terça-feira, 30 de setembro de 2014

A Bela Poesia. 1957 1971. Obra Poética. Salette Tavares. «Não, não digas que não, eu empurro-te vai ver, depois, existe e fala. Agora não»

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«Sem palavras
gemidos,
sem palavras
lamentos,
sem palavras
gritos,
sem palavras
hospitais,
sem palavras
gritos, lamentos, gemidos,
sem palavras, nada mais.

A lama é sangue
e o olhar
remoto aceno de vida,
moribúndia dolorida.

Deixa o caminho do céu
abstracta comédia de anarquia.
O corredor vai por aqui
e as estrelas são portas,
brancas.
Vais ver que não trocas
os passos.
Lágrimas, sangue
submissão
ó absurdo espanto deste universo de cristos
ignorado,
ali ao lado.
E tu sem saber, só por ouvir dizer!

Não, não digas que não,
eu empurro-te
vai ver, depois, existe
e fala.
Agora não».
Poema de Salette Tavares, in ‘Espelho Cego

In Salette Tavares, Obra Poética, 1957-1971, Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1992.

Cortesia de Aportugueses/JDACT

O Complexo de Culpa do Ocidente. Pascal Bruckner. «… graças a eles tudo se torna claro, o mal passa a ter um rosto e os facínoras são reconhecidos por todos. 'A culpa é biológica, política e metafísica'. E uma vez que já não acreditamos no reino da redenção…»

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Os Propagandistas do Estigma. Os Flagelantes do Mundo Ocidental
«(…) Acreditais num antagonismo radical entre os Estados Unidos e a Al-Qaeda? Como sois infantis são cúmplices. Afinal de contas, o que é o terrorismo? Um simples ajuste de contas entre estados sem escrúpulos, nos quais se inclui a América, que se equivalem: Estaria em curso uma poderosa racionalização, premeditada ou não. Consiste em acusar e difamar estados ditos sem escrúpulos e indiferentes ao direito internacional. Esta racionalização é manobrada pelos estados hegemónicos, encabeçados pelos Estados Unidos, que foram denunciados (por Chomsky, entre outros) há já muito como Rogue States. Aliás, todos os estados soberanos reúnem as condições a priori para abusarem do seu poder e transgredirem o direito internacional, tal como um estado sem escrúpulos. Em todos os estados, há um potencial para a falta de escrúpulos.

A Sede de Punição
Pobre Europa! Hoje tal como ontem, exala um odor fétido a carne putrefacta e o seu Passado contamina o presente como lepra. Inevitavelmente, os sintomas reincidem no presente. Consideremos, por exemplo, as salas de espera onde são retidos os estrangeiros que pedem asilo ou estão em situação irregular. Não são com certeza comparáveis aos campos nazis. Todavia, no seio das sociedades democráticas, partilham certos traços essenciais que definem o paradigma do campo de concentração, ou seja, segundo Giorgio Agamben, são espaços que surgem quando e excepção começa a tornar-se regra (...), são lugares de não-direito. Ora, porque nos espantamos se somos fulminados por um raio e vítimas da cólera dos deuses?
Como ousamos julgar as diversas barbáries que assolam a humanidade, nós que, ao longo da História, demos prova de uma selvajaria sem igual? Pagamos a factura de uma mácula imemorial e somos retroactivamente responsáveis pelos horrores cometidos pelos nossos antepassados ou pelos europeus em geral. É caso para citar o salmista: Purificai-me, ó Deus, pelos pecados que não recordo e perdoai-me pelos dos outros. Admiremos uma vez mais o talento com que é recriada a culpabilidade, reinventada pela classe dos filósofos. Porque ser europeu é carregar um fardo de vícios e torpezas que nos marca como estigma, é reconhecer que o homem branco semeou a morte e a ruína em toda a parte. Para ele, existir é sobretudo desculpar-se.
A ferocidade é branca, como indica a advogada colombiana Rosa Plumelle-Uribe no título do seu livro. É branca e não negra ou vermelha: o homem branco está geneticamente predisposto a matar massacrar e violar e demarcou-se do resto da humanidade para escravizá-la. É mais forte do que ele. A cor da sua pele não é apenas um caso de pigmentação, é um defeito moral, uma falha sem perdão, como explica no seu prefácio à mesma obra o professor Sala-Molins que denuncia a voracidade interesseira (...) das nações brancas cristãs e vê a aventura branca como uma espiral contínua de horror.
O que é afinal o Ocidente? A própria figura de Satã, cuja presença maligna tudo corrompe, uma vez que se dissemina por toda a parte e não conhece limites, e cuja face ora é a de um guerreiro de Papuásia, de um comerciante de tecidos de Cotonou, a de um imã de Qom ora a de um especulador da Bolsa de Londres ou de um operário da Renault. Todo aquele que se faça valer disso é pouco recomendável. É um cenário vertiginoso: a culpabilização do Ocidente permite abarcar a totalidade do real. O europeu e o norte-americano são simultaneamente malditos e indispensáveis: graças a eles tudo se torna claro, o mal passa a ter um rosto e os facínoras são reconhecidos por todos. A culpa é biológica, política e metafísica. E uma vez que já não acreditamos no reino da redenção, tendo em conta que a Ásia, a África e a América Latina abandonaram (provisoriamente?) o seu estatuto de terras redentoras, resta-nos apenas persistir até à náusea neste horror». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.

Cortesia de PEA/JDACT

Inês de Castro. Da Tragédia ao Melodrama. Nair de Nazaré Soares. «...em saindo dos teus braços, ama, na viva flor da minha idade (ou fosse fado seu, ou estrela minha), cos olhos lhe acendi no peito fogo, fogo, que sempre ardeo, e inda arde agora, na primeira viveza inteiro e puro»

Cortesia de wikipedia

Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) A longa rhesis da Castro em que é manifesta a permeabilidade genológica discursiva do modo dramático com os modos lírico e narrativo, com a intenção de reforçar a mensagem e a ambiência trágica, permite, através de rememorações e visões retrospectivas, introduzir o espectador no assunto da peça e caracterizar a protagonista:

Ó ama, amanheceu-me um alvo dia,
dia do meu descanso. Sofre um pouco
repetir de mais alto a minha história...

O enquadramento histórico-simbólico dos antepassados do Infante, os reis de Portugal de quem é desejado herdeiro, elemento diegético tão característico dos romances de cavalaria, ao gosto da época, introduz de forma alusiva a verdadeira dimensão do conflito entre a Razão de Amor e a Razão de Estado. Assim, a caracterização da Castro surge também, nesta fala, em termos que denunciam a contaminatio com a novela sentimental, ou mesmo a écloga dramática, em que Sannazaro era modelo:

...em saindo dos teus braços,
ama, na viva flor da minha idade
(ou fosse fado seu, ou estrela minha),
cos olhos lhe acendi no peito fogo,
fogo, que sempre ardeo, e inda arde agora,
na primeira viveza inteiro e puro.
[…]
Que fará? Se o encobre, então mais queima.
Descobri-lo não quer, nem lhe é honesto.
Mas quem o fogo guardará no seo?
Quem esconderá amor, que em seus sinais,
apesar da vontade, se descobre?
Nos olhos e no rosto chamejava.
Nos meus olhos os seus o descobriam.
Suspira, e geme, e chora a alma cativa,
forçada da brandura e doce força,
sojeita ao cruel jugo, que pesado
a seu desejo sacodir deseja.
Não pode, não convém: a fúria cresce.
Lavra a doce peçonha nas entranhas.
Os homens foge, foge a luz e o dia.
Só passea, só fala, triste cuida.
Castro na boca, Castro na alma, Castro
em toda parte tem ante si presente.

Um amor na flor da idade, topos literário desde Petrarca, justifica, do ponto de vista poético e do direito natural, os erros da paixão. O ethos de heroína de tragédia clássica desenha-se assim com traços nítidos, nesta rhesis da Castro: além da culpa involuntária, enfatiza-se a sua alta linhagem, que não desmerece a do seu Infante:

Da antiga casa Castro em toda Espanha,
já dantes do real ceptro deste reino
por grande conhecida, inda meu sangue
do real sangue seu tinha grã parte.

Ferreira, ao descurar os dados históricos, confere verosimilhança a este amor primeiro de Inês e Pedro e envolve em lirismo e idealidade a heroína trágica, donna angelicata dos códigos temático-ideológicos stilnuovista e petrarquista. A figura de Inês surge projectada, desde o início, num cenário idílico de toada elegíaca, que faz lembrar o Ovídio mais cenográfico das Heroides. O longo enquadramento descritivo numa situação narrativa, na sua dupla funcionalidade de catálise ornamental e significativa, deixa perceber o conflito: a tragédia de caracteres, que nasce da diversidade de atitudes individuais quanto à legitimidade da morte da jovem Inês ou, o mesmo será dizer, quanto à legitimidade do seu amor». In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT

Philosophari placet sed pavcis. Nair Nazaré Soares. «O legado da cultura grega no mundo romano e o génio da sua reelaboração nos autores latinos, da República ao Império, deixaram marcas indeléveis na cultura ocidental, de que o Humanismo Renascentista é o afloramento mais expressivo»

Cortesia de wikipedia

Philosophari placet, sed pavcis
«O processo da evolução espiritual do homem do Renascimento e as novas experiências culturais e humanas, em que se realiza, participam, de forma intrínseca, da mundividência da Antiguidade Clássica e dos valores ético-políticos que a sustentam. A Idade Média não tinha conhecido a República de Platão: o pensamento do filósofo era divulgado apenas através de compendia. A descoberta da Política de Aristóteles dá-se no século XIII. A obra de Diógenes Laércio, que ilustra todas as escolas filosóficas antigas, é encontrada nos primeiros anos de Quatrocentos. Os humanistas italianos dos alvores do Renascimento abandonam o Aristóteles lógico e físico, símbolo da barbárie estilística medieval, e procuram na filosofia uma finalidade profundamente humana e um conteúdo mais vasto, que pudesse abarcar motivos político-morais e os problemas da vida concreta da sociedade do tempo. Este distanciamento do formalismo escolástico coincide com a reabilitação do neoplatonismo. Ε sem dúvida através do platonismo, configurado com o cristianismo, a ética aristotélica, ou mesmo com a tradição hermética e cabalística, que os conceitos do saber medieval vão ser alvo de renovação, em figuras como Petrarca, Pier Paolo Vergerio, Lorenzo Valla, Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola.
Apesar disso, não há solução de continuidade entre o Humanismo Renascentista e a Época Medieval. Basta considerarmos o período carolíngio e o designado Renascimento dos séculos XII e XIII. No decurso de longos períodos, as ideias evoluem lentamente. Se é impossível encerrar dentro de regras fixas o fervilhar das ideias novas que se defrontam, ou equacionam de forma diferente ou paralela, com o espírito medieval, numerosas são as perspectivas que reflectem uma gradual evolução de pensamento ou uma mera repetição de motivos, de lugares, comuns, transmitidos inconscientemente de autor em autor. O legado da cultura grega no mundo romano e o génio da sua reelaboração nos autores latinos, da República ao Império, que a Patrística assimila, deixaram marcas indeléveis na cultura ocidental, de que o Humanismo Renascentista é o afloramento mais expressivo.
A língua do Lácio, que Lorenzo Valla, nas Elegantiae linguae Latinae, pretende ver dignificada, ao propor um ideal de estilo, capaz de conferir dignidade e beleza ao discurso, assume-se como veículo de comunicação no mundo culto e meio privilegiado de expressão da consciência humanística. A par do latim, o grego e o hebraico tornam-se instrumentos indispensáveis ao conhecimento da Antiguidade e dos textos bíblicos, aos ideais filológicos e exegéticos do movimento humanista. A divulgação do saber clássico tem um apoio inestimável na tradução, a partir do século XV, a que deu grande impulso o papa Nicolau V, fundador da Biblioteca Vaticana. Expressiva é, nesta mesma linha, a produção literária dos nossos príncipes de Avis, que deram a maior importância à tradução dos clássicos em linguajem. Os autores gregos eram agora divulgados em latim pelas traduções de humanistas de renome, em que se destacam as de Leonardo Bruni e Marsilio Ficino. O valor e significado destas traduções na orientação cultural e espiritual do movimento humanista, que se afirmava em Itália, são verdadeiramente notáveis. Basta lembrarmos, por exemplo, a afirmação do neoplatonismo na Academia platónica florentina, que nasceu do conhecimento aprofundado da obra de Platão, que as versões de Marsilio Ficino, feitas sob a égide de Lorenzo de Médicis, propiciaram. Ou o afloramento do averroismo paduano, que teve como suporte as traduções de humanistas, como Leonardo Bruni, à obra de Aristóteles, e conheceu em Pomponazzi, no século XVI, o seu principal defensor. Ou ainda a difusão do neo-estoicismo, favorecida pela versão latina do Manual de Epicteto da autoria de Angelo Poliziano». In Nair de Nazaré Castro Soares, Philosophari placet sed pavcis, Universidade de Coimbra, Revista Hvmanitas, volume L, 1998.

Cortesia de U.Coimbra/JDACT

As Artes de Prometeu. A Poética da Tragédia Sofocliana. Marta Várzeas. «No século do seu florescimento, a especificidade desta nova forma de expressão poética, diferente da Narrativa e da Lírica que até então haviam preenchido o espaço daquilo a que os gregos chamavam “as artes das Musas”»

Cortesia de wikipedia

«(…) Quanto às Musas, um facto bem diverso é de salientar neste contexto. É que é a elas que o autor da Ilíada invoca quando quer encetar uma daquelas longas enumerações a que chamamos catálogos. A mais extensa e importante das quatro é aquela por que se inicia a lista dos contingentes de guerreiros que tinham avançado para Tróia, por isso mesmo conhecido como o Catálogo das Naus: Dizei-me agora, ó Musas habitantes do Olimpo, - pois vós sois deusas, estais presentes e tudo sabeis, ao passo que nós só ouvimos o que diz a fama, e nada vimos - quais os chefes e soberanos dos Dânaos. Poderíamos continuar indefinidamente com exemplos, colhidos através dos tempos, sobre a relação das filhas de Mnemósine com a inspiração do poeta. Agora apenas tentámos demonstrar que somos dos que entendem, ao contrário de Griffith, que muito antes do século V a.C. já a escrita era tida como a fonte da memória, se realmente, como as investigações mais recentes e mais autorizadas parecem indicar, desde a primeira metade do século VIII a.C. ela tinha servido para consignar e estruturar, nas duas longas epopeias fundadoras, uma tradição oral em volta dos heróis da Guerra de Tróia, que atravessara toda a Idade Obscura, desde o colapso da civilização micénica até ao que hoje se apelida de renascimento que marca o começo da Época Arcaica. E com isto voltamos às artes de Prometeu, o herói cultural que tirara os homens da obscuridade em que viviam, no tempo em que olhavam sem ver, ouviam sem escutar, para os erguer ao domínio da natureza e à posse da sabedoria. As artes e as técnicas sucedem-se e, no meio delas, brilham com especial fulgor o número, cúpula do saber e o trabalho criador das Musas. É reconfortante, nestes tempos em que vivemos, este elogio do papel axial das Ciências e das Letras como esteio indestrutível do progresso da Humanidade». In Maria Helena Pereira, As combinações com as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador das Musas.

A poética da tragédia sofocliana
«Quando Isócrates, no Panegírico, critica a facilidade com que os atenienses se deixam comover pelas ficções dos poetas, ao passo que se mostram insensíveis perante as desgraças reais em que a Hélade se encontra, refere um dos efeitos que Aristóteles dará como característico da Tragédia, compaixão. A censura pressupõe o reconhecimento da força emocional da Poesia, uma ideia com fundas raízes na tradição grega desde Homero, mas para cuja teorização estética muito contribuiu o surgimento e evolução do teatro trágico no século V em Atenas. Era nele, provavelmente, que Isócrates pensava, ao dizer estas palavras, não só porque a poesia dramática continuou a gozar de um enorme prestígio, dentro e fora de Atenas, ao longo do século IV, muitas vezes com a reposição de peças dos grandes trágicos entretanto desaparecidos; mas também porque, em termos de efeitos emocionais, a tragédia ganhava a palma aos outros géneros literários.
No século do seu florescimento, a especificidade desta nova forma de expressão poética, diferente da Narrativa e da Lírica que até então haviam preenchido o espaço daquilo a que os gregos chamavam as artes das Musas, veio abrir novas vias de reflexão à polémica já antiga acerca do valor da Poesia enquanto discurso didáctico no contexto da pólis. Com o teatro tornava-se possível, se não ultrapassar completamente, pelo menos questionar a validade da aplicação ética da dicotomia verdade / falsidade às apreciações sobre a criação dos poetas que, desde Hesíodo, se instituíra como principal critério para a aferição da melhor poesia. O teatro partia do pressuposto óbvio e assumido de que a representação era isso mesmo, representação, falsidade, portanto. Isso, porém, não significava qualquer demissão dos poetas relativamente ao seu ancestral papel pedagógico na pólis. Nunca a poesia deixou de afirmar o seu valor intrínseco, enquanto saber formativo de um ideal de homem que, como muito bem demonstrou Werner Jaeger, foi sempre o objectivo último da Paideia grega. A comédia As Rãs de Aristófanes, do final do século V, é um eloquente testemunho, ainda que caricatural, de que esse desígnio didáctico, na perspectiva de dois dos maiores representantes do género trágico, Ésquilo e Eurípides, continuava a ser sentido como a verdadeira missão do poeta. E os ataques de Platão à Poesia na República mais não são do que a proposta de substituição desse anterior modelo pedagógico, assente na aprendizagem dos poetas, por um outro, em que a filosofia deveria assumir-se como discurso dominante». In Maria Helena Rocha Pereira, As Artes de Prometeu, As combinações com as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador das Musas. In Marta Várzeas, A Poética da Tragédia Sofocliana, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A Menina Boba. Poemas. O Amor. Oneyda Alvarenga. «Comecei a entender o amor da vida amando-a simples e natural, com a violência, a destreza; a nudez de uma índia no verde do mato-virgem escandalizando a civilização»

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A Menina Boba
«Queimada pelo sol, desvairada
de perfume e de luz
correr…

Correr
impelida pelo ritmo sadio,
harmonioso,
dos meus músculos, dos meus nervos
de vinte anos…

Correr
grito errante e triunfal
da vida
até cair
queimada pelo sol, desvairada
de perfume e de luz…

Amor novo da vida que desperta em mim.
Puro como o ar que respiro,
duro como o sol que bate no meu corpo.

Glória de sorver seiva e deslumbramento
pela porta ensolarada dos meus cinco sentidos.


Comecei a entender o amor da vida
amando-a
simples e natural,
com a violência, a destreza;
a nudez de uma índia
no verde do mato-virgem
escandalizando a civilização.

Vento que corropia
arrepiando volúpias pelo ar…

… Braços que me enlaçassem,
beijos que me beijassem
loucos…

Assobia, corropia,
rasga o vento...

Óh! Seiva que trimultua no meu corpo!»
Poema de Oneyda Alvarenga, in ‘A Menina Boba

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A Hora Universal dos Portugueses. Pedro Veiga. «Por um lado, enquanto definha a exploração da terra, fenómeno que em Portugal já se começa a sentir a partir de Afonso IV, sendo impotentes as leis fernandinas (Leis das Sesmarias) para debelar a crise, acentua-se e progride o intercâmbio…»

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«(…) Passe, por isso, em julgado, que com a crise mística das Cruzadas, a Europa procura restabelecer o equilíbrio na sua vida económica, operando-se então um profundo movimento político e social com base na translação dos valores económicos, daí resultando a subversão da riqueza imobiliária, representada pelos domínios senhoriais, e a criação de novo expoente económico: o metal amoedado e a letra de câmbio. O dinheiro domina o ritmo vital da idade e nascer. Novos horizontes se abrem ao homem; a uma nova conformação vai, por sua vez, obedecer a ordem social afirmei no meu ensaio sobre a Civilização Burguesa. E assim foi de facto.
Preparada nesse imenso crisol que e Idade Média foi, a Burguesia, que o comércio e a indústria, a política financeira dos judeus e a decadência da aristocracia fundiária e militar, elevara ao primeiro plano da vida civil; ia dirigir os destinos da Europa até aos nossos dias, e ia, fundindo os seus interesses com a essência da Civilização Cristã, escrever toda a história universal com a quilha das naus, a palavra dos missionários, as alabardas dos tércios, os dogmas da autoridade do Estado, as liberdades da Razão e a epopeia incendiária da Revolução, ia escrever, acentuo de novo, os fastos da história contemporânea, com a sua vontade revolucionária, porque, servindo os interesses da Civilização, a intervenção da Burguesia como classe organizada na vida social marca na Europa a maior revolução depois do cristianismo e da constituição hierárquica da Igreja. Agora quero eu frisar um estranho paradoxo histórico. Particularista a civilização aristocrática da Idade Média não concebeu um ideal que possamos designar como nacional. Teve outros, decerto, o mais alto dos quais foi inspirado pelo fervor religioso. Mas basta considerar a pulverização da soberania política, o estádio de conglomeração episódica que formava a rede política do feudalismo, para podermos definir a Europa cristã como um conjunto amorfo de soberanias pessoais, uma comunidade aristocrática dominada pela autoridade temporal e espiritual do papado.
Duma maneira só, verdadeira Respublica Christiano, na linguagem dos teólogos e dos jurisconsultos, na qual a soberania régia e o poder episcopal dos bispos, na sociedade civil e na eclesiástica, em princípio, se reconheciam equiparados perante a suprema autoridade do Vigário de Cristo. O papa encarnava a noção muçulmana de Califa. O papa era a cúpula da Igreja no espiritual e no temporal, fórmula percursora do super-estado que os idealistas demandam com afã no horizonte nebuloso. Como aquele  assegurava a unidade religiosa e proclamava a guerra de Deus contra os inimigos do seu nome. A Idade Média tendia para a Teocracia e foi a Revolução Burguesa que a destruiu com o seu conceito de nação e a formação do Estado Moderno. A história surpreende na obtenção pela Burguesia do poder económico e na sua crescente hegemonia política um duplo e contraditório efeito. Por um lado, enquanto definha a exploração da terra, fenómeno que em Portugal já se começa a sentir a partir de Afonso IV, sendo impotentes as leis fernandinas (Leis das Sesmarias) para debelar a crise, acentua-se e progride o intercâmbio comercial europeu e, em especial, o que com o Próximo Oriente mantinham depois das Cruzadas as armadas das poderosas Repúblicas marítimas italianas. Daqui resulta uma tendência cosmopolita mais que nenhuma outra capital na explicação da história portuguesa». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.

Cortesia de T.Sequeira/JDACT

In Memoriam. Alice F. Falcão Oliveira. Guilherme Oliveira. «Como menina queria receber carinhos; como senhora ansiava por amor; e como artista sentia as dores pungentes da vida e era sensível a beleza que procurava e criava. Não podia ficar satisfeita só com carinho, amor ou beleza»

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Com a devida vénia a Guilherme de Oliveira

À memória da minha querida Alice
«(…) Ali estava na minha frente a criança travessa e amiga de guloseimas que espera que os grandes, lhe dêem bombons. Vista de perto parecia uma figurinha de cera, pequenina, quebradiça e lábil. A vida dela estava toda nos belos e grandes olhos e na voz estranha, plástica e quente. O encanto dos olhos e a doçura da voz encobriam todo o seu ser; nada mais interessava conhecer-lhe; era toda espiritualidade contida num corpo que seria belo mas para cuja apreciação não havia lugar porque, o brilho do seu espírito e a candura da sua alma nos guiavam por caminhos de beleza e de bondade. O que me surpreendeu logo, no início das nossas relações, foi o colorido magoado e triste da sua alegria decerto comunicativa e o grau de integração afectiva do seu carácter rico de qualidades e de harmonias. Falava como uma criança, sem preconceitos, clara, directa e ingénua; mas o conteúdo psicológico das suas palavras simples e expontâneas era rico de ideias e de beleza. Tinha alma de criança, coração de mulher e espírito de artista. Por isso a sua alegria era franca, consciente e perturbada: quando a criança ria, a mulher reflectia e a artista sofria. O conjunto destas ressonâncias interiores tão diferentes tinha um colorido inocente, quer ela risse, quer chorasse, porque também a sua tristeza era salpicada de tons leves que se destacavam da camada infantil da sua personalidade. Quem a olhasse distraído das profundezas do seu ser diria que ela era azougada e feliz. Porém os que, como eu, a observassem com interesse e ternura, depressa reconheciam que a sua vida interior tinha recessos torturados por desconsolos profundos e por anseios insatisfeitos. A razão destas desarmonias estava na diferença constitucional dos seus pendores que ora a solicitavam para um caminho, ora para outro.
Como menina queria receber carinhos; como senhora ansiava por amor; e como artista sentia as dores pungentes da vida e era sensível a beleza que procurava e criava. Não podia ficar satisfeita só com carinho, amor ou beleza. Para a realização completa de todas as aspirações da sua mentalidade superior e polimorfa, ela precisava de carinho, de amor e de beleza e tinha que ser sempre menina, senhora e artista. Criança, corria atrás de quimeras douradas, olhava atónita os homens e as coisas, colhia flores, corria pelos caminhos, brincava com a lua e pedia as estrelas, e queria ser amimada e embalada ao som de canções e de histórias maravilhosas. Todas as coisas do mundo a surpreendiam, a alegravam, atemorizavam ou lhe causavam uma admiração pasmada que se exprimia nos seus belos e grandes olhos muito abertos e parados de espanto. As pequenas como as grandes contrariedades faziam-lhe correr lágrimas grossas e silenciosas e levavam-na a refugiar-se nos braços das pessoas grandes que a amassem ou, na falta destas, no silêncio do seu quarto onde soluçava no desespero da solidão e da mágoa. Tinha que ser amada e acarinhada como uma criança, a minha pobre Alice!
Mas se o que existia nela de criança exigia ternura e satisfação de pequeninas vontades, a senhora erguia-se de entre a personalidade infantil e mostrava-se com todo o brilho e grandeza da maturação perfeita. Então era vê-la calma, corajosa, senhora de si, a resolver os problemas da vida, a amparar amorosamente os que precisavam do seu carinho, do seu amor ou do seu auxílio. De súbito tudo se transformava nela, e era ela agora que animava, que acarinhava os grandes, despertando neles a camada infantil que existe em todos os adultos, só velada pela educação e pela cultura. Ninguém se podia furtar ao consolo de ser criança sob a acção da sua presença apaixonante e carinhosa». In Guilherme de Oliveira, Memoriam, Alice Freire Falcão Oliveira, 1921-1947, Tipografia Atlântida, Coimbra, 1949.

Cortesia de T.Atlântida/JDACT

La Ordem del Temple. Breve Historia. José Luis Corral. «... entre los siglos XI y XII en Europa se fueron asentando los nuevos reinos: Inglaterra, Francia, el Imperio romano-germánico, los reinos hispánicos, los Estados de la Corona de Aragón, Navarra, Castilla y León y Portugal»

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En el origen de las Cruzadas (1095-1119). El despertar de Europa
«(…) Durante ese medio milenio los reinos de la cristiandad occidental resistieron todos los envites, mantuvieron sus creencias cristianas y lograron imponer su cultura y su religión a normandos y magiares, que acabaron convirtiéndose al cristianismo a fines del siglo X y asumiendo sus modos políticos y sociales. Con el islam fue diferente. Superiores en cultura y en formas de civilización al haber sabido sintetizar y aprender las aportaciones culturales de los imperios conquistados, los musulmanes mantuvieron sus postulados religiosos y su identidad. La falta de unidad del islam, la pérdida de su impulso fundacional y la lenta recuperación, a la vez que la voluntad de resistencia, de los pequeños reinos cristianos de la Península Ibérica dieron lugar a un largo período de estabilidad de fronteras con el mundo cristiano que se concretó en una línea estable y sólida que desde el valle del Duero atravesaba toda la Península hasta el piedemonte del Pirineo y de allí a las islas Baleares y Sicilia, y más allá del Mediterráneo al sur de Anatolia y a Armenia. Y así se mantuvo desde mediados del siglo VIII hasta mediados del siglo XI. Superada la época de las llamadas segundas invasiones (musulmanas, normandas y magiares), asimilados en lo social, lo económico, lo cultural y lo religioso los vikingos y los húngaros, y mantenidos a raya los musulmanes, los reinos cristianos de Occidente pudieron al fin vislumbrar tiempos menos convulsos. Durante el siglo XI el Occidente cristiano comenzó a salir del largo y oscuro período que caracterizó buena parte de la Alta Edad Media y que ha sido denominado en algunas ocasiones como las Épocas Oscuras.
A ello no fue ajeno el nuevo modelo socioeconómico que se había venido configurando desde fines del mundo romano y que se concretó en el feudalismo. En efecto, la descomposición del poder centralizado y su sustitución por los poderes locales, feudales, en suma, no generó un gran Estado capaz de recoger la herencia romana, pero esa multiplicación de los centros de poder fue un factor que contribuyó decisivamente al triunfo del modelo feudal. Un gran imperio, aparentemente sólido y estable, puede ser aniquilado de un plumazo por otro más poderoso o más ágil, como le ocurrió a los persas sasánidas con los musulmanes, pero acabar con todo un conglomerado de reinos, principados y Estados feudales parece mucho más difícil. Sin duda, la atomización del poder y de sus centros de control en Europa occidental en la Alta Edad Media fue uno de los pilares de su supervivencia. Entre tanto, la Iglesia, que había logrado mantener en condicio nes aceptables su red de obispados y su poderosa influencia social, se regeneró merced a la reforma impulsada por el papa Gregorio VII (1073-1085) y ganó prestigio y espacios de influencia social y política. No en vano había sido la única institución que, pese a tantos problemas, se había mantenido firme y unida hasta entonces. Al abrigo de esta nueva situación, la transformación de Europa occidental comenzó a ser patente. La economía y el comercio florecieron, se abrieron nuevos mercados, surgieron talleres artesanales, las ciudades crecieron, la agricultura se desarrolló ganando espacio a los bosques y a las marismas y multiplicando la producción, y los Estados lograron establecer nuevas formas políticas en torno a dinastías reales que se consolidaron. Tras varias centurias de descomposición política y caos social, entre los siglos XI y XII en Europa se fueron asentando los nuevos reinos: Inglaterra, Francia, el Imperio romano-germánico, los reinos hispánicos (los Estados de la Corona de Aragón, Navarra, Castilla y León y Portugal).
Semejante crecimiento económico y un desarrollo social concretado en la aparición de una incipiente burguesía impulsaron a toda la sociedad a un despegue generalizado: las ciudades duplicaron e incluso triplicaron su extensión, siendo necesario construir nuevos barrios para acoger a la creciente población, la construcción disfrutó de un auge inusitado y los ya grandes templos románicos de la primera mitad del siglo XII fueron sustituidos por las todavía más grandes catedrales del nuevo estilo gótico, que encarnó el triunfo de la cristiandad en el siglo XIII. Nunca hasta esa época la cristiandad de Occidente había disfrutado de una bonanza similar. La misma Iglesia participó de esta situación y contempló cómo se multiplicaron las órdenes monásticas y se fundaron monasterios, conventos y parroquias por todas partes. Los siglos XII y XIII fueron los de la gran expansión de Europa. Desde el siglo II, el de mayor apogeo del Imperio romano, Occidente no había vuelto a vivir una situación tan bonancible, y por ello los dirigentes políticos y religiosos se creyeron en condiciones de ir más allá de lo que habían heredado. En la Península Ibérica, los reinos cristianos del norte se lanzaron a la conquista del territorio musulmán del sur; en el centro de Europa, los alemanes avanzaron hacia el este en un proceso a la vez colonizador y cristianizador, y ante estos primeros grandes triunfos se despertó tal euforia que se vio factible la realización de un viejo sueño: la conquista de la perdida Tierra Santa y la recuperación de los Santos Lugares, aquellos en los que Cristo había nacido, predicado la buena nueva y muerto». In José Luis Corral, Breve Historia de la Ordem del Temple, Edhasa, Ensayo Editora, 2006, ISBN 978-84-350-2684-0.

Cortesia de Ensayo/JDACT

domingo, 28 de setembro de 2014

A Hora Universal dos Portugueses. Pedro Veiga. «De pedra solta, pau e colmo era a habitação dos rústicos, poucas resistiriam, por isso, aos vendavais da História, mas o seu tipo manteve-se nos lugares alheios à Civilização, e o arcaico das suas linhas a cada passo nos transporta para o fundo das Idades»

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«(…) Território escasso, mal povoado. Nas fozes dos rios principais: o burgo do Porto, terra altiva de mercadores e mesteirais de foral, e Lisboa, princesa sarracena decaída da antiga glória, até que as naus das descobertas de novo a nimbaram de oiro. Neles e em Coimbra, Braga e Guimarães e Évora e Lamego, cidades antigas por cujas calçadas passaram os ginetes invasores, despertam os primeiros indícios da vida civil: municipalismo e artesanato. Uma vida urbana incipiente à sombra da Igreja e dos homens de boa linhagem. Em ruelas estreitas, empinadas e disformes, uma multidão anónima mercadeja e trabalha. De madeira ou granito, janelas rotuladas à moirisca ou de friestas mediévicas, portas em arco; gradeamentos de ferro batido, alpendres e sacadas de colunas, tectos forrados em caixotões, eis as habitações coevas do homem medieval. Aqui e acolá um terreiro espaçoso servia de mercado e praça pública como hoje em dia. Longas fiadas de arcarias serviam de fundo à multidão. Ruas cobertas, cortadas de arcos movimentavam a arquitectura rude. Lajeado irregular calçava as ruelas. Longos panos de muralha esquinados de castelos protegiam a povoação. Ao descer do dia cerravam-se as portas e nos nichos e cruzeiros votiva luz iluminava as obras sacras dos imaginários. O melhor lavor de pedra e os maiores cuidados na fábrica se ofereciam a Deus e pela terra cristã, as casas de devoção eram um grito de Fé, e tantas vezes hospício dos pobres e asilo dos perseguidos da Justiça.
Alinhavam-se as profissões por ruas e, sob os auspícios da Igreja, nasciam no nosso país as corporações dos mesteirais que mais tarde, em tempos de el-Rei João I, seriam poder público. Povoada de castelos era a terra de Portugal. Serviam de paço aos nobres senhores dos contos e honras mas os mais numerosos demarcavam a raia e sucediam-se em linhas sobrepostas por essas colinas além, à medida que o montante e a besta retomavam para e cruz as terras estremenhas. Eram vigias e aos monges militares cabia, em regra, sua defesa. Serviam também de refúgio aos servos e vilões quando algara moirisca pela Primavera e Estio, como furacão devassador, rompia pelas chácaras e terras de lavradio.
De pedra solta, pau e colmo era a habitação dos rústicos, poucas resistiriam, por isso, aos vendavais da História, mas o seu tipo manteve-se nos lugares alheios à Civilização, e o arcaico das suas linhas a cada passo nos transporta para o fundo das Idades. Do que da terra brotava pelo humano esforço da grei, vivia esta sociedade rudimentar, afeita ao rude esforço da relha e ao bravio lidar das armas. Daí essa nossa nobreza antiga apegada ao torrão, lhana e vigorosa, que na própria terra que recebeu de mercê das mãos dos seus Reis, mergulhava a raiz dos seus privilégios de classe e da sua ascendência social. Aqui, a Nobreza desempenhou uma função social enquanto foi para o camponês e abegão o senhor que o defendia da usura e da depredação e, nas suas querelas, simbolizava o princípio da autoridade Quem arredar de si na exegese da História a análise dos factos económicos, pode ser um político que quer encontrar na lição dos tempos idos um índice de valores normativos jamais um homem isento de emoções passionais. Faz da História um acto de apostolado e Fé, não um cosmorama das realidades humanas. Um sectário, nunca um humanista.
Na Europa o movimento das cruzadas obedece a uma corrente proselítica, a um imenso arrebol de Fé? Decerto. Mas obedeceu também a outras causas, preparadas subterraneamente nas camadas da infra-estrutura económica do Ocidente. Era oportuno alongar-nos algo sobre a economia europeia contemporânea das Cruzadas e do chômage que afligia a aristocracia militar. Isso afastar-nos-ia, porém, da directriz tracejada: o momento único na História em que todas as forças da civilização se concentraram no homem português que singrava os mares, descobria os continentes, combatia os Turcos, propagava a Fé, detinha os segredos dos oceanos e os grossos cabedais do tráfico oriental, abordava as longínquas paragens do Extremo Oriente e se afoitava, seguro, a circumnavegar o globo». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.

Cortesia de T.Sequeira/JDACT

A Política Externa Portuguesa e a Aliança Defensiva de 1799 com a Rússia. Castro Brandão. «Espanha e Inglaterra aproximavam-se com rapidez e, apesar das divergências, julgavam poder associar-se para breve acção comum. Duas razões principais estimularam a aliança entre os dois países e a quebra das respectivas neutralidades»

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Elementos para a História Diplomática Portuguesa
«(…) Assim acontece com os países analisados. A Espanha de Godoy estremeceu com a execução do Bourbon. A proximidade do parentesco entre as duas casas reinantes explica, para além do mais, a repulsa que a decisão da República provocara. A Inglaterra, por seu turno, a despeito das suas tendências conciliatórias, manifestou-se visivelmente impressionada e sobremaneira inquieta com a crescente agressividade da França. Esta razão, acima de qualquer outra, decidirá o pacifista Pitt a lançar-se na guerra. De Lisboa, mesmo na iminência de uma ruptura franco-britânica, aconselha-se João de Melo Castro, nosso embaixador em Londres, a ganhar todo o tempo que nos for possível, e a não nos comprometermos enquanto não formos formalmente e directamente requeridos. A fraqueza de um pequeno país impunha toda a cautela como garantia da sua própria sobrevivência. A espera não foi longa e nem permitiu ganhar tempo. Espanha e Inglaterra aproximavam-se com rapidez e, apesar das divergências no ultramar, julgavam poder associar-se para breve acção comum. Duas razões principais estimularam a aliança entre os dois países e a quebra das respectivas neutralidades. Na origem foram aparentemente semelhantes: o trágico fim da monarquia francesa; na essência tinham, contudo, uma ordem de valores bem diversa. Madrid acusava uma reacção lógica à sorte de Luís XVI. Londres preocupava-se com o expansionismo francês e temia o proselitismo manifestado pela República. De sorte que, alimentados por uma ocasional convergência de objectivos, puderam esquecer, momentaneamente, antigas rivalidades ainda há pouco avivadas pela questão de Nootka-Sound (em Abril de 1789, na costa da Califórnia, junto ao porto de São Lourenço, foi apresada pelos espanhóis uma frota inglesa que transportava colonos para se estabelecerem em Nootka Sound; o caso deu origem a grave diferendo entre as duas cortes, para cuja solução foi chamada a intervir a coroa portuguesa).
Era, pois, nesta contextura que se teria de definir a posição portuguesa. Como já dissemos, haviam-se malogrado as tentativas feitas por Sousa Coutinho para uma tríplice aliança, Das muitas causas do insucesso, temos, sobretudo, o fraco poder militar que oferecíamos em troca de um compromisso com demasiadas obrigações. Pela nossa parte, é bem compreensível a insistência do Secretário de Estado. Aliados os dois grandes rivais contra a França, nada tínhamos a perder, mas tudo a ganhar. A participação trazia-nos a segurança de uma força superior e os benefícios de uma vitória conjunta. Na mesma base preservávamos a integridade territorial das tradicionais cobiças de ingleses e espanhóis, neutralizando, simultaneamente, o Pacto de Família ainda em vigor. Agora, porém, os termos eram outros e as situações bem diversas. A época dos neutros terminara e em seu lugar abria-se o espaço para o conflito declarado. Em face da hostilidade crescente que nascia à sua volta, a Convenção decidiu defender-se atacando. No dia 1 de Fevereiro de 1793 rompe com a Inglaterra e a Holanda e a 7 de Março toma idêntica atitude relativamente à Espanha. Para a diplomacia portuguesa encetava-se uma nova fase, onde só a prudência e a habilidade podiam intervir. Em rigor não estávamos envolvidos na guerra, mas apenas ligados à Grã-Bretanha e à Espanha pelos Tratados anteriores. Nesses princípios se apoiou Luís Pinto para articular a sua política, buscando numa participação auxiliar a chave de defesa a um isolacionismo perigoso e pouco viável pelas constantes pressões de Londres e Madrid». In Fernando Castro Brandão, A Política Externa Portuguesa e a Aliança Defensiva de 1799 com a Rússia, Elementos para a História Diplomática Portuguesa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, INCM, Lisboa, 1974.

Cortesia da INCM/JDACT