segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Álvaro de Campos. Poesia. «Perco-me subitamente da visão imediata, estou outra vez na outra cidade, na outra rua, e a outra rapariga passa. Que grande vantagem o recordar intransigentemente!...»

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«Álvaro de Campos é um poeta moderno, aquele que vive as ideologias do século XX. Engenheiro de profissão vê o mundo com a inteligência concreta de um homem dominado pela máquina. De temperamento rebelde e agressivo, seus poemas reproduzem a revolta e o inconformismo, manifestados através de uma verdadeira revolução poética»

A Praça

«A praça da Figueira de manhã,

Quando o dia é de sol (como acontece

Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,

Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante

Que aquele lugar lógico e plebeu,

Mas amo aquilo, mesmo aqui ... Sei eu

Porque o amo? Não importa. Adiante ...

Isto de sensações só vale a pena

Se a gente se não põe a olhar para elas.

Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está

De acordo comigo próprio. As horas belas

São as dos outros ou as que não há».

 

Acaso

«No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade

Numa outra espécie de rua;

Porque todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...

Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo,

e isto é o mesmo também afinal».

In Álvaro de Campos, Obra Completa, Fernando Pessoa, Editora Tinta da China, 2014, ISBN 978-989-671-232-7.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT

JDACT, Álvaro de Campos, Cultura, Poesia, Fernando Pessoa, 

Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. «Nem sequer o deixavam ter pai e mãe como as outras crianças. O seu pai era duas pessoas, um velho chamado José, que era carpinteiro…»

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O Guardador de Rebanhos

VI

«(…) Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,

Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,

Como os regatos e as árvores,

E Deus amar-nos-á fazendo de nós

Belos como as árvores e os regatos,

E dar-nos-á verdor na sua primavera,

E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

VII

Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte,

Empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos

Porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

VIII

Num meio-dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães».

[…]

In Alberto Caeiro, Poemas Completos, Fernando Pessoa, Editorial Presença, 2000, ISBN 978-972-232-422-9.

Cortesia de EPresença/JDACT

JDACT, Alberto Caeiro, Cultura, Poesia, Fernando Pessoa,

domingo, 29 de novembro de 2020

As Areias do Tempo. Sidney Sheldon. «É tempo do bispo ser informado sobre quem manda na Espanha. O bispo Calvo Ibáñez era magro, aparência frágil, uma nuvem de cabelos brancos turbilhonando em torno da cabeça»

Cortesia de wikipedia e jdact

Madrid

«(…) Todos se levantaram para sair, à excepção do coronel Acoca, que ficou. Leopoldo Martínez começou a andar de um lado para o outro. Malditos bascos. Porque não podem ficar satisfeitos em serem apenas espanhóis? O que mais querem? São ávidos por poder, disse Acoca. Querem autonomia, sua própria língua e bandeira... Não enquanto eu ocupar este cargo. Não permitirei que destruam a Espanha. O governo lhes dirá o que podem e o que não podem fazer. Não passam de uma ralé (?) que... Um assessor entrou na sala. Com licença, Excelência. O bispo Ibáñez chegou. Mande-o entrar. Os olhos do coronel contraíram-se. Pode estar certo de que a Igreja se encontra por trás de tudo isso. É tempo de lhes ensinarmos uma lição. A Igreja é uma das grandes ironias da nossa história, pensou o coronel Acoca, amargurado.

No começo da Guerra Civil, a Igreja Católica ficara do lado das forças nacionalistas. O papa apoiava o Genralíssimo Franco, e com isso lhe permitira proclamar que lutava no lado de Deus (?). Mas quando as igrejas, mosteiros e padres bascos foram atacados, a Igreja retirara esse apoio. Deve conceder mais liberdade aos bascos e catalães, exigira a Igreja. E deve suspender as execuções de padres bascos. O Generalíssimo Franco ficara furioso. Como a Igreja ousava fazer exigências ao governo? Iniciara-se então uma guerra de atributos. Mais igrejas e mosteiros foram atacados pelas forças de Franco. Freiras e padres foram assassinados. Bispos foram postos sob prisão domiciliar, e sacerdotes por toda a Espanha foram multados por fazerem sermões considerados sediciosos pelo governo. Só quando a Igreja o ameaçou de excomunhão é que Franco interrompeu os ataques. A maldita igreja!, pensou Acoca. Voltara a interferir após a morte de Franco. Ele virou-se para o primeiro-ministro.

É tempo do bispo ser informado sobre quem manda na Espanha. O bispo Calvo Ibáñez era magro, aparência frágil, uma nuvem de cabelos brancos turbilhonando em torno da cabeça. Olhou os dois homens através do pincenez. Buenas tardes. O coronel Acoca sentiu a bílis subir pela garganta. A mera visão dos cléricos deixava-o doente. Eram traidores levando seus estúpidos cordeiros para o matadouro. O bispo ficou parado, à espera de um convite para se sentar. O que não aconteceu. E também não foi apresentado ao coronel. Era uma desfeita deliberada. O primeiro-ministro olhou para Acoca, em busca de orientação. O coronel disse, bruscamente: recebemos algumas informações desagradáveis. Dizem que rebeldes bascos estão realizando reuniões em mosteiros católicos. Também há informações de que a Igreja está permitindo que mosteiros e conventos guardem armas para os rebeldes. Havia ódio na sua voz. Ao ajudarem os inimigos da Espanha, vocês também se tornam inimigos da Espanha. O bispo Ibáñez fitou-o em silêncio por um momento, depois virou-se para o primeiro-ministro Martínez. Com todo o respeito, Excelência, somos todos filhos da Espanha. Os bascos não são inimigos. Tudo o que pedem é liberdade para... Eles não pedem!, bradou Acoca. Exigem! Circulam pelo país saqueando, assaltando bancos e matando polícias... E ainda ousa dizer que não são nossos inimigos? Reconheço que houve excessos indesculpáveis. Mas às vezes, quando se luta por aquilo em que se acredita... Eles não acreditam em coisa alguma, a não ser em si mesmos. Não se importam com a Espanha». In Sidney Sheldon, As Areias do Tempo, 1989, Publicações Europa-América, 2003, ISBN 978-972-105-176-8.

Cortesia PEuropaAmérica/JDACT

JDACT, Sidney Sheldon, Literatura, Espanha, Política,  

sábado, 28 de novembro de 2020

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Parecia fresco, enérgico, ainda que os olhos estivessem raiados de vermelho e se notassem as olheiras em volta deles. Talvez descansasse pouco…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os ladrilhos respiravam debaixo dos pés deles, testemunhas silentes de séculos de passadas que transportavam a história dos actos e dos livros, dos sussurros, das intrigas e dos ideais. Vais dizer alguma coisa?, quis saber Jacopo, ainda irritado, mas com um tom de voz mais suave. Está frio, não está? Jacopo virou-lhe a cara. Aquele sempre fora bom a desconversar. Só tirou o chapéu quando entrou pela porta que Guillermo lhe indicou. Ao fundo, junto à janela, um homem de meia-idade estava recostado na cadeira a passar o dedo pelo ecrã de um iPad. A tecnologia também marcava presença na casa de Deus. Doutor Sebastiani, cumprimentou o homem, levantando-se da cadeira assim que o viu, com um sorriso nos lábios. Bons olhos o vejam. Pousou o tablet em cima do tampo da secretária mostrando o cabeçalho do Il Messagero. Reverendo Giorgio. Não me importava nada de o ver um pouco mais tarde. Estendeu a mão para cumprimentar o prelado. Acenou com a cabeça para o tablet. Ainda acredita em boas notícias? Estou a seleccioná-las para a leitura matinal do Santo Padre. Mas nada de novo, de facto. A Europa está a ruir connosco dentro, respondeu o clérigo, bem-disposto, apesar da hora. O Santo Padre não se cansa de ler sempre a mesma lengalenga? A informação é tudo hoje em dia. Mesmo que seja sempre a mesma coisa. Apontou para uma cadeira que Jacopo, sem cerimónia, aproveitou, e contornou a secretária para retornar à sua. Guillermo ficou em pé, encostado a uma mesa de reuniões.

A que se deve a honra de ser chamado a esta hora da madrugada?, atirou Jacopo sem aguardar que o outro se sentasse. Pois, peço desculpa por tê-lo feito levantar-se tão cedo, doutor Sebastiani. Pode chamar-me só doutor, atalhou o mais velho, corrosivo. Vá directo ao assunto, por favor. Giorgio entrelaçou os dedos e exibiu uma expressão pensativa como se estivesse a delinear uma estratégia para começar a falar. Já ouviu falar dos irmãos Finaly?, acabou por perguntar. Jacopo anuiu com a cabeça e franziu o sobrolho em alerta. A que propósito ele perguntara aquilo? O que é que sabe deles?, quis certificar-se o secretário. A esta hora da noite?, escarneceu o historiador. Giorgio sorriu com condescendência e pousou as mãos em cima da secretária. Jacopo não conseguia perceber se ele tinha dormido alguma coisa ou se não pregava olho desde a noite anterior.

Parecia fresco, enérgico, ainda que os olhos estivessem raiados de vermelho e se notassem as olheiras em volta deles. Talvez descansasse pouco, o que era apanágio do posto que ocupava. Quem servia o Santo Padre oferecia mais do que tempo e dedicação, oferecia a vida. Jacopo ajeitou-se na cadeira e abriu o arquivo de memórias onde, algures entre Pio XII, Adolf Hitler, Segunda Guerra Mundial, Holocausto, nazismo e outros itens relacionados, encontrou o registo correspondente ao dos irmãos Finaly. Era um dossier simples com informação escassa e nunca verificada. Quer mesmo a minha versão?, quis certificar-se. Giorgio anuiu. Prezava o doutor pela sua frontalidade e honestidade intelectual. Queria ouvir a sua versão da história. O que eu sei, e isto é tudo baseado em fontes sem qualquer crédito, portanto, boatos… Não se preocupe. Continue. Eram dois irmãos judios, crianças, que foram escondidos dos familiares depois da guerra, em França. Robert, o mais velho, e Gérald, o mais novo. Fazem parte dos milhares de crianças judias que, supõe-se, não foram devolvidos às famílias. Giorgio suspirou. Parecia incomodado. Mas porque é que estavam à nossa guarda? Jacopo fitou-o perplexo. Não sabe? O alemão voltou a suspirar e levou uma mão ao rosto. Acredite ou não, até hoje nunca tinha ouvido falar deles. Posso ser completamente honesto consigo? Não espero outra coisa, respondeu Jacopo com evidente franqueza. Estou completamente a leste disto tudo.

Foi a vez de o historiador respirar fundo. Olhou para o relógio que trazia no pulso e perdeu a última esperança que tinha de voltar ao aconchego da cama. Já passava das cinco. Tenha em atenção que a informação de que disponho carece de verificação. Se pretender, posso, mais tarde, fazer uma pequena pesquisa e dar-lhe dados mais fundamentados, repetiu a advertência. Comunicada a qualidade da informação, Jacopo recomeçou o seu relato. A partir de 1942 ou 1943, o Papa Pio XII deu ordens a todas as instituições religiosas que albergassem os refugiados de guerra sem olharem à religião. Deviam ser todos vistos como seres humanos. Milhares de pessoas foram acolhidas em mosteiros, conventos, famílias de acolhimento católicas, e onde quer que houvesse espaço. Maioritariamente judeus?, questionou Giorgio. Sim. No início, o Papa, especialmente em Roma, e por via do, na altura, monsenhor Montini, conseguiu negociar com o general das SS Reiner Stahel, que declarou a extraterritorialidade de todas as instituições religiosas. Aqui mesmo, no Vaticano, refugiaram-se milhares de judeus e o Papa esperava que todas as instituições, através desse acordo com Stahel, fossem tratadas de igual forma. Aqui os nazis nunca se atreveram a entrar sem serem convidados. Porém, os alemães, que não eram burros (?) nenhum, lembrou-se nesse momento que estava a falar com um, começaram a fazer inspecções nos mosteiros e nos conventos. Foi uma época muito perigosa. Resumindo, no final da guerra havia, para além dos órfãos, muitas crianças por reclamar». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, Luís Miguel Rocha, Religião, Literatura, Reconhecimento, Actualidade, 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «O que fazer? Há sempre solução para tudo. Não pode sair por um lado, saia por outro, dizia a avó. Saia por outro... Saia por outro... Na casa da avó era possível sair pela janela…»

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Conclave

26 de Agosto de 1978

«(…) Tão logo chega ao primeiro andar, escuta o movimento das dobradiças da porta de baixo. Um estrépito grave que incomoda os ouvidos, ainda mais no meio da escuridão da casa. Havia muito tinha a intenção de mandar lubrificá-las, mas protelara sempre, por uma ou outra razão. Ficara na intenção; mas não pensa nisso Sarah Monteiro. O que a incomoda nesse momento é a porta que se abriu e os passos intrusos no interior da própria casa. Caminha em direcção ao quarto, sempre de ouvidos atentos, os sentidos da sobrevivência totalmente despertos, assim como o medo aterrador. O intruso passeia pelo andar inferior, calmamente, sem se incomodar em disfarçar sua presença. O peso do calçado faz estalar o soalho muito devagar. Sarah imagina-o passando o local a pente-fino, à cata de algo que nem mesmo ela sabe o que é. Uma sensação frustrante de impotência toma conta do seu corpo e lança-a num torpor de imagens desconexas do quarto onde acaba de entrar, o seu, mergulhado na escuridão. Uma cortina vermelha, igual às do piso inferior, filtra a luz externa, arroxeando a divisão e emprestando-lhe um ar soturno arrepiante. Afasta-a sem fazer barulho, o carro negro continua lá em baixo, no mesmo local onde o viu pela primeira vez. A impávida serenidade do veículo a destoar do seu próprio estado de espírito. Não, é necessário manter a lucidez. Não se deixe abater, pensa. Vamos, coloque essa cabeça para funcionar. O que tem de fazer? Os passos em baixo continuam a fazerem-se ouvir, como um martelo batendo em madeira. Rudes, fortes, desregrados, como a dizerem em voz alta: estou aqui!

O que fazer? Há sempre solução para tudo. Não pode sair por um lado, saia por outro, dizia a avó. Saia por outro... Saia por outro... Na casa da avó era possível sair pela janela do primeiro andar porque estava construída na encosta do monte, literalmente. Mas adaptar a realidade àquela casa, àquela cidade inglesa, absolutamente plana, não é a mesma coisa. No entanto, há sempre que se contar com a famosa circunspecção britânica. Tudo tem saídas de emergência, mesmo as casas. O perigo de incêndio em Londres é iminente, dadas as construções dos interiores feitas em madeira e a idade dos edifícios. De grande incêndio, bastou o de 2 de Setembro de 1666. Até essa casa tem uma saída de emergência. Mas onde? Não existem portas nesse andar. As janelas abrem muito pouco. A não ser..., a do banheiro. É isso! A janela do banheiro abre totalmente. E, ao lado, fixas na parede, há escadas de ferro para saída de emergência. A solução. Obrigada, avó!

Uma solução, um plano, um intruso. Sarah Monteiro respira fundo. O banheiro fica logo em frente. É só passar a porta, atravessar a extensão do corredor e entrar. Segundos, meros segundos, separam-na do exterior. Um... dois... três... Inicia a corrida, para tropeçar e cair logo na carpete do corredor. O intruso, que ouviu os passos de Sarah, lança-se para as escadas. Ela se levanta e corre para o banheiro. Pancadas fortes sobre os degraus. Sarah, dentro do banheiro, sobe para cima da banheira e tenta abrir a janela. A falta de uso emperrou o corrediço de tal maneira que nenhuma força a abrirá. Prova disso é a expressão de esforço no rosto de Sarah, que, não fosse a escuridão, mostraria o rubor declarado que lhe provoca o afogueamento da respiração. Os passos ultrapassaram as escadas e são audíveis no corredor. A pessoa em questão já não corre: caminha lentamente pelo corredor, espreitando cada divisão por onde passa.

Sarah faz uma última tentativa para abrir a maldita janela..., nada feito. Aquilo não levaria a nada. No corredor, um homem, envergando um sobretudo negro, enrosca o silenciador na Beretta. Sarah esmaga-se contra a parede do banheiro. Talvez ainda dê tempo de fazer alguma coisa. Se conseguisse quebrar o vidro todo de uma vez... De quantos segundos necessitaria para quebrá-lo e sair? Cinco? Dez? De quantos segundos precisará o assassino para percorrer os poucos metros que faltam assim que escutar os estilhaços? Dois? Três? Talvez menos. Provavelmente morreria com um pé para fora da janela, se tivesse tempo para tanto. Provavelmente... Mais um passo, outro... O ranger da madeira, o ranger dos dentes de Sarah, reflexos inconscientes do corpo alerta. O medo paralisa seus movimentos. Só consegue ouvir o ruído do soalho a cada passo, a respiração muito calma do intruso bem dentro da sua cabeça. Está acostumado àquilo, com certeza. Um profissional. Para ele, Sarah não passa de mais uma vida descontinuada, consegue ainda pensar a jovem. Uma vida sem nenhum interesse nem relevância para quem vem tirá-la. Um corpo em breve inerte, sem sonhos, sem projectos, sem nada. Um corpo não passa de um corpo. É então que a voz do pai e da avó substituem todos os outros pensamentos. Lembra-se do que dizia a avó? Há sempre solução para tudo. Só não há para a morte.

De súbito, exacerbada por uma sensação de urgência, Sarah sai da banheira o mais silenciosamente possível. As meias e o seu diminuto peso ajudam nesse efeito. Procura algo, os olhos há muito habituados à pouca iluminação. O secador? Não. O spray de cabelo? Também não. Toalhas, perfumes, cremes, toalhas, vassoura..., não, não, não. Encosta-se na parede junto à pia, impotente. Ao seu lado, à altura da cabeça, o extintor. Isso sim! Se julga que não vai ter luta, está muito enganado, balbucia em surdina, com o extintor nas mãos, sentindo-lhe o peso. Comprime-se contra a parede, junto à abertura para o corredor. Segura o extintor com as duas mãos e mantém-se à escuta. Três metros..., uma passada..., dois metros..., uma passada..., um metro... Primeiro foi a nuvem de pó espumante com que Sarah pulverizou toda a entrada, aliando uma névoa densa à luz fraca. O intruso não deu sinais de vida durante alguns segundos, na tentativa de deixar pousar o produto liberado pelo extintor, mas logo Sarah voltou à carga, esvaziando o conteúdo. A segunda utilidade seria o de arma de arremesso, mas o silêncio do desconhecido tomou-se desesperador. Onde está?, geme em voz baixa». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT

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A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «4 de Janeiro de 2003, disse Rafael. Descoberta de um bloco de pedra calcária com inscrições em fenício antigo com um plano pormenorizado para a recuperação do primeiro templo judeu…»

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Vaticano. 19 de Abril de 2005

«(…) Rafael olhou para ele pela primeira vez. Dispensava a aula de História. Conhecia aquele argumento há décadas. Pagam-te para ensinar isso?, provocou com menosprezo. Depois de décadas de escavações, de sorrisos, de ilusões, de ansiedade, o que é que eles encontraram?, deixou a pergunta no ar, ignorando a ironia de Rafael. Jacopo fez , um círculo com o indicador e o polegar. Zero, proclamou triunfante. Nada. Nada?, questionou Rafael. Nada de nada, reiterou Jacopo. Não encontraram absolutamente nada que comprovasse um só facto narrado no Antigo e no Novo Testamento. E chegaram a outra conclusão: aparecem nomes de personagens e de locais na Bíblia de que nem gregos nem romanos alguma vez ouviram falar. Só são mencionados naquele livro e em mais lado nenhum.

4 de Janeiro de 2003, disse Rafael. Descoberta de um bloco de pedra calcária com inscrições em fenício antigo com um plano pormenorizado para a recuperação do primeiro templo judeu, o do rei Salomão. Foi encontrada no Monte do Templo, na cidade velha de Jerusalém. Ou Haram al Sharif, como lhe chamam os muçulmanos, acrescentou Jacopo visivelmente agradado. O fragmento datava da época do rei bíblico Joás, que reinou há mais de 2500 anos. Se és tão versado na Bíblia então deves recordar-te do capítulo 12, dos versículos 4, 5 e 6, mais especificamente, do Segundo Livro dos Reis, onde se relata que Joás, rei de Judá, ordenou que juntassem todo o dinheiro recolhido no templo para ser utilizado na sua reparação. Alegadamente, proferiu Jacopo com um sorriso. Nunca me deixaram ver tal descoberta. Nem houve mais notícias.

1961, prosseguiu Rafael. A escavação de um anfiteatro antigo, mandado erigir por Herodes, o Grande, em Cesareia, no ano 30 antes de Cristo Nosso Senhor, revela um bloco de calcário, aceite como autêntico. Nele encontra-se uma inscrição parcial. Jacopo e Rafael citam-na ao mesmo tempo.

DIS AUGUSTIS TIBERIEUM

PONTIUS PILATUS

PRAEFECTUS IUDAEAE

FECIT DEDICAVIT.

Jacopo aplaude a sorrir. A Pedra de Pilatos. Um aplauso, caro senhor. Só comprova a existência de Tibério e Pilatos, que nunca esteve em dúvida, e confirma que o posto de Pôncio Pilatos era de prefeito, ou seja, governador e não procurador, argumentou Jacopo. Tens mais? É um trabalho em evolução. Não esqueças que estamos a falar de milénios de história em cima de história em curso. Mas nunca se sabe quando poderão aparecer novos elementos e tu, melhor que ninguém, sabes como é um trabalho moroso. Jacopo levantou os braços e abriu as mãos. Voltem sofistas. Estão perdoados.

Uma chuva miudinha acolheu-os assim que puseram o pé no exterior do terminal, limpando-lhes o rosto e agarrando-se à roupa. Que raio de tempo, protestou Jacopo. A Sûreté enviara um carro para os levar ao local onde Zafer fora encontrado por um drogado que procurava um local privado para subir às alturas. Em vez disso encontrou um velho estendido no chão, inerte, de barriga para baixo, sem vida. O armazém ficava a norte da cidade, longe do bulício turista, das luzes que lhe davam o epíteto. Um conjunto de projectores, alimentados por um gerador que fazia um ruído monumental, iluminava o exterior e interior do armazém. O cadáver já tinha sido recolhido durante a tarde. A perícia recolhera todos os elementos que pudessem revelar mais sobre o criminoso, porque o resto fora bastante claro. Zafer fora atraído ao local de livre e espontânea vontade, levara uma tareia e, por fim, uma injecção de prussiato acabara com o seu sofrimento. Algumas pessoas, vestidas à civil, vagueavam pelo local em algum afazer descontextualizado para quem estava de fora. Outras apenas conversavam sobre o jogo da selecção gaulesa, antevendo o final do longo dia de trabalho.

Rafael Santini?, chamou um homem de gabardina creme e cigarrilha na boca. Rafael foi retirado do mundo de probabilidades e especulações onde estava e levantou-se. O próprio. O senhor é o inspector Gavache? Efectivamente. Estendeu a mão a selar o conhecimento entre dois desconhecidos». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

As Areias do Tempo. Sidney Sheldon. «Corriam rumores de que tinham enormes recursos à sua disposição, mas era um mistério de onde procedia o dinheiro ou como era usado e manipulado»

Cortesia de wikipedia e jdact

Madrid

«(…) Passara pelo turbilhão da Guerra Civil, com sua aliança nacionalista de monarquistas, generais rebeldes, latifundiários, a alta hierarquia da Igreja e os falangistas fascistas de um lado, e as forças do governo republicano, incluindo socialistas, comunistas, liberais e separatistas bascos e catalães, no outro. Fora um terrível período de destruição e morte, uma loucura que atraíra homens e material bélico de uma dúzia de países, deixando um saldo de mortos assustador. E agora os bascos voltaram a lutar e matar. O coronel Acoca comandava um grupo eficiente e implacável de antiterroristas. Seus homens trabalhavam em operações clandestinas, usavam disfarces e não eram divulgados ou fotografados, por medo de retaliação. Se alguém pode deter Jaime Miró, é o coronel Acoca, pensou o primeiro-ministro. Mas havia um problema: quem vai deter o coronel Acoca? A entrega do comando ao coronel não fora ideia do primeiro-ministro. Ele recebera um telefonema no meio da noite na sua linha particular, reconhecera a voz no mesmo instante. Estamos muito preocupados com as actividades de Jaime Miró e seus terroristas. Sugerimos que ponha o coronel Ramon Acoca no comando do GOE. Entendido? Entendido, senhor. Será imediatamente providenciado. A ligação fora cortada. A voz pertencia a um membro do Opus Dei. A organização era uma calada secreta que incluía banqueiros, advogados, dirigentes de poderosas corporações e ministros do governo. Corriam rumores de que tinham enormes recursos à sua disposição, mas era um mistério de onde procedia o dinheiro ou como era usado e manipulado. Não era considerado saudável fazer muitas perguntas a esse respeito.

O primeiro-ministro pusera o coronel Acoca no comando, de acordo com as instruções, mas o gigante mostrara-se um fanático incontrolável. Seu Génio criara um reinado de terror. O primeiro-ministro pensou nos terroristas bascos que os homens de Acoca haviam capturado perto de Pamplona. Foram julgados e condenados à morte. O coronel Acoca insistira para que fossem executados pelo bárbaro garrote vil, a gargantilha de ferro com um espigão que era apertada aos poucos, até que partia a vértebra e cortava a medula espinhal das vítimas. Jaime Miró tornou-se uma obsessão para o coronel Acoca. Quero a sua cabeça, disse o coronel Acoca. Cortemos sua cabeça e o movimento basco morre.

Um exagero, reflectiu o primeiro-ministro, embora devesse admitir que havia um fundo de verdade. Jaime Miró era um líder carismático, fanático em relação à sua causa e por isso perigoso. Mas à sua maneira, concluiu o primeiro-ministro, o coronel Acoca é igualmente perigoso. Primo Casado, o director-geral de segurança Pública, estava falando: Excelência, ninguém podia prever o que aconteceu em Pamplona. Jaime Miró é... Sei o que ele é, interrompeu o primeiro-ministro bruscamente. Quero saber onde ele está. Virou-se para o coronel Acoca. Estou na sua pista, disse o coronel Acoca, a voz provocando um calafrio pela sala. Gostaria de lembrar a Vossa Excelência que não estamos lutando contra um homem apenas. Mas sim contra todo o povo basco. Eles forneceram alimentos, armas e abrigo a Jaime Miró e a seus terroristas. O homem é um herói para eles. Mas não se preocupe. Muito em breve ele será um herói enforcado. Depois que eu lhe oferecer um julgamento justo, é claro. Não nós. Eu. O primeiro-ministro especulou se os outros haviam notado. Sem dúvida, ele pensou, nervosamente, alguma coisa precisará ser feita em relação ao coronel muito em breve. O primeiro-ministro levantou-se. Isso é tudo por enquanto, senhores». In Sidney Sheldon, As Areias do Tempo, 1989, Publicações Europa-América, 2003, ISBN 978-972-105-176-8.

Cortesia PEuropaAmérica/JDACT

JDACT, Sidney Sheldon, Literatura, Espanha, Política,

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Lucinda Riley. O Segredo de Helena. «Mas ali, no centro do jardim, tendo ainda presa a ela uma ponta da rede em que a mãe costumava se deitar, as cordas parecendo espaguete velho e esfiapado, erguia-se a velha oliveira»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Comecei a ver a casa à medida que fui contornando com o carro os perigosos buracos, ainda não tapados, mesmo depois de dez anos, e cada vez mais fundos. Sacudi mais um pouco, depois parei e contemplei Pandora, achando que não era assim tão bonita, ao contrário das requintadas fotos de imóveis de classe alta que vemos em sítios que alugam por temporada. Em vez disso, ao menos vista pelos fundos, era uma casa sólida, sensata e quase austera, como sempre imaginei que teria sido seu habitante anterior. Construída com pedras locais de tom claro e quadrada como as casas de Lego que eu montava quando menino, Pandora se erguia da terra árida e pedregosa que a cercava e que, até onde a vista alcançava, estava coberta de tenras vinhas que começavam a brotar. Tentei conciliar a realidade com a imagem que eu levava na mente havia dez verões e concluí que a memória me prestara bons serviços.

Depois de estacionar o carro, contornei as paredes maciças até à frente da casa e o terraço, que é o que coloca Pandora acima do lugar-comum e a inclui numa espectacular categoria própria. Atravessando o terraço, fui até à balaustrada erguida na sua borda, no ponto exacto que antecede o início do declive suave do terreno: uma paisagem repleta de vinhedos, uma ou outra casa pintada de branco e extensos olivais. Ao longe, uma linha de um azul-turquesa cintilante separava a terra e o céu. Notei que o sol dava uma verdadeira aula magna ao se pôr, penetrando com seus raios amarelos no azul e o transformando em ocre. É interessante, pois sempre achei que a combinação de amarelo e azul resultava em verde. Olhei à direita, para o jardim abaixo do terraço. Os bonitos canteiros, tão cuidadosamente plantados por minha mãe dez anos antes, não tinham sido bem tratados e, sedentos de atenção e água, foram dominados pela terra árida e suplantados por um mato feio e espinhoso.

Mas ali, no centro do jardim, tendo ainda presa a ela uma ponta da rede em que a mãe costumava se deitar, as cordas parecendo espaguete velho e esfiapado, erguia-se a velha oliveira. Velha foi o apelido que lhe dei na época, por ter sido informado pelos adultos que me cercavam de que ela o era. De facto, enquanto tudo ao redor morrera e fermentara, ela parecia haver crescido em estatura e majestade, talvez roubando a força vital dos seus vizinhos botânicos depauperados, decidida, ao longo de séculos, a sobreviver. Era muito bonita: uma vitória metafórica sobre a adversidade, com cada milímetro do tronco nodoso a exibir orgulhosamente a sua luta. Eu me perguntei porque os seres humanos odeiam o mapa da sua vida que transparece no próprio corpo, enquanto uma árvore como essa, ou uma pintura desbotada, ou uma construção desabitada, quase em ruínas, são enaltecidas pela sua antiguidade.

Pensando nisso, me voltei para a casa e fiquei aliviado ao ver que, pelo menos por fora, Pandora parecia ter sobrevivido ao seu abandono recente. Na entrada principal, tirei do bolso a chave de ferro e abri a porta. Ao percorrer os cómodos na penumbra, protegidos da luz pelas venezianas cerradas, percebi que minhas emoções estavam entorpecidas, e talvez fosse melhor assim. Não me atrevi a começar a sentir coisas, porque esse lugar, talvez mais do que qualquer outro, guarda a essência dela... Meia hora depois, eu já tinha aberto as janelas do térreo e tirado os lençóis de cima dos móveis do salão. Parado numa bruma de partículas de poeira que captavam a luz do sol poente, lembrei-me de ter pensado, na primeira vez em que vi a casa, que tudo parecia muito velho. E me perguntei, ao olhar para as poltronas afundadas e o sofá puído, se, tal como a oliveira, o velho e ultrapassado em certo ponto se torna simplesmente velho, sem continuar a envelhecer de modo visível, como os avós grisalhos para uma criança pequena». In Lucinda Riley, O Segredo de Helena, 2016, Editora IN, 2018, ISBN 978-989-776-064-8.

Cortesia de EIN/JDACT

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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Poesia. «Certo quando o nosso amor desperta logo o sol se desespera e se esconde lá na serra. É Madalena o que é meu não se divide»

Cortesia de wikipedia

Madalena

«É Madalena

O meu peito percebeu

Que o mar é uma gota

Comparado ao pranto meu

 

Certo

Quando o nosso amor desperta

Logo o sol se desespera

 

E se esconde lá na serra

É Madalena

O que é meu não se divide

Nem tão pouco se admite

 

Quem do nosso amor duvide

Até a lua

Se arrisca no palpite

Que o nosso amor existe

Forte ou fraco

Alegre ou triste»

Poema de Ivan Lins e Ronaldo Souza

Cortesia de Wikipedia

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Crónica de uma Serva. Margaret Atwood. «Os Anjos ficavam postados do lado de fora da cerca, de costas para nós. Eram objectos de medo para nós, mas também algo mais»

jdact e cortesia de wikipedia

«Nós dormimos no que outrora havia sido o ginásio desportivo. O soalho era de madeira envernizada, com listas e círculos pintados, para os jogos que antigamente eram disputados ali; os aros para as redes das cestas de basquetebol ainda estavam nos seus lugares, embora as redes tivessem desaparecido. Uma arquibancada cercava o aposento para os espectadores, e imaginei que podia sentir, muito ligeiramente, como uma imagem evocada, o cheiro pungente de suor, mesclado com a doçura latente de goma de mascar e o perfume das garotas assistindo aos jogos vestidas com saias de feltro, como eu tinha visto em fotografias, mais tarde de minissaias, em seguida de calças, depois com um brinco só, os cabelos espetados com mechas pintadas de verde. Bailes teriam sido realizados ali, com sons jamais ouvidos, um estilo seguindo-se ao outro, como subcorrente, uma cadência de tambores, um lamento desesperançado, guirlandas feitas de flores de papel de seda, máscaras de cartolina, uma esfera giratória coberta de espelhos, salpicando os dançarinos com uma neve de luz. Havia sexo antigo naquela sala e solidão, e expectativa, de alguma coisa sem forma nem nome. Lembro-me daquele anseio, por alguma coisa que estava sempre a ponto de acontecer e que nunca era a mesma como não eram as mãos que nos tocavam ali e, naquela época, por trás, bem lá em baixo nas costas, ou lá atrás no estacionamento nos fundos, ou na sala da televisão com o som bem baixinho e as imagens tremeluzindo sobre corpos que se levantavam.

Nós ansiávamos pelo futuro. Como foi que aprendemos isso, aquele talento pela insaciabilidade? Estava no ar; e ainda estava no ar, como uma reflexão posterior, enquanto tentávamos dormir, nos catres do exército que haviam sido dispostos em fileiras, espaçados de modo que não pudéssemos conversar. Tínhamos cobertas, lençóis de flanela de algodão, como as de crianças, e cobertores padrão fabricados para o exército, dos antigos que ainda diziam U.S. Dobrávamos nossas roupas cuidadosamente e as colocávamos sobre os banquinhos aos pés das camas. As luzes eram diminuídas, mas não apagadas. Tia Sara e tia Elizabeth patrulhavam; tinham aguilhões eléctricos de tocar gado suspensos por tiras de seus cintos de couro. Porém, não tinham armas de fogo, nem mesmo elas mereciam confiança para portar armas de fogo. As armas eram para os guardas. Especialmente escolhidos entre os Anjos. Os guardas não tinham permissão para entrar no prédio excepto quando eram chamados, e não tínhamos permissão para sair, excepto para as caminhadas, duas vezes por dia, duas a duas, ao redor do campo de futebol que agora estava cercado por uma cerca reforçada de malha metálica com rolos de arame farpado no alto.

Os Anjos ficavam postados do lado de fora da cerca, de costas para nós. Eram objectos de medo para nós, mas também algo mais. Se ao menos nos olhassem. Se ao menos pudéssemos falar com eles. Alguma coisa poderia ser usada para troca, acreditávamos, algum negócio acertado, algum intercâmbio feito, ainda tínhamos nossos corpos. Essa era a nossa fantasia. Aprendemos a sussurrar quase sem qualquer ruído. Na semiobscuridade podíamos esticar nossos braços, quando as Tias não estavam olhando, e tocar as mãos umas das outras sobre o espaço. Aprendemos a ler lábios, nossas cabeças deitadas coladas às camas, viradas para o lado, observando a boca umas das outras. Dessa maneira trocávamos nomes, de cama em cama: Alma. Janine. Dolores. Moira. June». In Margaret Atwood, Crónica de uma Serva, 1988, Publicações Europa-América, 1988, ISBN 978-972-100-552-5.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

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domingo, 22 de novembro de 2020

Os Pilares da Terra. Ken Follett. «A estranha parecia embaraçada. Tom fitou-a. O menino não parecia com ela de jeito nenhum. Você é a mãe dele?, perguntou. Sim. Meu nome é Ellen»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Desviou os olhos para ocultar seu embaraço e encarou Agnes, que parecia estar ressentida. Onde está o porco?, perguntou ela. Havia dois outros bandidos, disse Tom. Nós batemos neles, interveio Alfred, mas o que estava com o porco fugiu. Agnes fez um jeito triste, mas não falou mais nada. Poderíamos levar a menina para a sombra, se tivermos cuidado, disse a estranha, levantando-se. E Tom viu que era muito baixa, no mínimo um pé menor que ele. Inclinou-se e pegou Martha no colo cuidadosamente. Seu corpinho de criança quase não pesava nada. Carregou-a algumas jardas ao longo da estrada e deitou-a sobre um relvado à sombra de um velho carvalho. Ainda estava totalmente desacordada. Alfred recolhia as ferramentas que tinham se espalhado durante o tumulto. O filho da mulher estranha observava, de olhos arregalados e boca aberta, sem nada dizer. Devia ter uns três anos menos que Alfred, e seu aspecto era peculiar, sem nada da beleza sensual da mãe. Tinha pele muito clara, cabelo alaranjado tirante a ruivo e olhos azuis ligeiramente esbugalhados. Possuía a expressão alerta mas estúpida de uma pessoa obtusa, pensou Tom; o tipo da criança que morre cedo ou cresce para ser o idiota da aldeia. Alfred sentia-se visivelmente sem graça sob seu olhar fixo. Enquanto Tom observava, a criança pegou o serrote da mão do rapaz, sem dizer nada, e examinou-o como se fosse uma coisa assombrosa. Alfred, ofendido pela descortesia, tomou-o de volta, ante a indiferença do menino.

Jack! Comporte-se! A estranha parecia embaraçada. Tom fitou-a. O menino não parecia com ela de jeito nenhum. Você é a mãe dele?, perguntou. Sim. Meu nome é Ellen. Onde está seu marido? Morto. Tom ficou surpreso. Está viajando sozinha?, disse incredulamente. A floresta era bastante perigosa para um homem como ele; uma mulher sozinha dificilmente teria esperanças de sobreviver. Não estamos viajando, disse Ellen. - Nós moramos na floresta. Tom ficou chocado. Quer dizer que vocês são... Ele parou, não querendo ofendê-la. Fora-da-lei, disse ela. Sim. Você pensava que todos os foras-da-lei fossem como Faramond Boca Aberta, que roubou o seu porco? Sim, disse Tom, embora o que quisesse dizer fosse: nunca pensei que um fora-da-lei pudesse ser uma linda mulher. Incapaz de conter a curiosidade, perguntou: qual foi o seu crime? Amaldiçoei um padre, disse ela, desviando o olhar. Não pareceu a Tom um crime de grande monta, mas o padre podia ser muito poderoso, ou susceptível; ou talvez Ellen simplesmente não quisesse dizer a verdade.

Ele olhou para Martha. Um momento depois ela abriu os olhos. Estava confusa e um pouco assustada. Agnes ajoelhou-se ao seu lado. Você está bem, disse ela. Está tudo bem. Martha sentou-se e vomitou. Agnes abraçou-a até que os espasmos passaram. Tom ficou impressionado: a predição de Ellen se concretizara. Do mesmo modo, ela dissera que Martha ficaria boa, e presumivelmente também podia confiar nisso. Sentiu uma onda de alívio invadi-lo, e ficou um pouco surpreso com a força da sua emoção. Eu não ia tolerar a perda da minha filhinha, pensou, e teve que conter as lágrimas. Recebeu um olhar de compreensão de Ellen, e mais uma vez achou que aqueles olhos dourados podiam enxergar seu coração. Ele quebrou um galho de carvalho, arrancou-lhe as folhas e usou-as para esfregar no rosto de Martha. Ela ainda estava pálida. Ela precisa descansar, disse Ellen. Deixe que fique deitada pelo tempo que um homem leva para caminhar cinco quilómetros. Tom deu uma olhada no sol. Ainda restava muita claridade pela frente. Acomodou-se para esperar. Agnes embalava Martha delicadamente. O menino Jack desviou sua atenção para Martha, fitando-a com a mesma intensidade idiota. Tom queria saber mais a respeito de Ellen. Perguntou se a jovem poderia ser persuadida a contar sua história. Não queria que ela fosse embora.

Como foi que tudo veio a acontecer?, perguntou-lhe vagamente. Ela o fitou directo nos olhos outra vez, e então começou a falar. Seu pai era cavaleiro, contou a eles; um homem alto, forte e violento que queria filhos homens com quem pudesse montar, caçar e lutar, companheiros para beber e farrear noite adentro com ele. Nesses assuntos foi o mais infeliz dos homens, pois nasceu Ellen, e logo depois sua esposa morreu; ele se casou de novo, mas sua segunda mulher era estéril, com o tempo, veio a desprezar a madrasta de Ellen, e acabou por mandá-la embora. Devia ter sido um homem cruel, porém nunca parecera assim a Ellen, que o adorava e compartilhava seu desprezo pela segunda mulher. Quando a madrasta saiu, Ellen permaneceu, e cresceu numa casa que era quase que completamente masculina. Cortou o cabelo curto e passou a carregar uma espada, assim como aprendeu a não brigar com gatos ou velhos cães cegos. Na época em que estava com a idade de Martha, cuspia no chão, comia miolo de maçã e dava pontapés na barriga de um cavalo com tanta força que ele prendia a respiração, permitindo-lhe apertar a barrigueira mais um nó. Ela sabia que todos os homens que não fizessem parte do bando do pai eram chamados de chupa-pau, e todas as mulheres que não andassem com eles, rameiras de porcos, embora não estivesse bem segura do que aqueles insultos realmente significavam nem se importasse muito com eles». In Ken Follett, Os Pilares da Terra, 1989, Editorial Presença, 2007, ISBN 978-972-233-788-5.

Cortesia de EPresença/JDACT

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Trigueirinha. Poema. «Trigueirinha acerta o passo no bater do coração atira-me uma cantiga de amor que diga coisas do fado»

Cortesia de wikipedia e jdact

Trigueirinha

«Trigueirinha de olhos verdes

Vê lá se perdes, teu ar trocista

Com tua graça travessa

Perde a cabeça, qualquer fadista

Se és cantadeira de brio

Vem cantar ao desafio, mas toma tino

Não dês um passo mal dado

Porque o teu xaile traçado

Já traçou o meu destino

Bate o fado Trigueirinha

Dá-me agora a tua mão

Trigueirinha acerta o passo

No bater do coração

Bate o fado Trigueirinha

Dá-me agora a tua mão

Trigueirinha acerta o passo

No bater do coração

Atira-me uma cantiga de amor

Que diga coisas do fado

Uma cigana que amava

Como eu gostava, de ser amado

Ao trinar desta guitarra

Se desfez aquela amarra

Que nos prendeu

Que triste fado afinal

Tu é que fizeste o mal

E quem o paga sou eu

Bate o fado trigueirinha

Dá-me agora a tua mão

Trigueirinha acerta o passo

No bater do coração

Bate o fado Trigueirinha

Dá-me agora a tua mão

Trigueirinha acerta o passo

No bater do coração

Bate o fado Trigueirinha

Dá-me agora a tua mão

Trigueirinha acerta o passo

No bater do coração

Bate o fado Trigueirinha

Dá-me agora a tua mão

Trigueirinha acerta o passo

No bater do coração

Bate o fado Trigueirinha

Dá-me agora a tua mão

Trigueirinha acerta o passo

No bater do coração»

Poema de Jorge Fernando

Cortesia de Wikipedia

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