quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal. O Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «… terá sido em Dezembro de 1447, em Valladolid, quando o rei Juan II de Castela encontrou em dona Isabel a beleza e talvez o amor que nunca viu na sua primeira esposa…»

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Metida no Mosteiro de Santa Domingo de Toledo
«(…) O regente acompanharia imediatamente dona Isabel de Portugal a Pinhel, vila onde se procedeu à entrega da nova rainha de Castela aos enviados do respectivo esposo. É muito provável que tivesse sido nessa altura que os castelhanos entregaram a infanta Joana ao regente. Na realidade, Pedro não se dirigiu imediatamente ao ducado de Coimbra, mas a Lisboa, onde chegaria em finais de Julho de 1447 talvez com a finalidade de entregar pessoalmente a pequena exilada ao irmão, o rei Afonso V que estaria ansioso por voltar a ver a irmã, depois de sete anos de ausência. Como afirma um biógrafo de Enrique IV, pode tratar-se de uma simples coincidência, mas é digno de registo que, precisamente no Verão de 1447, encontremos a primeira notícia de um plano concebido por Juan Pacheco para conseguir um acordo matrimonial do príncipe com a infanta Joana de Portugal, que, como irmã de Afonso V estava muito mais próxima do trono que a sua prima. Documentos posteriores provam a existência de contactos entre o rei Afonso V de Portugal e o mordomo-mor do príncipe das Astúrias, tendo como motivo esse casamento.

Uma carta escrita pela minha mão
De volta a Lisboa, dona Joana foi viver com a irmã, a infanta dona Catarina, que então tinha onze anos e residia num casarão que mais tarde seria conhecido pelo nome de paço de São Bartolomeu. Um edifício situado entre o castelo e o bairro árabe da cidade, propriedade havia muito mais de século e meio da família da aia da infanta dona Catarina, dona Maria Nogueira, nobre mulher de cerca de cinquenta anos, viúva de um antigo camareiro-mor do infante Henrique ao cuidado de quem também ficaria a infanta recém-chegada. Curiosamente, pouco depois do seu regresso começaram a ocorrer em Lisboa manifestações de desconfiança pública contra o regente por parte de personagens muito próximas do rei. Segundo as crónicas, alguns membros da casa do duque de Bragança aproveitaram as audiências privadas com Afonso V para o encher com informações pouco abonatórias acerca do infante. Afirmavam que o infante Pedro devia devolver os poderes régios ao monarca, uma vez que este já tinha feito quinze anos.
Um procurador próximo do duque de Coimbra atalhou essas reclamações dizendo que, apesar de o rei ter alcançado a maioridade legal, ainda não estava preparado para dirigir o reino. Observação que seria muito criticada pelo arcebispo de Lisboa, Pedro Noronha, tio-avô do monarca que, pela sua respeitável idade, exercia uma grande influência sobre um jovem definido por um cronista contemporâneo como de vontade mole. Fora através do arcebispo, segundo Rui Pina, que o influenciável Afonso V descobrira que alguem estava por tras da terrivel maquinaçao que levara sua mae a exilarse en Castela. Por ironia do destino, enquanto em Portugal se tentava minar a credibilidade política do Regente, nesse cargo depois de ter conseguido vencer a cunhada numa luta de poder nascida da oposição da rainha para que Afonso V se casasse com a sua prima dona Isabel Lencastre, a sua outra prima e antiga candidata a rainha consorte, dona Isabel de Portugal, convertida agora em rainha consorte de Castela, começava a ser aceite por um marido que inicialmente a tratara com frieza por não ser a princesa francesa com quem quisera casar.
Com efeito, terá sido em Dezembro de 1447, em Valladolid, quando o rei Juan II de Castela encontrou em dona Isabel a beleza e talvez o amor que nunca viu na sua primeira esposa, com uma consequência muito desagradável para o condestável de Castela, que fora o artífice dessas bodas. Como conta Palencia, as segundas núpcias do rei tiveram para Álvaro um resultado diferente do que inicialmente esperara. O rei começou a degustar livremente os abraços honestos de sua formosíssima esposa e no limiar da velhice apaixonou-se pela terna jovem. Mas o condestável não era o único frequentador dos palácios reais castelhanos que se sentia preocupado. Como relata um biógrafo de Enrique, em finais de 1447, na Corte circulavam outros rumores nada favoráveis à pessoa do príncipe, cuja conduta e gostos não se acomodavam ao espírito da cavalaria. Palencia calunia-o ou difama-o quando atribui a influência omnipotente do marquês [de Villena] à sua complacência em desvios sexuais (...). Admitamos que todas estas atribuições eram falsas. Mas, na realidade, mil confusos, mal-intencionados e interesseiros rumores acerca do comportamento sexual do futuro rei estavam já a fazer o seu caminho pelos corredores do palácio». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da EdosLivros/JDACT

O Capitão Nemo e Eu. Álvaro Guerra. «O suor arrefece no meu corpo. Acabei de ver as três rodas com impressionante nitidez, a do meio girava velozmente no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e as outras duas estavam imóveis…»

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Sono. Sonhos
«(…) À porta, que lentamente se abre, surge a enfermeira empurrando uma silenciosa mesa de rodas que ostenta os seus hemisférios de metal cromado a reflectir as imagens do universo debaixo da miniatura espectral da enfermeira dentro do minúsculo quarto oval, aparecem o peito de frango, fumegante, o arroz de manteiga, a canja, o pêssego, o sumo de laranja. Tenho apetite e reconheço os meus gostos. Ouço que estou com melhor parecer e que preciso de fazer a barba. Do meu rosto nem um traço. Esqueci o que era possível esquecer e prolongo este momento até aos limites da minha vontade. Tarde ou cedo, surgirá um espelho, e eu nele. Um espelho... Outra recordação... Dormito, imóvel e obediente, e desse levíssimo sono regresso, três dias, três horas, três séculos, são noções cujo rigor me não interessa, porque neste desinteresse está a suspeita de uma outra memória, da minha vontade e da esperança insensata; entrevejo o esboço de uma cópula e de uma guerra e não sei qual durou mais, mas obrigo-me a optar, e escolho a cópula, encerrado na minha fortaleza branca de doente.
Vem o médico. Toma-me o pulso e fala. Respondo sem aplicação, por delicadeza. Sou, portanto, bem-educado, tenho uma família que se ocupou de mim, da minha instrução, e me preparou para a vida... Para ver o primeiro cadáver tive que me pôr em bicos de pés e espreitar para dentro do caixão: era uma velhinha mirrada, uma tia de oitenta anos a quem tinham tirado a dentadura e que estava em frente do altar, aconchegada entre flores e com um crucifixo entre as mãos; o cheiro da cera e do pólen fez-me espirrar e outra tia, com menos quarenta anos que a defunta, assoou-me a um lenço branco; todas as mulheres da família e as suas melhores amigas estavam sentadas à volta do caixão e suspiravam ou fungavam; todos os homens da família e os seus melhores amigos estavam na sacristia e falavam em voz baixa do preço do trigo e da guerra na Alemanha...
O suor arrefece no meu corpo. Acabei de ver as três rodas com impressionante nitidez, a do meio girava velozmente no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e as outras duas estavam imóveis; todas brilhavam e eram feitas de metais diferentes. Acho que não se tratava de um sonho e que há alguma coisa na memória que não é possível violar; na verdade, existe muito viva em mim a recordação de tudo o que não fiz, de tudo o que não criei, uma herança infinitamente mais vasta do que a possibilidade de a esquecer e me transforma numa ínfima partícula fechada na humilde casca de uma realidade adiada, eternamente. Agora, não só conheci as três rodas do Labirinto da Fortuna, de Juan Mena, a roda imóvel do passado, a roda girando do presente e a roda imóvel do futuro, coisas que assim deixaram de ser meros símbolos. Eu julgava que o homem já tinha feito Deus à sua imagem e semelhança mas afinal, Deus não está ainda feito, nem estará nunca, ele é esta tarefa interminável e constante. Mas onde é que descansa? Senhor, responde Marcel, descanso na Providência, Mas não consigo lembrar-me de onde saiu esta ironia». In Álvaro Guerra, O Capitão Nemo e Eu, Crónica das horas aparentes, Publicações dom Quixote, 1973, 2000, ISBN 972-201-828-0.

Cortesia de BN/PdQuixote/JDACT

Elogio do Silêncio. Marc Smedt. «… uma tal força de inércia, que o silêncio cedo retomava o seu papel preponderante. A neve favorece o silêncio, transporta-o por entre os sons que primeiro destaca, e depois engole»

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Os estados do silêncio
«(…) Tantos silêncios! Existe também o da esfinge, o silêncio dos perfumes, odores e cores, o silêncio da cerimónia do chá, o silêncio da noite e dos sonhos, o silêncio de cada gesto. O silêncio das estações e dos seus dias. O silêncio é tão importante como respirar. E, de qualquer modo, tão essencial como o sono. Ao escrever estas linhas, a aurora ergue-se sobre uma paisagem de neve. Branca, ela ilumina a noite com um brilho único, tingindo-se lentamente com as cores do amanhecer. Ao levantar-me por volta das cinco, senti de imediato um silêncio acolchoado. E, ao olhar pela janela, não fui surpreendido pela sua presença. A neve irradia na verdade um ambiente que não se assemelha a mais nada. Abafa os sons. A neve poisa no espaço, invade-o, metamorfoseia-o. Ela é pura poesia, na sua alvura. Ela irradia calma. Neve.
É antes de mais uma imagem, um prazer infantil. Uma imagem de um livro ilustrado, um conto de Inverno no qual era agradável encontrar refúgio. Todos nós devemos ter uma lembrança semelhante, a de uma casa com o telhado nevado, sabem, aqueles tectos pesados com uma tal espessura de neve que esta os cobre totalmente com as agulhas de gelo que pendem do algeroz escondido e as árvores em volta, fantásticas formas vestidas de branco. Vivi durante a minha infância dez anos na Turquia, em Ancara, a cidade situada num planalto a mil metros de altitude. De Dezembro a Fevereiro vivíamos debaixo de uma camada de pelo menos um metro de neve, até começar um degelo brutal e uma Primavera quente se começar a fazer sentir. Os meus primeiros deslumbramentos com a neve datam dessa altura e, graças à importante colónia americana ali se encontrava, os bonecos de neve com olhos de carvão, gorro de caçarola e nariz de cenoura cruzaram-se de imediato com o rico folclore de Walt Disney, do qual eu me tornei, como os meus pequenos camaradas americanos. Ninguém melhor do que ele soube glorificar a magia da neve. E os contos eslavos da minha mãe contribuíram para o feitiço que sempre experimentei face a este pó gelado. Para mim, o Natal também se liga ao Christmas anglo-saxónico, e o maravilhoso silêncio que reinava na casa, de manhã, antes de ir procurar os presentes debaixo do grande pinheiro decorado com bolas multicolores e velas verdadeiras, ô Tunnenbaum, continua a ser o mais belo do mundo. Foi certamente aí, enquanto criança, que percebi o silêncio de maneira intensa, que descobri a sua imensidão e a sua força. Na madrugada de cada Natal.
Com os rigores dos Invernos, vinham os lobos rondar as habitações e o bairro residencial, que se situava numa colina com vista sobre a cidade, ao lado dos campos. Julguei ouvir muitas vezes os lobos esfaimados uivarem, errando sobre a vastidão gelada. Mas a neve tem uma tal força de inércia, que o silêncio cedo retomava o seu papel preponderante. A neve favorece o silêncio, transporta-o por entre os sons que primeiro destaca, e depois engole. Também gosto da neve que cai. É menos silenciosa que a paisagem de neve, emitindo sempre uma espécie de rumor, um rugido suave, ouvimo-la cair quase sem a escutar. Mas este pedaço de céu que se desfaz em flocos brancos isola-nos do mundo e dos seus ruídos. A neve é silêncio branco. Passámos alguns dias a esquiar. O prazer de deslizar sobre a neve em direcção aos abismos das montanhas imaculadas que se recortam no céu azul-vivo. Descendo a encosta, de frente para elas, quase sozinho na pista naquele Março profundo, existe apenas o som de ripas tecendo trilhos na neve fresca, chiar que nada mais faz do que realçar o grandioso silêncio daquelas montanhas geladas. Somente um pássaro lança um brado, de vez em quando, ao cruzar o azul». In Marc Smedt, Elogio do Silêncio, 1986, Sinais de Fogo Publicações, tradução de Sérgio Lavos, colecção XIS (livros para pensar), Público, 2003, ISBN 989-555-029-4.

Cortesia de Público/JDACT

A Voz do Silêncio. Fernando Pessoa. Helena P. Blavatsky. «Os sábios não se demoram nas regiões de prazer dos sentidos. Os sábios não dão ouvidos às vozes musicais da ilusão…»

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Abalou-me a um ponto que eu julgaria impossível. In Fernando Pessoa

Aos Poucos
«(…) Quando ao tumulto do mundo a tua alma que desabrocha dá ouvidos; quando à voz clamorosa da grande ilusão a tua alma responde; quando se assusta ao ver as lágrimas quentes da dor, quando a ensurdecem os gemidos da angústia, quando a alma se retira, como a tartaruga tímida, para dentro da concha da personalidade, sabe, ó discípulo, que do seu Deus silencioso a tua alma é um sacrário indigno. Quando, já mais forte, a tua alma vai saindo do seu retiro seguro; quando, deixando o sacrário protector, estende o seu fio de prata e avança; quando, ao contemplar a sua imagem nas ondas do espaço, ela murmura: isto sou eu, declara, ó discípulo, que a tua alma está presa nas teias da ilusão. Esta terra, discípulo, é a sala da tristeza, onde existem, pelo caminho das duras provações, armadilhas para prender o teu eu na ilusão chamada a grande heresia.
Esta terra, ó discípulo ignaro, não é senão a triste entrada para aquele crepúsculo que precede o vale da verdadeira luz, essa luz que nenhum vento pode apagar e que arde sem óleo nem pavio. Diz a grande Lei: … para te tornares o conhecedor da personalidade total, tens primeiro de conhecer a personalidade. Para chegares ao conhecimento dessa personalidade, tens de abandonar a personalidade à não-personalidade, o ser ao não-ser, e poderás então repousar entre as asas da grande ave. Sim, suave é o descanso entre as asas daquilo que não nasce, nem morre, mas é o Aum através de eras eternas. Cavalga a ave da vida, se queres saber. Abandona a tua vida, se queres viver. Três salas, ó cansado peregrino, conduzem ao fim dos trabalhos. Três salas, ó conquistador de Mara, te trarão através de três estados até ao quarto, e daí até aos sete mundos, os mundos do descanso eterno.
Se queres saber os seus nomes, escuta-os e aprende-os. O nome da primeira sala é Ignorância, Avidya. É a sala em que viste a luz, em que vives e hás-de morrer. O nome da segunda sala é a Sala da Aprendizagem. Nela a tua alma encontrará as flores da vida, mas debaixo de cada flor uma serpente enrolada. O nome da terceira sala é Sabedoria, para além da qual se estende o mar sem praias de Akshara, a fonte indestrutível da omnisciência. se queres atravessar seguramente a primeira sala, que o teu espírito não tome os fogos da luxúria que ali ardem pela luz do sol da vida. Se queres atravessar seguramente a segunda, não pares a aspirar o perfume das suas flores embriagantes. Se queres ver-te livre das peias cármicas, não procures o teu guru nessas regiões mayávicas. Os sábios não se demoram nas regiões de prazer dos sentidos. Os sábios não dão ouvidos às vozes musicais da ilusão». In Helena Petrovna Blavatsky, The Voice of The Silence, A Voz do Silêncio, tradução de Fernando Pessoa, Editorial Presença, 2012, ISBN 978-989-8470-49-2.

Cortesia de Presença/JDACT

Um Problema Religioso. Cátaros. Um Pretexto Político. Jesus Mestre Godes. «Outra característica occitânica é o desenvolvimento mercantil. O comércio, que tinha por base os dois grandes centros de Toulouse e Narbonne, era fruto do crescimento da burguesia…»

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«O catarismo é um fenómeno histórico que pode ser observado segundo dois pontos de vista: para uns, é uma religião evangélica, para outros, trata-se de uma clara heresia…»

Lenguadoc. Século XIII. A originalidade Occitânica
«(…) Continuemos a compilar pormenores sobre o tema. Pode-se demonstrar, por exemplo, que o número de escravos que recuperam a liberdade é superior no Languedoc relativamenre a outras zonas de França. (Os estudos compararitos são quase todos entre a França do Norte e o Midi). Belperron, sarcástico, assinala o facto da libertação, como que implícito em razões económicas: se ao rei francês lhe repugnava deixar escapar a mais ínfima parcela de autoridade, no Midi, os senhores, mais liberais, mais imbuídos do direito romano, mas necessitados de dinheiro, aceitavam o resgace dos escravos. A questão que permanece por discutir, é saber se é preferível ser livre, ou ter segurança de poder rrabalhar e desfrutar dos frutos do trabalho. Apesar da sua evidente aversão contra tudo o que lhe cheire a meridional, Belperron é um historiador brilhanre, e agora, sem querer, introduz-nos num aspecto interessante e também original: a conservação do espírito romano na Occitânia. Ele implica um respeito ao direito, como ele mesmo o rnanifesta, que faz dele um eixo corrector da conduta. Quis comparar a máxima real do norte de França, nenhuma terra sem senhor, com a fórmula jurídica utilizada na Occitânia, nenhum senhor sem propriedade. Seguindo este raciocínio, o Norte estaria mais vinculado ao feudalismo, baseado na sujeição do homem ao serviço do senhor que ao mesmo tempo o protegia. A perspectiva meridional, pelo contrário, baseada na legislação romana afirmava os direitos do indivíduo e pretende que tudo se estabeleça na força do contrato.
Este relaxamento dos laços entre senhores e vassalos é também visível entre o senhor e as cidades occitânicas, que formavam comunidades à parte, quase independentes, sobre as quais o soberano imediato, o conde de Toulouse, por exemplo, tinha uma autoridade pouco menos que nula. O que leva muitos historiadores a afirmar que o condado é um estado carente de coesão, onde o poder central tinha sofrido um enfraquecimento e que tinha dificuldade em cumprir as suas funções. De acordo com Labal, na Occitânia, as instituições feudais penetraram mal. Existe uma resistência a fazer-se uso do juramento de vassalagem. No contrato feudal, prefere-se o pacto entre iguais, acordos bilatetais de poder a poder, mais flexíveis. Nas relações entre a Igreja e os senhores occitânicos existe mesmo assim um certo grau de originalidade. Existe nelas, como não poderia deixar de ser um facto direccional..., mais um. No Languedoc leva-se a cabo a primeira tentativa de separação dos dois poderes, seguindo o princípio da reforma da Igreja, postulado por Gregório VII. Mesmo assim, a interpretação foi sui generis: se a reforma queria acabar, por exemplo, com a submissão do clero ao poder senhorial na nomeação de reitores e bispos, o conde de Toulouse começou por afastar do seu Conselho todos os eclesiásticos. Deste modo, produz-se a nível institucional uma separação, uma dissociação, entre senhores e Igreja.
Outra característica occitânica é o desenvolvimento mercantil. O comércio, que tinha por base os dois grandes centros de Toulouse e Narbonne, era fruto do crescimento da burguesia nesse arco meridional. O volume de negócios entre Toulouse e Narbonne é considerável. O corredor do Languedoc, compreendido entre o mar e a bacia do Garona, é uma paisagem cheia de caravanas que se afadigam por entregar o mais depressa possível as matérias-primas que acabam de desembarcar em Narbonne e em Montpellier e que se cruzam com os transportes que farão chegar os odres de vinho e os fardos de tecidos de lã aos barcos ancorados nesses mesmos portos. Por este caminho transitam também outras gentes. Forasteiros que há anos tinham trilhado o camí roumieu, quer dizer, o caminho dos peregrinos, que se dirigem, por um lado, a Roma e, por outro, muito mais concorrido, a Compostela. Com a recém-inaugurada prosperidade, estes peregrinos já não são um par de almas que chegavam à Finisterra; cresceram não só em número, mas também em exigências religiosas e de acolhimento. Toulouse era um grande centro de peregrinação que se esforçava, tanto na cidade, como nos arredores, por edificar igrejas, ermidas e hospitals, ou seja, centros de hospedagem para estes viajantes. A partir do século XI, os peregrinos já começavam a ir a Compostela para visitar o sepulcro de Santiago. Inclusive editou-se um guia, El Camiño de Santiago, que aconselhava os viajantes sobre o melhor caminho a seguir a pureza das fontes locais e os costumes, hospedarias ou albergues, dos lugarejos que encontravam pelo caminho». In Jesus Mestre Godes, Els Cátars, Problema religiós, pretext politic, Cathari, Ediciones Península, 1995, ISBN 84-8507-710-8., Origens, Desenvolvimento, Perseguição, Extinção, Editora Pergaminho, 2001, Cascais, ISBN 972-711-297-8.

Cortesia de Pergaminho/JDACT

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Rapariga que Roubava Livros. Markus Zusak. «Seguiu-se o portão, a que ela se agarrou. Irrompeu-lhe dos olhos uma torrente de lágrimas enquanto ela resistia e recusava ir para dentro. Começaram a juntar-se pessoas na rua…»

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Coragem nascida das palavras
«(…) Quem quer que tenha dado o nome à rua Himmel possuía indiscutivelmente um saudável sentido de ironia. Não que ela fosse um inferno. Não era. Mas, c’os diabos, também não era o céu. Seja como for, os pais de acolhimento de Liesel aguardavam. Os Hubermann. Estavam à espera de uma rapariga e de um rapaz e ser-lhes-ia paga uma pequena pensão por os receberem. Ninguém queria dizer a Rosa Hubermann que o rapaz não sobrevivera à viagem. De facto, nunca ninguém lhe queria verdadeiramente dizer nada. No que se refere a temperamento, o dela não era realmente invejável, embora os seus antecedentes com crianças de acolhimento fossem bons. Aparentemente, metera vários na ordem. Para Liesel, foi uma viagem de automóvel. Ela nunca entrara num. Havia a subida e descida constantes do seu estômago, e as esperanças fúteis de que eles se perdessem ou mudassem de ideias.
No meio de tudo isso, não conseguia evitar que os seus pensamentos se virassem para a mãe, de volta à Bahnhof, à espera para partir de novo. A tiritar. Embrulhada naquele casaco inútil. Estaria a roer as unhas, à espera do comboio. A plataforma seria comprida e desconfortável, uma fatia de cimento frio. Procuraria descortinar o local aproximado da sepultura do filho na viagem de regresso? Ou seria o sono demasiado pesado? O carro movia-se, com Liesel antecipando, apavorada, a última e letal volta. O dia estava cinzento, a cor da Europa. Em redor do carro cerravam-se cortinas de chuva. Quase lá. A senhora da assistência, frau Heinrich, virou-se e sorriu. Dein neues Heim. O teu novo lar. Liesel limpou um círculo no vidro embaciado e olhou para fora. Os edifícios parecem grudados, na sua maioria casas pequenas e blocos de apartamentos com ar nervoso. Há neve lamacenta espalhada como uma alcatifa. Há cimento, árvores como cabides de chapéus vazios, e ar cinzento.
Havia também um homem no automóvel. Ficou com a rapariga enquanto frau Heinrich desaparecia lá dentro. Nunca falou. Liesel partiu do princípio de que ele lá estava para garantir que ela não fugiria ou para a obrigar a entrar à força se ela lhes levantasse problemas. Contudo, mais tarde, quando começaram de facto os problemas, ele limitou-se a ficar ali sentado, a observar Talvez ele fosse apenas o último recurso, a solução final. Após alguns minutos, surgiu um homem muito alto. Hans Hubermann, o pai de acolhimento de Liesel. De um dos seus lados vinha a estatura mediana de frau Heinrich. Do outro, a forma atarracada de Rosa Hubermann, que parecia um pequeno guarda-roupa com um casaco atirado para cima. Tinha um andar nitidamente bamboleado. Quase engraçado, se não fosse a cara, engelhada como cartão amarrotado e expressando aborrecimento, como se ela apenas tolerasse tudo aquilo. O marido caminhava direito, com um cigarro aceso entre os dedos. Era ele que os enrolava. O facto era este: Liesel recusava sair do automóvel.
Was ist los mit dem kind?, indagou Rosa Hubermann. E repetiu. O que se passa com esta criança? Enfiou a cara dentro do carro e disse: vá, anda, anda. O lugar da frente foi empurrado para diante. Um corredor de luz fria convidava-a a sair. Ela não conseguiu mover-se. Lá fora, pelo círculo que traçara, Liesel via os dedos do homem alto, ainda a segurarem o cigarro. Da ponta deste caiu cinza que pairou e se ergueu diversas vezes até atingir o solo. Demorou quase vinte minutos a convencê-la a sair do carro. Foi o homem alto que conseguiu. Serenamente.
Seguiu-se o portão, a que ela se agarrou. Irrompeu-lhe dos olhos uma torrente de lágrimas enquanto ela resistia e recusava ir para dentro. Começaram a juntar-se pessoas na rua até Rosa Hubermann as invectivar, após o que elas deram meia-volta e regressaram por onde tinham vindo. Para onde é que estão a olhar, seus bardamer…? Por fim, Liesel Meminger dirigiu-se cautelosamente para dentro. Hans Hubermann segurava-lhe uma das mãos. A sua pequena mala segurava-a ela com a outra. Enterrado entre a camada de roupas dobradas nessa mala encontrava-se um pequeno livro preto que, tanto quanto sabemos, um coveiro de catorze anos, numa cidade sem nome, passara provavelmente as últimas horas a procurar. Juro, imagino-o a dizer para o patrão, que não faço a menor ideia do que lhe aconteceu. Procurei por toda a parte. Toda a parte! Estou certa de que ele nunca suspeitaria da rapariga e todavia ali estava, um livro preto com palavras prateadas escritas contra o tecto das suas roupas: um Guia em Doze Passos para Cavar Sepulturas com Êxito. Editado pela Associação de Cemitérios da Baviera. A rapariga que roubava livros atacara pela primeira vez, o início de uma carreira ilustre». In Markus Zusak, 2005, A Rapariga que Roubava Livros, tradução de Manuela Madureira, Editorial Presença, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-233-907-0.

Cortesia de EPresença/JDACT

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «Subitamente, os cavaleiros interromperam a conversa para admirarem a paisagem. Os seis jovens haviam subido a serra guiados por um primo do alcaide de Silves. Estava-se em finais de Julho e num dia límpido, como aquele, era possível avistar ao longe…»

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A ampulheta
«(…) Mas não tendes vocação para a nossa regra, senhor Álvaro. A sua memória percorreu o tempo numa vertigem cada vez mais rápida em que as imagens passavam fugazes pelo espírito do fidalgo centenário: um combate feroz contra castelhanos numa caravela, à vista da costa algarvia; o conde de Avranches trespassado pela sua espada na triste jornada de Alfarrobeira; a excitação enquanto galopava à desfilada antes de se cobrir de glória nas justas de Lille, quando derrubara com a lança Roger de Bac e imobilizara com a acha Robert de Plymouth; logo passou para a luta desesperada pela sobrevivência no palanque de Tânger e sentiu um nó no estômago ao observar o ar comprometido do infante Henrique, do conde de Arraiolos e do marechal enquanto viam o infante Fernando caminhar ingenuamente para o cativeiro fatal; experimentou, uma vez mais, a euforia que sentira ao derrubar um cavaleiro mouro à vista de Ceuta, no ano de 1425; sofreu de novo a dor forte do impacte de um virote bretão no seu braço, numa batalha naval junto a Tarifa; quase perdera o fôlego na corrida que o levara a entrar em turbilhão pela porta de Ceuta na companhia dos infantes Duarte e Henrique, na grande vitória de 1415. Álvaro Ataíde era o último conquistador vivo de Ceuta. A sua carreira de lidador começara nessa jornada, há oitenta e cinco anos, e só terminara há dez, quando el-rei João, o segundo, o dispensara do serviço militar, apesar dos seus veementes protestos. Sempre quisera morrer de espada na mão, porém, estava destinado a um fim inglório, deitado numa cama ou recostado numa cadeira, consumido pelo tempo, que o fazia definhar lentamente.
O corpo adormecido no cadeirão acalmou-se quando a mão de Álvaro encontrou o punho da sua espada. Na sua mente ressoou o tropel de uma cavalgada animada. O fresco da noite provocou-lhe um violento ataque de tosse. A espada caiu com estrondo, e, ele, estremunhado, gritou pelo seu criado. Este acorreu, deixando cair pelo caminho duas das moedas que acabara de ganhar. Ajudou o fidalgo a deitar-se e serviu-lhe um caldo de vitela com umas folhinhas de hortelã. Recomposto, Álvaro Ataíde ingeriu a comida, reclamando de falta de sal; o criado retirou umas pedrinhas de um recipiente de marfim representando homens barbados com armaduras, feito por um artífice do Benim. Álvaro adormeceu de novo. Não chegara verdadeiramente a acordar, pois a sua mente continuava no passado, para onde fora levada pelo fio do tempo.

O primeiro voo
Por entre penedos altaneiros um ninho de águia guardava uma cria. Os seus progenitores pairavam sobre o topo da serra do Monchique; um deles caiu em voo  picado e regressou aos céus com um coelho nas garras. Pouco depois, mãe e cria partilhavam regaladamente os restos da presa. No final do repasto, a cria esticou as asas, agitou-as, mas não saiu do lugar, apesar dos empurrões da mãe. Pouco depois, as aves agitaram-se quando ouviram ruídos estranhos. Vamos, rapazes. Estamos quase no cimo. Para quê tanto esforço? A minha montada está a desfalecer. Ireis gostar da vista, e poderemos ver a armada real. Conseguimos ver Ceuta? Não, meu caro. A terra dos mouros não se vê do reino do Algarve..., nem cá de cima. Estais certo de que iremos sobre Ceuta? Ouvi dizer que el-rei João o afirmou ontem. Pode ser apenas para enganar espiões que andem entre nós... Então, qual seria nosso alvo? Creio que Gibraltar, ou Málaga, no reino de Granada. Não pode ser, pois esse reino é pendência d'el-rei de Castela. Se atacarmos esses infiéis danados, os castelhanos virão outra vez contra nós. E nós temos medo desses perros? El-rei nosso senhor venceu-os, e o condestável derrotou-os na sua própria terra. Tende-vos, moço, que já chega de gastos e de destruição. O povo está cansado da guerra...
Subitamente, os cavaleiros interromperam a conversa para admirarem a paisagem. Os seis jovens haviam subido a serra guiados por um primo do alcaide de Silves. Estava-se em finais de Julho e num dia límpido, como aquele, era possível avistar ao longe o promontório sacro, a finisterra da cristandade onde estivera sepultado o corpo do mártir S. Vicente antes de ser levado para Lisboa, em tempos d'el-rei Afonso Henriques. De um lado, a costa corria para norte, em direcção a Lisboa, e avistava-se quase toda a linha litorânea até à península de Tróia; do outro, a orla costeira era visível até às imediações de Faro. A nascente, podia observar-se a ondulação da serra do Caldeirão, a sul encontrava-se a foz do Arade, o rio que passava por Silves antes de mergulhar no oceano. Olhando para a direita divisava-se a vila de Lagos, a maior povoação que se avistava dali. Embora a paisagem natural fosse, de facto, deslumbrante, o que mais espantava aqueles rapazes era o enorme conjunto de embarcações que cobriam o mar na zona de Lagos. Ali estava a armada de que eles próprios faziam parte». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

Cortesia CL/TDebates/JDACT

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Cartago e o Pesadelo da República Romana. Aníbal. Robert O’Connell. «… pois Roma conseguira sempre responder, conseguira sempre sair das cinzas da história e continuar em frente. E era mais na derrota do que na vitória que Políbio via a essência da grandeza de Roma»

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Vestígios de Guerra
«Políbio de Megalópolis, a partir de um desfiladeiro nos Alpes italianos, olhou para baixo e avistou as ricas e verdes planícies da Lombardia. Foi a mesma vista convidativa que setenta e três anos antes Aníbal mostrara ao seu exército meio esfomeado, meio enregelado e completamente desanimado, encorajando-o a manter o rumo no que viria a revelar-se um incríve1 caminho de conquista. Muito provavelmente, mantinham-se visíveis vestígios suficientes daquela tropa cansada para Políbio ter a certeza de estar no sítio certo; uma certeza negada por cronistas futuros, dando azo à uma das controvérsias mais duradouras e fúteis de toda a história antiga: onde exactamente atravessou Aníbal os Alpes? Políbio, por seu lado, estava livre para se concentrar em questões que considerava mais importantes. Tinha como objectivo, um esforço que acabaria por preencher quarenta livros, explicar aos seus compatriotas gregos como uma até então obscura cidade-estado na península itálica veio a dominar, praticamente no curso de uma vida, todo o mundo mediterrânico. Mas se Roma estava no centro das investigações de Políbio, Aníbal e Cartago eram a sua atracção. Cada um à sua maneira esteve perto de destruir as ambições romanas. Ambos, por esta altura, estavam mortos, obliterados por Roma, mas foram os desafios que eles lançaram e os desastres que infligiram que Políbio considerou ser mais atractivo. Não importava quão más as coisas se tornavam, pois Roma conseguira sempre responder, conseguira sempre sair das cinzas da história e continuar em frente. E era mais na derrota do que na vitória que Políbio via a essência da grandeza de Roma.
Canas foi o auge. A 2 de Agosto de 216 a. C., um terrível e apocalíptico dia no sul de Itália, 120 000 homens envolvidos no que acabou por ser uma enorme luta de espadas. No fim da contenda, pelo menos 48 000 romanos estavam mortos ou moribundos, estendidos em poças do seu próprio sangue, vómito e fezes, mortos das formas mais incríveis c terríveis, com os membros arrancados, os rostos, peitos e abdómenes perfurados e mutilados. Assim foi Canas, um evento celebrado e estudado enquanto paradigma de Aníbal para futuros praticantes das artes militares, a apoteose da vitória decisiva. Roma, por outro lado, perdeu, sofrendo nesse dia mais baixas que os EUA durante toda a guerra no Vietname, mais baixas que qualquer outro exército ou qualquer dia da batalha em toda a história militar ocidental. Pior ainda, Canas culminava uma série de derrotas engendradas pelo próprio Aníbal, personificação do castigo merecido infligido a Roma, que atacaria a Itália por mais treze anos, derrotando exército atrás de exército e general atrás de general. Contudo, nada disto teria comparação com aquela terrível tarde de Agosto.
Tem-se defendido que Políbio, consciente da enorme importância simbólica de Danas, estruturou deliberadamente e sua história para fazer com que a batalha parecesse o absoluto ponto mais baixo da fortuna romana, daí exagerar na sua importância. Porém, os números totais não só defendem o contrário, como também nesse dia Roma perdeu uma parte significativa dos seus líderes, entre um quarto e um terço do Senado, cujos membros se mostravam ansiosos por estar presentes no que se pensava vir a ser um grande triunfo. Ao invés, foi um total fracasso, tanto assim que é possível provar que a Batalha de Canas foi ainda mais decisiva do que Políbio acreditava ter sido. Em retrospectiva, trata-se de um ponto crucial na história de Roma. É indiscutível que os acontecimentos desse mês de Agosto ou começaram ou aceleraram a tendência de empurrar Roma da municipalidade para o império, da oligarquia republicana para a autocracia, da milícia para o exército profissional, de um reino de donos de terras para um reino de escravos e propriedades. E, o talismã de todas estas mudanças foi um sobrevivente sortudo, um jovem tribuno militar chamado Públio Cornélio Cipião, conhecido na história com a alcunha de Africano, visto que ao fim de muitos anos de guerra, Roma ainda precisaria de um general e de um exército suficientemente bons para derrotar Aníbal, e Cipião Africano, com a ajuda do que restava dos refugiados desonrados no campo de batalha, atenderia à chamada e poria tudo em marcha». In Robert O’Connell, Cartago e o Pesadelo da República Romana, 2010, tradução de Dinis Pires, Bertrand Editora, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-252-419-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

A Solidão dos Números Primos. Paolo Giordano. « Leva-os com as pontas para a frente, senão ainda matas alguém, disse-lhe o pai. No fim da temporada o Clube de Esqui oferecia-te um crachá com estrelinhas em relevo. Cada ano uma estrelinha a mais…»

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O Anjo da Neve
«Alice Della Rocca odiava a escola de esqui. Odiava despertar às sete e meia da manhã também nas férias de Natal e odiava o pai que a fitava ao pequeno-almoço enquanto por baixo da mesa fazia dançar a perna nervosamente, como que a dizer despacha-te. Odiava as meias-calças de lã que lhe picavam as pernas, as luvas que não lhe deixavam mexer os dedos, o capacete que lhe esmagava as faces e premia com o ferro no queixo e, depois, aquelas botas, sempre demasiado apertadas, que a faziam caminhar como um gorila. Então, bebes o leite ou não? insistiu, de novo, o pai. Alice emborcou três dedos de leite a ferver, que lhe queimou primeiro a língua, depois o esófago e o estômago. Muito bem. Hoje vais mostrar quem és, disse-lhe. E eu sou quem, pensou ela. Depois, empurrou-a para a rua, mumificada no fato verde de esqui pejado dos emblemas e adereços fluorescentes dos patrocinadores. Àquela hora a temperatura rondava os 10º negativos e o sol era apenas um disco um pouco mais cinzento que o nevoeiro envolvente. Alice sentia o leite a revirar-lhe o estômago enquanto mergulhava na neve de esquis ao ombro, pois os esquis é preciso carregá-los sozinha, até que não sejas de tal maneira boa que alguém os carregue por ti.
Leva-os com as pontas para a frente, senão ainda matas alguém, disse-lhe o pai. No fim da temporada o Clube de Esqui oferecia-te um crachá com estrelinhas em relevo. Cada ano uma estrelinha a mais, desde que tinhas quatro anos e eras suficientemente alta para enfiar entre as pernas a cadeirinha do skilift até quando fazias nove e a cadeirinha já a conseguias agarrar sozinha. Três estrelas de prata e, depois, mais três de ouro. Cada ano um crachá para te dizer que estavas um pouco mais preparada, que estavas um pouco mais próxima das competições que tanto aterrorizavam Alice. Já na altura pensava nas competições e ainda só tinha três estrelas.
O local de encontro era junto ao teleférico às oito e meia em ponto, para a abertura da estância de esqui. Os colegas de Alice já lá estavam, formando uma espécie de círcu1o, todos iguais como soldadinhos, atabafados no uniforme e entorpecidos pelo sono e pelo frio. Espetavam os bastões na neve e apoiavam-se neles, ancorando-se nas axilas. De braços pendurados pareciam inúmeros espantalhos. Ninguém tinha vontade de falar e Alice muito menos. O pai deu-lhe duas palmadas demasiado fortes no capacete, quase parecia querer espetá-la na neve. Dá cabo deles. E lembra-te: o peso para a frente, percebes? Pe-so-pa-ra-a-fren-te, disse-lhe. O peso para a frente, respondeu o eco na cabeça de Alice. Depois, ele afastou-se, soprando para dentro dos punhos cerrados, ele que rapidamente voltaria para o quentinho da casa para ler o jornal. Dois passos e o nevoeiro engoliu-o. Alice deixou cair os esquis no chão de um modo que se o seu pai a tivesse visto certamente lhas daria ali mesmo, à frente de todos. Antes de enfiar as botas nos esquis, bateu-lhes na sola com o bastão para sacudir os pedaços de neve encrostados.
Estava um pouco aflita. Sentia o chichi a empurrar a bexiga, como um alfinete espetado dentro da barriga. Também hoje não iria aguentar, tinha a certeza. Todas as manhãs a mesma coisa. Depois do pequeno almoço fechava-se na casa de banho e fazia força, fazia força, para esvaziar o chichi todo. Deixava-se ficar na sanita a contrair os abdominais até sentir, devido ao esforço, uma pontada na cabeça e ter a impressão de que os olhos se lhe escapuliam das órbitas, como a polpa da uva morangueira se apertares a casca. Abria ao máximo a torneira da água para que o pai não ouvisse os barulhos. Empurrava cerrando os punhos, para espremer até à última gota». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

domingo, 27 de setembro de 2015

Poesia. Sophia Breyner Andresen. «Foram os gestos dessa encantação, que devia acordar do seu inquieto sono a terra negra dos canteiros e os meus sonhos sepultados vivos e inteiros»

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Mar
I
«De todos os cantos do mundo
amo com um amor mais forte e mais profundo
aquela praia extasiada e nua.
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II
Cheiro a terra as árvores e o vento
que a Primavera enche de perfumes
mas neles só quero e só procuro
a selvagem exalação das ondas
subindo para os astros como um grito puro».


O jardim e a noite
«Atravessei o jardim solitário e sem lua,
correndo ao vento pelos caminhos fora,
para tentar como outrora
unir a minha alma à tua,
ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo,
sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
e os meus gestos foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa encantação,
que devia acordar do seu inquieto sono
a terra negra dos canteiros
e os meus sonhos sepultados
vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos
calou-se a terra,
e sob o peso dos frutos ressequidos
do presente,
calaram-se os meus sonhos perdidos.

Entre os canteiros cercados de buxo,
enquanto subia e caía a água do repuxo,
murmurei as palavras em que outrora
para mim sempre existia
o gesto dum impulso.


Palavras que eu despi da sua literatura,
para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
de formulas de magia.

Docemente a sonhar entre a folhagem
a noite solitária e pura
continuou distante e inatingível
sem me deixar penetrar no seu segredo.
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
a minha ânsia carregada de impossível,
contra a sua harmonia perfeita.

Tomei nas minhas mãos a sombra escura
e embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
mas nada pôde acordar dos seus escombros
o meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou pesado e quente
e à sua volta todo o jardim cantou
e a água do tanque tremendo
se maravilhou
em círculos, longamente».
Poemas de Sophia Breyner Andresen, in ‘Cem Poemas de Sophia’

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A Traição de D. Manuel I. Jorge S. Correia. «Por pouco tempo dona Leonor teve o exclusivo filial. Qual relógio afinado, sua mãe foi preenchendo os berços que havia nos palácios por onde dividia, com Filipe, os fluidos amorosos, uma produção tal…»

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Com uns pais assim, dona Leonor de Áustria saiu muito boa
«No dia 24 de Novembro de 1498, um sábado, o palácio de Coudenberg, em Bruxelas, encheu-se de cortesãos para saudar Filipe, o Belo, e dona Joana, a Louca, arquiduques de Áustria, duques da Flandres e de Brabante. Ele, filho do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, ela, filha dos reis de Castela, dona Isabel, a Católica e Fernando de Aragão, também irmã de dona Isabel e dona Maria, respectivamente, a primeira e a segunda mulher de Manuel I. A primeira filha do casal recebeu o nome de dona Leonor em homenagem à princesa portuguesa do mesmo nome, filha de Duarte I, avó do pai da criancinha. Dona Leonor de Áustria ou de Habsburgo, como também seria conhecida por o seu lado paterno senhorear a Casa de Habsburgo, teve quem lhe ensinasse tudo o que precisava, ser submissa também, mas isso pouco importava porque a sua tarefa primeira era casar com príncipe ou rei e ser mãe. Rodopiando entre salões e jardins, tudo de grande aprazimento e ostentação, passaria a maior parte da infância e juventude em Malines, junto dos irmãos Carlos, Isabel e Maria, sob a tutela da tia Margarida, irmã do pai e regente dos Países-Baixos depois de enviuvar de Felisberto II, duque de Sabóia.
As viagens de dona Leonor tiveram rumos bem diversos daqueles que os humanistas traçaram para levar as palavras que mudariam as mentalidades desse tempo. A princesa tinha o porvir traçado, não podia fugir dele, um destino que a conduzirá por vários reinos europeus, perseguindo uma felicidade que teimou em fugir-lhe: foi princesa na Flandres natal até aos dezassete anos, infanta de Espanha por pouco tempo, rainha de Portugal sem sequer chegar a aprender a língua portuguesa; rainha de França sem dormir com o rei; outra vez, a Flandres, quando o seu esplendor entristeceu, e, por fim, o regresso às origens maternas, a Espanha, onde, num último esforço, procurou aproximar-se do bem mais precioso que deixara em Portugal, a sua filha dona Maria de Portugal.
Como todas as almas dedicadas a Deus, dona Leonor de Áustria não interferirá no seu destino. A princesa, embora filha de mãe castelhana, tivera as suas raízes culturais no ambiente que a rodeou, nas pessoas que a acompanharam, educaram ou divertiram, de modo a fazer crescer a dama excepcional que foi. Dizem que estudou Ciências, História, Gramática, Música, não terá estudado Oratória, isso era coisa de homens, exercício usado nos debates sobre a política ou a guerra. Sem dúvida que exibia modos e maneiras de grande sensibilidade e bom gosto, falaria francês e flamengo, línguas em que a tia Margarida e os irmãos Carlos, Isabel e Maria se expressavam também, bem melhor do que no castelhano falado pela mãe e por outros dois irmãos, Fernando e Catarina, jovens que, ao contrário dos manos do Norte, só saíram de Espanha para assumir compromissos que o irmão mais velho, Carlos, lhes proporcionaria: o primeiro, já adulto, para tomar conta do Sacro Império Romano-Germânico, a segunda, aos dezoito anos, para casar em Portugal. Quando a adolescência começou a provocar o pensamento jovem da princesa e a beleza anseios masculinos, o poeta Olivier de la Marche dedicou-lhe um poema com trezentos e cinquenta versos, um exagero difícil de reproduzir, mas revelador do que dona Leonor representava na corte:

Sou ordenado para ser governado
por uma filha de Rei e de imperador.
É a Senhora Aliénore da Áustria.
Sou dela, e não vou ser mesquinho
semear fruto louvado e virtudes
Diante da Dama que eu amo mais!

Por pouco tempo dona Leonor teve o exclusivo filial. Qual relógio afinado, sua mãe foi preenchendo os berços que havia nos palácios por onde dividia, com Filipe, os fluidos amorosos, uma produção tal que contribuiu com numerosas hipóteses de casamento para os vários reinos de então: em 1498, nasceu dona Leonor; Carlos, em 1500; no ano seguinte, nasceria dona Isabel; Fernando, em 1503; dona Maria, em 1505; e, por último, já sem marido, mas com a encomenda no ventre, dona Joana deu à luz uma menina, em 1507, a princesa Catarina, com a qual viveu até esta se casar.
A exuberante fertilidade de Joana e Filipe expressaria paixão, amor, manifestações de felicidade’ Não era preciso! Os grandes senhores juntavam os seus filhos para fazer crescer os espólios, fossem eles cabeças coroadas, nobres e mesmo a burguesia florescente, sendo que os filhos, muitos ou poucos, seriam o prolongamento das suas Casas. Então porque tinham tantos filhos?» In Jorge Sousa Correia, A Traição de D Manuel I, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-262-5.

Cortesia de CAutor/JDACT

De Princesa a Rainha-velha. Leonor de Lencastre. Isabel Guimarães Sá. «Para a nossa história, contam portanto os filhos sobreviventes: Leonor, Isabel, duquesa de Bragança, e Manuel, que foi rei de Portugal. Diogo fará apenas uma breve aparição nesta biografia, em que morrerá apunhalado pelo cunhado»

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Dona Leonor e os irmãos
«(…) O historiador nem sequer pode garantir que dona Leonor tivesse convivido da mesma maneira com todos os seus irmãos durante a infância. Sabemos, por indicadores indirectos, no entanto, que esteve muito ligada aos três irmãos que sobreviveram. De Diogo, arrancado da sua companhia quando andaria pelos 20 anos e ela 26, sabemos que a sua morte lhe causou um desgosto violento, embora dele tenhamos um único testemunho. Mas, na idade adulta, dona Leonor conviveu prolongadamente com os dois irmãos que lhe restavam. A irmã Isabel acompanhá-la-ia toda a vida, tendo casado com o único homem cuja posição na graduatória do poder estava acima do pai de ambas. Tratava-se de Fernando, duque de Guimarães, herdeiro do título de duque de Bragança, e que viria a morrer anos depois, em 1483, acusado de conspirar contra o primo João II. No entanto, por todo o século XVI, episódio da extinção da sua casa à parte, seriam os duques de Bragança distinguidos do ponto de vista protocolar com a posição imediata a seguir ao rei. Seria, de resto, terminada a União Dinástica, a casa senhorial de onde sairia o rei da nova dinastia dos Bragança, João IV aclamado em 1640.
Isabel morreria em Abril de 1521, e o outro irmão de dona Leonor, o rei Manuel I, em Dezembro do mesmo ano. Dona Isabel foi sepultada ao lado de dona Leonor, numa demonstração clara da relação que mantiveram em vida, consubstanciada na ligação ao Convento da Madre de Deus de Xabregas. Dos outros irmãos de dona Leonor, quatro morreriam crianças e praticamente não aparecem nas fontes: Catarina, Duarte, Dinis e Simão. Apenas há indícios de que Duarte viveu até aos 10 anos de idade, tal como o filho varão mais velho, que, por herdar a casa e o título do pai, aparece mais vezes. Note-se que, mesmo que dona Leonor fosse mais velha do que os irmãos, estava fora de questão suceder fosse no que fosse em havendo herdeiros masculinos. Apenas no caso de estes desaparecerem podia o rei criar uma situação de excepção, autorizando-a a suceder. João morreria sem casar sucedendo no estado de seu pai, com pouca idade, cerca de 10 anos. No seguimento da morte do pai, a mãe tomou posse da ilha da Madeira em seu nome, em Outubro de 1470. Em Janeiro de 1473, no entanto, já Diogo, o irmão a seguir, lhe herdava o património, com excepção do mestrado da Ordem de Santiago, que com prazer e consentimento da dita infante [D. Beatriz] foi dado ao príncipe. Chegou este irmão à idade adulta, embora não tivesse vivido além dos 20 anos, idade em que foi morro pelo próprio rei, acusado de traição. Quanto ao irmão mais novo, Manuel, rei felicíssimo que foi destes reinos, viveria até aos 52 anos de idade, tendo morrido em 1521 após vinte e seis anos de reinado. Para a nossa história, contam portanto os filhos sobreviventes: Leonor, Isabel, duquesa de Bragança, e Manuel, que foi rei de Portugal. Diogo fará apenas uma breve aparição nesta biografia, em que morrerá apunhalado pelo cunhado. Deste trio que viveu até aos anos 20 do século XVI, Leonor, Isabel e Manuel, ficar-nos-á, no entanto, uma impressão de proximidade afectiva e de intimidade familiar.

Criação e educação de dona Leonor
Aproveito também para explicar, em jeito de nora, que tenho estado a usar termos de parentesco habituais nos nossos dias, mas que as pessoas desta época não conheciam. Palavras como sogro, sogra, nora, genro, cunhado, cunhada, entre outros, não constam na documentação. Em vez delas, usam-se pai, mãe, filho, filha, irmão e irmã. Ou seja, o casamento criava um prolongamento daquilo que hoje entendemos por família biológica (ou pelo menos imediata) no sentido estrito. Existiam no entanto os termos primo/a, tio/a com o mesmo sentido que têm actualmente. E, ainda, uma palavra especial para significar parentesco: o devido, que em muitos casos indica mesmo a existência de uma dívida, ou seja, de obrigações para com os parentes. Falava-se justamente em maior devido, para explicar que, devido à proximidade de parentesco, os deveres recíprocos aumentavam. É este portanto o quadro em que nos movemos: por uma questão prática usarei as actuais designações de parentesco, não sem ter explicado que tinham valências diferentes para a época a que nos reportamos.
Não sabemos que tipo de educação dona Beatriz deu aos filhos, nem como os criou. É pouco provável que tivesse amamentado qualquer um deles, porque o costume mandava dar os filhos a uma ama. Dona Leonor teve a sua ama, porque o sistema de reprodução nas casas nobiliárquicas assim o obrigava: as mulheres tinham uma sucessão de partos, sendo necessário evitar os períodos de infertilidade propiciados pela amamentação. O seu sucesso enquanto esposas media-se pela capacidade de dar à luz, e não havia limites para o número de filhos a gerar. Afinal, era o próprio tempo a recolocar as coisas no seu lugar: muitas das crianças acabavam por morrer. Entre os reis portugueses, pode comparar-se o rei Manuel I com João III: o primeiro teve treze filhos, dos quais nove chegaram à idade adulta e o segundo, dez, mas nenhum ultrapassou a idade de 20 anos. A sua última biógrafa falou precisamente em estrelas funestas, para designar a sucessão de mortes ocorrida entre os filhos de João III. Alguns historiadores falam em lotaria demográfica para designar a imprevisibilidade do número de filhos sobreviventes num determinado casal, bem como o eventual desequilíbrio entre o número de filhos e filhas». In Isabel Guimarães Sá, De Princesa a Rainha-velha, Leonor de Lencastre, colecção Rainhas de Portugal, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-709-0.

Cortesia de CLeitores/JDACT

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «Quem era, na verdade, Ignazio de Toledo, ninguém sabia dizê-lo ao certo. Por vezes era considerado sábio e culto, outras vezes, desleal e necromante. Para muitos não passava de um peregrino…»

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«(…) Vivien, com a cabeça envolta numa vertigem de pensamentos, nem sequer se virou. Ouvia atrás de si o rodar do carro cada vez mais perto, prestes a apanhá-lo! Como conseguiam seguir a tal velocidade num caminho tão acidentado? Aquilo não eram cavalos, eram demónios do inferno! As palavras do perseguidor não davam margem para dúvidas, devia tratar-se de um emissário dos franco-juízes. Os Videntes queriam o Livro! E estavam dispostos a tudo para o conseguir. Iriam torturá-lo até à loucura só para saberem, só para saberem como atingir a sabedoria dos anjos. Antes a morte! Com as lágrimas nos olhos, o fugitivo puxou os freios e incitou o corcel a correr mais rápido. Mas o cavalo encostou-se demasiado à beira da ravina, e a terra, amolecida pela neve e pela lama, deslizou sob o peso dos cascos. O animal voou e Vivien voou com ele, precipitando-se, ambos, pela encosta abaixo. Durante a queda, os gritos do monge, misturados com o relinchar dos cavalos, ecoaram até se perderem no meio da tempestade. O carro parou. O sombrio cocheiro desceu e perscrutou o precipício. Agora o único a saber é Ignazio de Toledo, pensou. É preciso encontrá-lo. Levou a mão direita ao rosto, tateando uma superfície demasiado fria e dura para pertencer a um rosto humano. Com um gesto quase relutante, desapertou o cordão por debaixo do queixo e retirou a máscara vermelha que lhe escondia o verdadeiro rosto.

O Mosteiro dos Enganos
Quem era, na verdade, Ignazio de Toledo, ninguém sabia dizê-lo ao certo. Por vezes era considerado sábio e culto, outras vezes, desleal e necromante. Para muitos não passava de um peregrino que vagueava de terra em terra em busca de relíquias que vendia aos devotos e aos poderosos. Embora evitasse revelar as suas origens, os traços mouriscos, mesmo que suavizados pela carnação clara, remetiam para os cristãos que viviam em Espanha em contacto com os árabes. A cabeça totalmente rapada e a barba cinzenta conferiam-lhe um aspecto doutoral, mas eram os olhos que atraíam as atenções: duas esmeraldas verdes e penetrantes encastoadas entre rugas geométricas. A túnica cinzenta que vestia, coberta por uma capa com capuz, emanava a fragrância dos tecidos orientais impregnados dos aromas das inúmeras viagens. Alto e magro, caminhava apoiando-se num bordão. Este era Ignazio de Toledo e assim o viu, pela primeira vez, o jovem Uberto, quando, numa noite chuvosa de 10 de Maio de 1218, o pórtico do Mosteiro de Santa Maria del Mare se abriu. Por ele entrou uma figura alta encapuçada seguida por um homem louro que se escondia por detrás de um enorme baú.
Reconhecendo imediatamente o forasteiro, o abade Rainerio de Fidenza, que acabara de recitar o ofício de vésperas, foi ao seu encontro. Mestre Ignazio, há quanto tempo!, exclamou, benévolo, abrindo caminho por entre as filas de monges. Recebi a notícia da vossa chegada. Estava impaciente por voltar a ver-vos. Venerável Rainerio, Ignazio esboçou uma vénia, deixo-vos como um simples monge e encontro-vos abade. Rainerio era tão alto como o mercador de Toledo, mas mais gordo. Um nariz aquilino dominava o seu rosto. Os cabelos castanhos e curtos caíam-lhe em cachos desordenados pela testa. Antes de continuar, baixou os olhos e fez o sinal da cruz: assim quis o Senhor. Maynulfo de Silvacandida, o nosso velho abade, faleceu no ano passado. Uma grave perda para a nossa comunidade. A esta notícia, o mercador respondeu com um suspiro de amargura. Não fazia fé na vida dos santos e não confiava nas propriedades milagrosas das relíquias que com frequência transportava de terras longínquas.
Mas Maynulfo, esse, era com certeza um santo. Nunca, nem mesmo depois de ter sido nomeado abade, renunciara à vida eremítica. Costumava retirar-se periodicamente para um local fora do mosteiro para rezar, longe de tudo. Nomeava um vigário, punha uma sacola a tiracolo e caminhava até chegar a um ermo entre os canaviais da lagoa próxima. Aí, na solidão, cantava os salmos e jejuava. Ignazio recordou a noite em que o conhecera. Nesses tempos, em fuga desesperada, escondera-se precisamente nesse ermo. Maynulfo acolhera-o e oferecera-se para o ajudar, e o mercador compreendera que podia revelar-lhe o seu segredo. Quinze anos se passaram e naquele momento a voz de Rainerio ressoava aos seus ouvidos dissipando as recordações: morreu no ermo, não resistiu aos rigores do Inverno. Todos insistíamos para que fizesse o retiro na Primavera, mas ele dizia que o Senhor o chamava para o recolhimento. Decorridos sete dias encontrei-o morto na sua cela. Do fundo da nave, o suspiro amargurado de alguns monges fez-se ouvir.
Mas dizei-me, Ignazio, continuou Rainerio, reparando na tristeza que se apoderara do mercador, quem é o companheiro silencioso que vos acompanha? O abade observava o homem louro que se mantinha de pé ao lado do mercador. Muito jovem, para dizer a verdade. Os cabelos compridos, ligeiramente ondulados, emolduravam-lhe o pescoço pousando depois nas costas robustas. Os olhos azuis pareciam os de um rapazito, mas os contornos do rosto eram marcados, esculpidos pela expressão rígida dos maxilares. O homem deu um passo em frente e fez uma ligeira inclinação para se apresentar. Falou com o acento da langue d'oc, marcado por uma cadência imprecisa e exótica: Wilialme de Béziers, venerável padre. O abade sobressaltou-se. Sabia muito bem que a cidade de Béziers fora o covil de uma seita de hereges. Deu um passo atrás e fitou o desconhecido, sussurrando entre os dentes: Albigenses…»
In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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