam vestidos ao estilo faustoso dos sultões, vestindo túnicas ricamente bordadas por cima das calças, a rainha e as princesas usavam as túnicas kamiz tradicionais, fabricadas com as melhores sedas, por cima de calças de linho brancas, com véus dependurados na cabeça, presos atrás por filetes de ouro. Vossa Alteza Real, é minha honra e dever dar-vos as boas-vindas ao Palácio de Alhambra, afirmou o grão-vizir, como se fosse a coisa mais natural do mundo entregar o mais belo palácio da Cristandade a invasores armados. A rainha e o marido trocaram um breve olhar. Podeis levar-nos para dentro, afirmou. O grão-vizir fez uma vénia e indicou o caminho. A rainha olhou para trás, para os seus filhos. Venham, meninos, disse e foi à sua frente, passando pelos jardins que rodeavam o palácio, descendo alguns degraus e passando pela discreta porta de entrada. Esta é a entrada principal?, hesitava em frente da pequena porta, aberta numa parede disfarçada. O homem fez uma vénia. É sim, Vossa Alteza. Isabel não disse nada, mas Catarina viu-a levantar as sobrancelhas como se não gostasse muito da ideia, e todos entraram.
Mas a pequena porta de entrada é como um buraco de fechadura que dá para uma arca do tesouro composta por caixas, uma abrindo-se a partir da outra. O homem conduz-nos através delas, como um escravo abrindo portas para um tesouro. Os seus nomes são um poema: a Sala Dourada, o Pátio dos Mirtilos, a Sala dos Embaixadores, o Pátio dos Leões ou a Sala das Duas Irmãs. Levaremos semanas a encontrar o caminho de uma sala decorada com ladrilhos sofisticados para outra. Demoraremos meses a deixar de nos maravilhar com o prazer do som da água a correr pelos regos de mármore nos quartos, fluindo para uma fonte de mármore que está sempre a transbordar, com a mais límpida e fresca água das montanhas. E nunca me cansarei de olhar através do rendilhado de estuque branco para a planície lá longe, as montanhas, o céu azul e as colinas douradas. Cada janela é como uma moldura de um quadro, foram concebidas para nos fazer parar, observar e maravilharmo-nos. Todas as molduras das janelas são como bordados de tenda branca, o estuque é tão fino, tão delicado, como trabalho de açúcar feito por pasteleiros, não se assemelha a nada que seja real. Passamos ao harém por ser uma das salas mais cómodas e convenientes para mim e as minhas irmãs, e os empregados do harém acendem as brasas nas noites frias, e espalham as ervas de cheiros, orno se fôssemos as sultanas que viveram esquecidas por trás dos biombos, durante tanto tempo. Sempre usámos roupas mouras em casa e, por vezes, em grandes ocasiões de Estado, por isso, ainda lá se ouve um murmúriode sedas e o bater dos chinelos no chão de mármore, como se nada se tivesse alterado. Agora, estudamos onde as escravas liam, passeamos nos jardins que foram plantados para deleitar as favoritas do sultão. Comemos os seus frutos, adoramos o sabor dos seus gelados, prendemos as suas flores em guirlandas para enfeitar as nossas cabeças, e corremos pelas suas alamedas onde o forte perfume a rosas e a madressilvas é doce pela frescura da manhã.
Banhamo-nos no hammam, permanecendo imóveis como estátuas, enquanto os empregados nos ensaboam todo o corpo com um sabão rico, que cheira a flores. Depois, vertem jarros dourados de água quente, um a seguir ao outro, molhando-nos dos pés à cabeça. Somos hidratadas com óleo de rosas, embrulhadas em finos lençóis e deitamo-nos, semiembriagadas de tanto prazer sensual, na mesa morna de mármore que domina a sala, sob o tecto dourado cujas aberturas, em forma de estrela, deixam passar os raios estonteantes de sol para a sombreada paz do lugar. Uma rapariga arranja-nos as unheis dos pés, enquanto outra trabalha as nossas mãos, limando-nos as unhas e pintando padrões delicados de henna. Deixamos a mulher mais velha acertar-nos as sobrancelhas e pintar-nos as pálpebras. Somos servidas como se fôssemos sultanas, com todas as riquezas da Espanha e todos os luxos do Oriente, e rendemo-nos completamente ao prazer do palácio. Cativa-nos, somos rapidamente submetidos; os denominados vitoriosos. Mesmo Isabel, que chora a morte do marido, recomecei a sorrir. Até Joana, normalmente tão mal-humorada e rabugenta, está em paz. E eu torno-me a mascote da corte, a preferida dos jardineiros, que me deixam apanhar os pêssegos das árvores, a querida do harém onde me ensinam a brincar, a dançar e a cantar, e a favorita da cozinha, onde me deixam vê-los a preparar os bolos e pratos doces com mel e amêndoas da Arábia». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.

Cortesia CivilizaçãoE/JDACT

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Não vejo tal afronta nas intenções do poeta, Alteza, esse assunto particular já se deu há um ror de anos, nem Luís Vaz era nascido..., desculpou-o Paula Vicente»

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Catarina Ataíde. Paço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Contou-me a infanta dona Maria, cuja cultura não poderá ser contestada, que o auto trata da resignação do velho rei da Síria, Seleuco. Acaba ele por ceder uma das suas esposas ao filho e herdeiro, pois que este está perdidamenre apaixonado pela madrasta. E há pior: parece que Luís Vaz no prelúdio menciona uma certa Catarina Real. Dona Maria repetiu-me a deixa tal como a ouviu: e entra logo Catarina Real com uns poucos de parvos numa joeira; e semeá-los-á pela casa, de que nascerá muito mantimento de riso.
Eu própria tremi. Luís Vaz tinha dado um passo arriscado. Todas as que ali estávamos reunidas na sala, sobre o Terreiro, sabíamos que o monarca João III por muito tempo acreditara poder vir a casar-se com a terceira mulher de seu pai, a bela Leonor de Áustria, mãe da infanta dona Maria. E como era galante! João III, para onde quer que fosse, fazia-se sempre acompanhar do retrato de dona Leonor de Áustria, pintado por Joos van Cleve. Sendo Leonor mãe da infanta dona Maria, o retrato fazia já parte da mobília. Era, de facto, de uma beleza invulgar: rosto esguio e olhos bem latinos, cor de amêndoa, testa alta e a pele..., de uma alvura sem par. Ainda antes de Manuel I, seu pai, se casar em terceiras núpcias com dona Leonor de Áustria, já João a desejava para si. Tai não sucedeu e foi dona Catarina a desposá-lo, uma segunda e remota escolha. Tenho muita consideração e respeito por dona Catarina. A pobre foi criada, no Convento de Tordesilhas, por uma mãe às portas da loucura. Cresceu cosida com as saias de Joana, a Louca nas sombras geladas daquele hospício e só viu a luz do Sol aos dezassete anos, quando o irmão, Carlos V, negociou o seu casamento com o Rei de Portugal. Muito sã de espírito e robusta de corpo era Sua Majestade para o que tinha passado, ainda mais tendo visto morrer os filhos, um por um. Só João Manuel vivia ainda. Não era, pois, de estranhar a tremura que levava nas mãos, o tom baço da pele e os humores melancólicos ou enraivecidos que a vinham tomando.
Não vejo tal afronta nas intenções do poeta, Alteza, esse assunto particular já se deu há um ror de anos, nem Luís Vaz era nascido..., desculpou-o Paula Vicente. Tenho para mim que o poeta não quis outra coise senão imitar os clássicos, fazer renascer os gregos e os romanos, como dita a moda. E sabeis bem que a infanta dona Maria não morre de amores por ele. Dona Catarina cerrou os lábios com força e arqueou as sobrancelhas. Reparei que ostentava uma gargantilha de várias fiadas de pérolas com um enorme rubi pendente. Vingava agora na profusão de jóias a míngua do Convento de Tordesilhas. Corpulenta e pesada como andava, foi penosamente que se levantou do estrado. Pousou o bordado numa almofada de seda e, seguida pelo seu Bejayo, pôs-se a caminhar pela sala, para trás e para diante, como fera enjaulada. De quando em vez parava, arquejante, saltando-lhe os olhos das pinturas de Jorge Afonso e Gregório Lopes para os novos guadamecis com cenas de caça que enfeitavam as paredes. Ganhava tempo e, quando assim era, o melhor era prepararmo-nos para o pior. Calámo-nos todas.
Não me interessa ouvir-te! Luís Vaz ridicularizou-me, desrespeitou-me, usou os dramaturgos antigos com a firme intenção de me desafiar, reacendendo os meus fantasmas. Escutai esta deixa: meu pai era clérigo, e os clérigos sempre chamam aos filhos sobrinhos; e daqui me ficou a mim, ser filho de meu tio. Acaso a achais galante a apropriada? Pois a mim não me deu vontade alguma de rir. Não me bastava assistir à morte prematura de toda a minha família, não me bastava ter de enfrentar este tempo conturbado de falta de fé, com as blasfémias de Lutero, não me bastava a incerteza da sucessão do Reino, para ter ainda de me sujeitar a semelhante desfaçatez! Com franqueza, senhoras!» In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
                                                                                           
Cortesia de OdoLivro/JDACT