quarta-feira, 31 de julho de 2019

No 31. Em Torno de Hilda Hilst.. Nilze Maria A. R. S. Busato. «… um livro que se situa no panorama da leitura atenta, sensível e curiosa da obra da autora. Reunimos aqui pesquisadores da obra de Hilda Hilst, do Brasil e do exterior, amantes dessa chama inquieta…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O dado de provocação desta pergunta ainda se faz presente, passados dez anos da sua morte (1930-2004). A escritora, poeta e teatróloga, nascida em Jaú, São Paulo, ganha nestes últimos tempos uma nova leitura e um interesse crescente pela sua obra. Teria escrito para quem? Queixava-se desde os anos 1970 da falta de leitores dos seus textos. Teria Hilda Hilst escrito para os leitores de nossa época? Leitores curiosos e abertos aos temas de sua estranha forma? Leitores que não mais se enrubescem ante os despudores das suas personagens? O facto é que há leitores que não têm medo de percorrer o impasse que a literatura oferece no seu insistente renascer de formas e temas. Os que enfrentam o jogo fornecido pela escritora absorvem e revolvem esse universo do sacro e metafísico, do erótico e pornográfico, do combativo discurso político e social, do amoroso e sublime desejo da morte.
Em torno de Hilda Hilst é um livro que se situa no panorama da leitura atenta, sensível e curiosa da obra da autora. Reunimos aqui pesquisadores da obra de Hilda Hilst, do Brasil e do exterior, amantes dessa chama inquieta que é o texto literário que a escritora paulista tão bem soube manter quente e acesa ao longo dos quarenta e sete anos de trabalho exclusivo com a literatura. Vários olhares e vários enfoques acendem a chama da palavra em lança, em jogo perpétuo com a linguagem, com o objectivo único de descobrir como se encena a performance do discurso da obra de Hilda, que, no seu trajecto tenso e violento, sublime e erótico, desafia tanto os trabalhos de tradução, como os trabalhos críticos que se submetem aos interstícios da sua linguagem. Lembremo-nos aqui do primeiro poema de Prelúdios, intensos para os desmemoriados do amor. Hilda Hilst, nesse poema, oferece--nos um corpo. Um corpo de desejos e procuras. De dentro dele, do poema-corpo, emerge uma voz que convida: toma-me. E o poema se entrega como num jogo de sensações e trocas: toma-me / Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute / Em cadência minha escura agonia. Mas enquanto caminhas / Em lúcida altivez, eu já sou o passado. [...] / Passeia / Sobre mim, amor, e colhe o que me resta: / Nocturno girassol. Rama secreta.
Passeamos. Tateamos esse corpo. De dentro e no entorno. E eis que o livro nasce a tantas mãos e tantos olhares e vozes. Nasce com um desejo, o de descobrir a persona ou as várias personas que habitam a lírica de Hilda Hilst. E, ainda, nasce com o desejo de explorar na linguagem de sua narrativa esse lado do obsceno e do inviolável, da ironia e do desmascarar, do erudito e do popular que tão bem soube articular como um repertório cultural rico para a sua obra. Os capítulos a que o leitor se lançará a partir daqui procuram situar-se na obra de Hilda Hilst a partir de um ponto de vista estratégico.
O objectivo de cada um é de levar o leitor a, conjuntamente com os autores, perscrutar o olhar crítico que desenha as formas do texto hilstiano, no seu ondular dramático e erótico do discurso, presente na sua produção tanto teatral quanto narrativa; na natureza vitimológica de sua poesia lírica e suas entranhas discursivas que se desdobram e se exploram intertextualmente. Até as suas crónicas são objecto de leitura, evidenciando nelas o lado humorístico que tão bem Hilda Hilst soube cultivar. Nada nela era para ser levado a sério. Ou antes, tudo era feito dentro da seriedade com que a literatura se busca num incessante renascer de si mesma, pelo esgotamento que logo percebe nas suas rotas.

As vozes que o leitor ouvirá serão múltiplas, cada uma explorando o diapasão acústico das demais vozes que emergem dos Contos d’escárnio, por exemplo, no desafio que impõem à sua tradução para o inglês. Como compreender os caracteres chineses que acompanham os poemas de Sobre a tua grande face, como traduzi-los na sua presença visual concisa contrastada com o verbal solene dos versos? Outro percurso na obra de Hilda Hilst é de suas intestinações, seus espaços de gruta e intimidade lodosa, onde o grotesco e o patético emergem numa linguagem sem pudores. Um modo de ser do sujeito do discurso que revela o humano sob a pele do bicho que habita o homem. Um modo de ser que se revela na linguagem e na cena aberta. O gesto sacrificial e maldito é objecto dos capítulos que se lançam nas sendas desse elemento nocturno e místico, mas tão verdadeiramente sincero na sua projecção lírica que qualquer leitor de Hilda Hilst se vê à mercê da sua palavra. Assim são as análises que se inserem no corpo de Fluxo-floema, nos interstícios de Poemas malditos, gozosos e devotos, nos mistérios que envolvem a morte e a dimensão orgiástica da vida, o erotismo e a libidinagem, em textos como O caderno rosa de Lori Lamby, A obscena senhora D e Da morte. Odes mínimas, por exemplo.
O erotismo na obra de Hilda Hilst não se oferece somente nas referências ao corpo ou nas intenções do enunciador do discurso, ou no jogo enunciativo com a figura de um deus para quem se lança como desejo, como escravo, como dominador. O erotismo na obra de Hilda Hilst habita a linguagem, no seu jogo linguístico, quase carnal com a palavra que vai se despindo e se experimentando, sendo autorreferencializada pelo discurso». In Nilze Maria Azevedo Reguera Susanna Busato, Em Torno de Hilda Hilst, Editora UNESP, 2015, ISBN 978-856-833-469-0.

Editora UNESP/JDACT

Poesia no 31. Fernando Pessoa. «Abismo da noite, da chuva, do vento, mar torvo do caos que parece volver porque é que não entras no meu pensamento para ele morrer?»

Cortesia de wikipedia e jdact

Navegar é Preciso
«Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

Navegar é preciso; viver não é preciso.

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça».

Tudo quanto penso
«Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi».

Vendaval
«Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!

Indómita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.

Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles, teu pulso divida
Minh'alma do mundo!

Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar
Fosse pr'onde fosse, pra longe da ideia
De eu ter que pensar!

Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver
Porque é que não entras no meu pensamento
Para ele morrer?

Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da existência,
De ser um lugar!

E, pela alta noite que fazes mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.

E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!

Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!»
[…]
Poemas de Fernando Pessoa, Secrel, Poesia, Fpesso, Wikipedia

Cortesia de Secrel/Fpesso/JDACT

No 31. Cartas a Nora. James Joyce. «Debo estar ciego. Durante largo rato estuve mirando una cabeza de cabello castaño rojizo y después decidí que no era la suya»

jdact

8 de Julio de 1904. Dublin
«Pequeña Nora iracunda, (no) puedo encontrarte esta noche, pues tengo que ir a Sandymount donde cierto italiano desea verme. Espérame en la esquina de Merrion Square mañana a las ocho y media. Adiós, querida cabecita castaña». JAJ

15 de Junio de 1904. 60 Shelbourne Road
«Debo estar ciego. Durante largo rato estuve mirando una cabeza de cabello castaño rojizo y después decidí que no era la suya. Volví a casa muy abatido. Me gustaría concertar una cita, pero quizás no sea conveniente para usted. Espero que sea tan amable de fijarla usted misma, si es que no me há olvidado». James A. Joyce

[12 de lulio de 1904?]. 60 Shelbourne Rd., Dublín
«Mi querida Lindos Zapatitos Marrones, olvide que mañana (miércoles) no puedo verte, pero sí el jueves a la misma hora. Espero que pongas mi carta en la cama debidamente. Tu guante a mi lado toda la noche está sin abotonar; por otra parte, se comporta muy decentemente como Nora. Por favor, quítate ese corsé, pues no me gusta abrazar un buzón. ¿Oyes ahora? (Ella se echa a reír) Mi corazón, como dices, sí, de acuerdo.
Un beso de veinticinco minutos en tu cuello». Aujey

[¿Finales de julio de 1904?]. 60 Shelbourne Road, Dublín
«Mi iracunda Nora, te dije que te escribiría. Ahora me escribes y me preguntas qué demonios me pasaba la otra noche. Estoy seguro de que algo anduvo mal. Me mirabas como si estuvieras triste por algo que no había ocurrido, y que habría podido gustarte mucho. Desde entonces he tratado de consolarme, pero no lo consigo. Dónde estarás el sábado, el domingo, el lunes por la noche, para que no pueda verte? Ahora, querida, adiós. Beso el milagroso hoyuelo de tu cuello. Tu Hermano Cristiano en la lujuria. La próxima vez, cuando vengas, deja tu enojo en casa..., y también el corsé». JAJ
[…] 
In James Joyce, Cartas a Nora, 1902-04, Relógio d’Água, 2012, ISBN 978-989-641-326-2, Elaleph.com, tradução de Filipe Rua Nova, 2000.

Cortesia de Rd’Água/Elaleph/JDACT

terça-feira, 30 de julho de 2019

Antologia de Poesia Portuguesa. Natália Correia. «Pero Rodrigues, da vossa mulher, não acrediteis no mal que vos digam. Tenho eu a certeza que muito vos quer…»

jdact

Joguete Direito
«Pero Rodrigues, da vossa mulher,
não acrediteis no mal que vos digam.
Tenho eu a certeza que muito vos quer.
Quem tal não disser quer fazer intriga.
Sabeis que outro dia quando eu a fo…,
enquanto gozava, pelo que dizia,
muito me mostrava que era vossa amiga.

Se vou deu o céu mulher tão leal,
que vos não agaste qualquer picardia,
pois mente quem dela vos for dizer mal.
Sabei que lhe ouvi jurar outro dia
que vos estimava mais do que ninguém;
e para mostrar quanto vos quer bem,
fod… comigo assim me dizia».

CV 976, CBN 1319, lição de Rodrigues Lapa, Cântigas d’Escarnho e de Mal Dizer
[…]
In Natália Correia, Antologia de Poesia Portuguesa, Erótica e Satírica, Dos Cancioneiros Medievais à Actualidade, 1965, 1966, 1999, Herdeiros de Natália Correia, Cruzeiro Seixas, Ponto de Fuga, 2019, ISBN 978-989-888-115-1.

Cortesia de PontodeFuga/JDACT

A Rainha Liberdade. A Guerra das Coroas. Christian Jacq. «Embora o almirante Jannas estivesse sempre ocupado com os piratas nas Cíclades e a revolta dos tebanos ainda não controlada, a entrega dos tributos realizava-se em Auaris, de acordo com o cerimonial habitual»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O governador Emheb saberá manter a frente. Eu quero partilhar a morte do meu marido. Majestade, não me atrevo a compreender... Devo penetrar na Morada da Acácia e ninguém me impedirá de o fazer. Já eram apenas três. Três velhas sacerdotisas que formavam a comunidade das reclusas da Morada da Acácia, votada a um desaparecimento certo se a Rainha Ah-hotep não lhes tivesse assegurado casa e comida para que elas transmitissem o seu saber. Ah-hotep sentou-se com elas junto de uma acácia de temíveis espinhos. A vida e a morte estão nela revelou a Superiora. É Osíris que lhe dá a sua verdura, e é no interior da colina de Osíris que o sarcófago se transforma numa barca capaz de vogar no universo. Se a acácia morrer, a vida abandona os vivos até que o pai ressuscite no filho. Isís cria um novo Faraó, cura os ferimentos infligidos por Set e a acácia cobre-se de folhas. A profecia era clara: Kamés tornar-se-ia Rei. Mas Ah-hotep exigia mais. Possa o meu espírito permanecer eternamente ligado ao de Seken para além da morte. Visto que a morte nasceu respondeu a Superiora morrerá. Mas o que era antes da criação não é afectado pela morte. Nos paraísos celestes, não existe medo nem violência. Justos e antepassados comunicam com os deuses.
Como posso entrar em contacto com Seken? Faz chegar até ele uma mensagem de acordo com o teu coração. E se ele não me responder? Que o deus do destino vele pela Rainha do Egipto. Era o único objecto de grande valor que Ah-hotep possuía: um porta-pincéis de madeira dourada, incrustado de pedras semipreciosas. Tinha a forma de uma coluna e nele estava inscrito: a Rainha é amada por Tot, o senhor das palavras divinas. Num papiro novo, Ah-hotep escreveu em belos hieróglifos uma carta de amor ao seu defunto marido, suplicando-lhe que afastasse os maus espíritos e agisse em favor da libertação do Egipto. Implorava que lhe respondesse a fim de lhe provar que estava realmente ressuscitado. Ah-hotep prendeu a missiva a um ramo da acácia. Depois, com argila, modelou uma estatueta de Osíris estendido no seu leito de morte que depositou ao pé da árvore. Por fim, cantou acompanhando-se com a harpa portátil a fim de que as ressonâncias garantissem à alma de Seken uma viagem harmoniosa no Além. Mas responder-lhe-ia o homem que ela amava?
Embora o almirante Jannas estivesse sempre ocupado com os piratas nas Cíclades e a revolta dos tebanos ainda não controlada, a entrega dos tributos realizava-se em Auaris, de acordo com o cerimonial habitual. Apopis apreciava aquele momento em que os embaixadores, vindos de todas as províncias do Império, se inclinavam profundamente diante dele e lhe ofereciam uma impressionante quantidade de riquezas. Ao contrário dos antigos Faraós, guardava para si a maior parte em vez de a colocar de novo no circuito comercial. Braço direito implacável do Imperador, Khamudi não se esquecia de se servir largamente, com a bênção do seu senhor, cuja segurança garantia. Cabelos muito negros colados ao crânio redondo, olhos ligeiramente rasgados, mãos e pés gorduchos, ossatura pesada, Khamudi engordava cada vez mais desde que fora nomeado grande tesoureiro. Aquele que os seus escravos chamavam Agarra-tudo ou Sua Suficiência recebia uma percentagem de todas as operações comerciais importantes, depois de ter tomado o controlo sobre a exploração dos papiros no Delta.
A sua única distracção consistia em entregar-se às piores perversidade sexuais com o contributo de Yima, a sua loira e exuberante esposa, de origem cananeia. Também aí, Apopis, que pretendia no entanto ser austero e moralista, fechava os olhos. E fechá-los-ia durante todo o tempo em que Khamudi se mantivesse no seu lugar, o de segundo. Como todos os anos, os armazéns de Auaris enchiam-se de ouro, pedras preciosas, bronze, cobre, diversas essências de madeira, tecidos, jarros de óleo e de vinho, unguentos e muitas outras riquezas que asseguravam à capital do Império a sua inegável prosperidade. Quando o embaixador de Creta, envergando uma túnica decorada com losangos vermelhos, avançou para o Imperador, Khamudi tocou no punho da sua adaga e fez um sinal aos seus archeiros. Ao mínimo gesto suspeito do diplomata, tinham ordem para o abater». In Christian Jacq, A Rainha Liberdade, A Guerra das Coroas, ISBN 978-852-861-216-5, Bertrand Editora, 2006, ISBN 978-972-251-281-7.

Cortesia de BEditora/JDACT

A Obscena Senhora D. Hilda Hilst. «Para poder morrer visto as cambraias e apascento os olhos para novas vidas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Respiro e persigo uma luz de outras vidas».

«E ainda que as janelas se fechem, meu pai
É certo que amanhece».

«Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.

Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Destruídas.

Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.

Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.

Porque assim é preciso
Para que tu vivas».

«Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição, pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vazio, buscava nomes, tacteava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis quotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud compreender o quê?, isso de vida e morte, esses porquês escute, Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizesses um café, hen? E apalpava, escorria os dedos na minha anca, nas coxas, encostava a boca nos pe…, no meu mais fundo, dura boca de Ehud, fina húmida e aberta se me tocava, eu dizia olhe espere, queria tanto falar, não, não faz agora, Ehud, por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia-a-dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo. Agora que Ehud morreu vai ser mais difícil viver no vão da escada, há um ano atrás quando ele ainda vivia, quando tomei este lugar da casa, algumas palavras ainda, ele subindo as escadas  Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada?, está ouvindo Hillé olhe, não quero aborrecer-te, mas a resposta não está aí, ouviu?, nem no vão da escada, nem no primeiro degrau aqui de cima, será que não entende que não há resposta? Não, não compreendia nem compreendo, no sopro de alguém, num hálito, num olho mais convulsivo, num grito, num passo dado em falso, no cheiro quem sabe de coisas secas, de estrume, um dia. um dia, um dia…
Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro d’água, não os mesmos, a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não quero mais ver coisa muito viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas Engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito, te deita, te abre, finge que não quer mas quer, me dá tua mão, te toca, vê?, está toda molhada, então Hillé, abre, me abraça, me agrada.
Engolia o corpo de Deus, devo continuar engolia porque acreditava, mas nem por isso compreendia, olhava o porco-mundo e pensava: Aquele nada tem a ver com isso, Este aqui dentro nada tem a ver com isso, Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome, engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender, só isso. Só isso, Senhora D? Compreender o jogo brinquedo do Menino Louco, pensa um pouco, Hillé, pensa no sinistro lazer de uma criança louca, ou pensa em crianças brincando com gatinhos, com ratos, com tristes cadelas vadias, ó vinde a mim as criancinhas, que sabemos nós de criancinhas? Como pôde dizer isso, ele que dizia que muito sabia?» In Hilda Hilst, A Obscena Senhora D., Joroncas, 1981, Wikipedia.

Cortesia de Joroncas/JDACT

Pensar é Transgredir. Lya Luft. «Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Canção das Mulheres
«(…) Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada. Parece fácil: escrever a respeito das coisas é fácil, já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espectacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado. Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança. Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for. E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

O menino e a sua mãe
Faz uns trinta anos, um menino e a sua mãe voltavam das compras no autocarro quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um microscópio, de verdade, dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. De vez em quando ele passava a mão no pacote: parece mentira, não é, mãe? Olhar sonhador. No meio do trajecto houve então um desses diálogos inesquecíveis. Mãe, que igreja é essa? Nossa Senhora Auxiliadora. Porque tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma? É uma sim, filho, mas ela tem muitos nomes. E o Nosso Senhor é são Pedro? Não, é Jesus, ora. Quem casou com ela foi são José. São Pedro era amigo de Jesus. A mãe suspirou: não praticar religião em casa dava nisso. Ah..., e por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora? Os olhos azuis, calmos mas interrogativos, começavam a deixar a mãe inquieta. Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho. Mas o José não era o pai dele? Não era de verdade, o pai dele era Deus, José era pai adoptivo. Ah... Então Jesus não nasceu da sementinha do José? O silêncio no autocarro começava a se tornar imenso. O menino falava em voz alta e clara, p’ra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa.
A mãe pensou por um momento, por que a gente inventou isso de falar das coisas como se fossem naturais? E, embora se considerasse uma mulher razoavelmente moderna, com uma visão saudável da vida, que estava transmitindo aos filhos num tempo em que o tema não era tão francamente abordado, naquela hora quase duvidou de que fossem assim tão naturais. Afinal, estavam em público. O menino a seu lado porém aguardava resposta, respostas. Não, filho, Deus fez brotar a sementinha directo em Nossa Senhora, foi um milagre. Então não foi como nas pessoas? Agora o silêncio podia ser cortado com faca. Não, filho, não foi. Ah... A mãe se fez de distraída, olhava pela janela, sentindo os outros passageiros aguçando o ouvido, como será que ela vai se sair dessa? O menino pensava concentrado. Mãe, como é que antigamente, assim beeeem antigamente, no tempo dos dinossauros por exemplo, as primeiras pessoas sabiam como se fazia p’ra ter bebé, se não tinham ninguém p’ra ensinar p’ra elas?
Essas coisas a natureza ensina. Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente... Quer dizer, quando a gente cresce aprende por si. No olhar azul transparecia uma certa pena, quem sabe a mãe não era tão inteligente assim. O menino, generoso, resolveu mudar de assunto. Mãe, olha, aí estava escrito rua Mozart! Será que ele mora aqui? Ele quem, filho? O Mozart, mãe, ora. Quem ia ser? Não, filho, ele viveu na Europa. Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos. Porque Estados Unidos? A mãe começava a se divertir, aliviada com aquele diálogo menos perigoso. Porque é lá que moram pessoas importantes, o presidente Kennedy e o Cyborg. Ah... Finalmente desembarcaram; ainda segurando o pacote, o menino retomou o seu ar sonhador. Mãe, como eu tenho um pai bom, né? Mas aí pensou melhor, espiou de relance com arzinho maroto a mãe que levantava, sorrindo, um dedo em riste, e emendou bem depressa: e mãe também, claro...» In Lya Luft, Pensar é Transgredir, 2004, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009, 2011, ISBN 978-850-109-376-9.

Cortesia de ERecord/JDACT

segunda-feira, 29 de julho de 2019

A Cal para Caiar o Universo. Ruy Ventura. «É só bem dentro de nós que o projecto se anuncia se retoma se reforma e se solta à luz do dia»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cartas e quadras de Agostinho da Silva
«(…) Há uma antevisão do que é a polissemia de quem escreve. Quem escreve tem de admitir que pode não ser entendido, que pode ser lido de outra forma. Existe quase uma visão anárquica do pensamento, pois as peças não têm que estar coerentes, dado que a coerência é atribuída pelo leitor. Ainda em relação à questão de Deus como Poeta, o início de um poema seu sobre Fernando Pessoa é muito claro nas suas ideias:

O mito é o nada que é tudo
tem por mãe a poesia
e o grande poeta é Deus
o resto filosofia

mas Deus poeta e poema
em Pessoa se encarnou
profeta de Portugal
Lisboa o crucificou

Em toda a poesia de Agostinho, embora, como já referi, eu não seja um conhecedor de todos os meandros da sua obra, penso que existe uma grande valorização do imaginar, da criação de imagens, imagens essas que não têm de estar ligadas ao mundo concreto, mas são sobretudo fruto do pensamento humano, da racionalidade. Afirma:

A face oculta da lua
só banha de seu luar
aqueles que não o vendo
o sabem imaginar.

A realidade está para além do visível e do concreto, está sobretudo no imaginável. Quando o ser humano tenta tornar concreto aquilo que por natureza não o é, a realidade foge. Tem por exemplo uma quadra em que diz:

Em mim tenho o mundo inteiro
e mais que tudo as estrelas
é procurá-las no céu
o que me impede de vê-las.

É só bem dentro de nós
que o projecto se anuncia
se retoma se reforma
e se solta à luz do dia.

Procurar ver as estrelas é sinal de que elas fogem, pois são parte sobretudo do domínio da imaginação».

In Ruy Ventura, A Cal para Caiar o Universo, www.arquivors.com/ruy_acal.pdf, 2007, Wikipedia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

O Quarto da Rainha. Segredo de Estado. Juliette Benzoni. «Já não conseguia encontrar as palavras. O escudeiro veio em seu auxílio: e se fôsseis falar à senhora duquesa? Ela espera-vos nos seus aposentos. A minha mãe?»

Cortesia de wikipedia e jdact

A menina de pés descalços, o sinete de cera vermelha. 1626
«(…) Um belo sorriso esparso, que ele lhe devolveu como pôde, mas que não escapara a dele! A madame Vendôme, de muito mau humor, nesse dia em que desempenhava o papel de chefe de família numa cerimónia que não lhe agradava. Efectivamente, o seu esposo, o duque César, encontrava-se retido no governo da Bretanha, onde se atarefava em criar dificuldades ao homem que mais detestava no mundo: o cardeal Richelieu, ministro do rei Luís XIII. Todavia, durante o regresso, ela nada disse. Quando, após uma noite agitada, François desceu às cavalariças nas primeiras horas da alvorada, teve, no entanto, a surpresa de encontrar o escudeiro de sua mãe, o cavaleiro de Raguenel, que não parava de andar de um lado para o outro no meio das idas e voltas dos moços de estrebaria e dos aguadeiros. François fez de conta que não o vira, mas o empregado  veio ter com ele na altura em que chegava aos portões. Ora bem, meu senhor François, onde pretendeis dirigir-vos a estas horas tão matinais? Dar um último passeio.
Perceval Raguenel era um homem cortês, amável; contudo, François achou-o francamente antipático quando ele lhe perguntou: e para onde contais ir, por favor? Acaso ignorais que temos de regressar a Paris daqui a pouco? O que vos deixa sem tempo disponível. A não ser que tenhais apenas a intenção de dar a volta ao parque... François ficou todo corado: quer dizer, eu...
Já não conseguia encontrar as palavras. O escudeiro veio em seu auxílio: e se fôsseis falar à senhora duquesa? Ela espera-vos nos seus aposentos. A minha mãe? Mas, porquê? Penso que vos dirá. Despachai-vos! Dentro de dez minutos ela irá à capela ler o livro de orações. Como não descortinava maneira de agir de outro modo, François desatou a correr e, alguns momentos mais tarde, uma camareira introduzia-o no quarto onde Françoise Vendôme acabava de se pentear. Era o antigo quarto de Diane Poitiers, uma divisão sumptuosa, mas não muito mais do que o eram as outras vinte e duas daquele castelo quase real. As paredes e o tecto estavam pintados de cores vivas, realçadas a ouro; vários tapetes cobriam o soalho precioso e tapeçarias magníficas aqueciam quase tanto a atmosfera quanto o fogo que ardia na grande chaminé de mármore multicolor. Nessa manhã de Março, o dia passava através das travessas da janela onde se encastoavam vitrais pintados em camafeu cinzento que, podendo dar a ilusão de um relevo e representando cenas do Antigo Testamento, não deixavam filtrar nenhuma luz; no entanto, o fogo e as altas velas de cera branca encarregavam-se disso.
Logo que transpôs a entrada, o jovem fez uma saudação, avançando, em seguida, para a sua mãe, no meio do bailado das acompanhantes que o olhavam sorrindo. Quanto a madame Vendôme, ela não sorria. Ah! Eis-vos aqui! Julie, parece-me que isto está bem, acrescentou, dirigindo-se à sua cabeleireira. Agora deixem-me e ide-vos todas embora. Depois, quando a última aia transpôs a porta: pois bem, onde contáveis ir a estas horas da manhã? Dar um último passeio, senhora, visto que dentro em breve regressaremos a Paris. E para que bandas? Seria para o lado de Sorel? O pequeno príncipe corou sem ousar responder, considerando a mãe com certa apreensão. Na realidade, apesar do cuidadoso amor que lhes dispensava, sem o mostrar excessivamente, Françoise Lorraine-Mercceur, duquesa de Vendôme pelo seu casamento, possuía o dom de impressionar as suas três crianças bem mais que o pai delas, o duque César, cujo carácter jovial e inclinação pelas brincadeiras frequentemente jocosas e cuja despreocupação recordavam muitas vezes as suas origens da região de Béarn (é uma região que corresponde à parte oriental do departamento dos Pirenéus-Atlânticos Unida ao condado de Foix (1290), no século XV passa com este para a casa de Navarra; o futuro rei Henrique IV, rei de Navarra em 1572, foi o último conde de Béarn; Luís XIII anexá-la à Coroa em 1620), faziam dele um interlocutor menos imponente. Isso era devido ao facto de ela se considerar, sobretudo, como serviçal do Senhor, tendo sido educada pela mãe segundo princípios cristãos de grande rigidez que lhe permitiam ostentar uma certa simplicidade no meio do fausto em que a colocavam a sua linhagem, a grande fortuna de que dispunha fora um dos mais belos partidos da Europa e o amor que dedicava a um esposo cujos gostos eram opostos aos seus, salvo no que dizia respeito ao esplendor e ao poder da casa.
César, que era antes de tudo um homem de armas, gostava de despender vastas somas e de levar uma bela vida, enquanto Françoise, afilhada do falecido bispo de Génova, François Sale, amiga de Jeanne de Chantal e dessa prodigiosa personagem a quem chamavam o senhor Vincent, interessava-se, sobretudo, pela salvação eterna dos seus e pela prática de uma caridade que se estendia até bem longe até às prostitutas parisienses das margens do Sena e às do bordel, obrigatoriamente tolerado devido à presença de soldados em Anet. Deste modo, quando uma das crianças devia responder por algum disparate cometido, tinha sempre a vaga impressão de comparecer perante o tribunal do próprio Deus». In Juliette Benzoni, O Quarto da Rainha, Segredo de Estado, 1997, Bertrand Editora, 2000, 2009, ISBN 972-251-097-5, ISBN 978-972-251-821-5.

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Civilizações Clássicas II. Dinarte Belato. «Van Gogh, um homem das planícies do norte da Europa, de céus cinzentos, captou como ninguém este céu azul quando esteve internado no sul da França, em Arles»

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«(…) Os romanos, quando o dominaram por completo, chamaram-no de Mare Nostrum: Nosso Mar, ou Mediterrâneo, isto é, o mar que está cercado de terras, que está no meio da terra. Ao recorte do mar em mares corresponde um desenho de terras que se projectam águas adentro. São as sucessivas penínsulas que de oeste para leste adentram no mar: a península ibérica, italiana, balcânica e anatólica. A península italiana divide o Mediterrâneo em dois, o poente e o levante, o leste e o oeste, Ocidente e Oriente. Como destaca Braudel (1988): aí a Itália encontra o sentido de seu destino: ela é o eixo mediano do mar e, [...], sempre se desdobrou entre uma Itália voltada para o poente e uma Itália que encara o levante; não foi nisso que por muito tempo encontrou suas riquezas? Ela tem a possibilidade natural, o sonho natural de dominar todo o mar.
Às vezes dizemos que tal ou qual região do Brasil tem um clima mediterrâneo. Que queremos dizer com isso? Simplesmente que estamos comparando tal ou qual clima com o do Mar Mediterrâneo. Que clima é esse? É um clima homogéneo, singular, que dá um carácter único a toda a bacia do mar e que proporciona às paisagens e aos géneros de vida que aí se desenvolvem há milénios um toque unificador, uma identidade. O clima é governado por duas forças que em sucessão se impõem: o deserto do Saara ao sul e o Oceano Atlântico ao oeste. Todo o Verão, o ar seco e ardente do Saara envolve toda a extensão do mar, ultrapassando, porém, seus limites em direcção ao norte. O Mediterrâneo torna-se, então, quente, aprazível e à noite exibe céus límpidos e estrelados (Braudel, 1988). Van Gogh, um homem das planícies do norte da Europa, de céus cinzentos, captou como ninguém este céu azul quando esteve internado no sul da França, em Arles. Ele pintou também o vento implacável que, várias vezes por ano, no Verão, sopra tórrido do Saara, carregado de areia, que entorta as árvores e que obriga todos, homens e animais, a se recolherem para dentro de casa. É o siroco, mistral, khamsin ou plumbeus auster, como dizia o poeta romano Horacio. De Abril a Setembro os ventos dominantes do nordeste, os ventos que os gregos chamavam de etésios, eram também quentes e não contrabalançavam o calor vindo do Saara.
A partir de Outubro impõem-se os ventos carregados de humidade do Atlântico. Ventanias e chuvas torrenciais tornam o continente e o mar perigosos e humedecem o solo à espera das sementeiras de Primavera e de Verão. O ciclo se repete a cada ano, de forma regular, há milénios, e requer das sociedades que aí plantam, disciplinas colectivas e muito trabalho. Não por acaso, gregos e romanos foram buscar na massa de escravos que capturaram em guerras e piratarias o trabalho de que tanto necessitavam. Eles foram os criadores das sociedades escravistas. Iguais a elas, só a escravidão em grande escala de povos africanos e obrigados ao trabalho compulsório nas fazendas e plantações da América nos três séculos que vão do 16 ao 18.
Se examinarmos com atenção as civilizações fenícia, grega e romana, todas têm como um de seus móveis a busca de alimentos ou a expulsão das suas populações excedentes, fundando sucessivas colónias ao redor da bacia do Mediterrâneo. Mesmo assim, a comida nunca foi abundante, o que acabou convertendo a sobriedade, a temperança, em virtude cardeal e explica o escândalo que produziam no povo romano e nos cristãos primitivos os banquetes fartos dos ricos romanos que a iconografia fixou gordos e obesos. Não por acaso gordo, grosso, grasso, gras, é sinónimo de rico, de abastado. De um modo geral, observa Braudel (1988), [...] o Mediterrâneo equilibra a sua vida a partir da tríade: oliveira, vinho e trigo. Muito pouca proteína animal, que vinha da pesca e da criação de suínos e de caprinos e ovinos, mas muito poucos bovinos. O Império Romano, na sua extensão máxima e no seu apogeu se converteu numa máquina de rapina de alimentos que eram drenados para Roma: trigo, vinho, azeite, animais, queijo, peixes». In Dinarte Belato, Civilizações Clássicas II, Editora Unijui, 2009, ISBN 978-857-429-772-9.

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