terça-feira, 26 de junho de 2018

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Uma Pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos. Nem a Camões, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia alguma coisa»

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«(…) Se o for, será sobretudo pelo excesso de fixação numa temática que subentende tudo quanto escrevi, mas que a ausência porventura terá reforçado. De qualquer modo, não escrevi estes ensaios para recuperar um país que nunca perdi, mas para o pensar, com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que o pensava quando tíve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneirro de alma. Menos os escrevi ainda para me justificar de um amor pátrio que não pertence ao género dos que se cantam ou descantam pedindo recompensa. Uma Pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos. Nem a Camões, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia alguma coisa. Devia-lho o Rei a quem mecenaticamente fez apelo e lhe pagou como entendeu e os tempos consentiam. Do que Portugal não lhe devia e o seu amor por ela exigia, só ele mesmo se podia pagar pelas suas próprias mãos, confundindo num só canto a errância pátria e a sua mortal peregrinação. Que mais alta recompensa?

Vence, 25 de Abril de 1978. Psicanálise mítica do destino português
As nações, com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se extaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm que desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável em concordância com o seu ser permanente. Joaquim Carvalho, Compleição do Patriotismo Português (1953) Casos, opiniões, natura e uso, fazem que nos pareça esta vida que não há nela mais que o que parece. Camões se a História, no sentido restrito de conhecimento do historiável, é o horizonte próprio onde melhor se apercebe o que é ou não é a realidade nacional, a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de si mesmos. Não nos referimos às simples deformações de carácter subjectivo ou de natureza ideológica, não só por serem inevitáveis, como por não arrastar com elas uma fatal transfiguração no sentido desse irrealismo. O que visamos é mais largo e profundo, pois afecta na raiz a possibilidade mesma de nos compreendermos enquanto realidade histórica. Em lugar da autognose de uma realidade movente mas perfeitamente definida à qual nos referimos com o nome Portugal, nós historiamos um ser perdido de antemão e que milagre algum de dialéctica poderá reencontrar ao fim de uma análise que começou sem ele. As Histórias de Portugal, todas, se exceptuarmos o limitado mas radical e grandioso trabalho de Herculano, são modelos de robinsonadas: contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente deserto. Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor. (E esta famosa forma mentis reflecte-se na nossa criação literária, toda encharcada de monólogos, o que explica, ao mesmo tempo, a nossa antiga carência de fundo em matéria teatral e romanesca). Esta situação não pode ser objecto de uma simples referência de passagem. Reflecte a estrutura de um comportamento nacional que a obra dos historiadores apenas generaliza e amplia. O que é necessário é uma autêntica psicanálise do nosso comportamento global, um exame sem complacências que nos devolva ao nosso ser profundo ou para ele nos encaminhe ao arrancar-nos as máscaras que nós confundimos com o rosto verdadeiro». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

Cortesia Gradiva/JDACT