sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Camila. A Virgem Guerreira. João Nunes Torrão. «Terá esta diferente maneira de vestir algo a ver com o seu comportamento guerreiro? É que, no tempo em que andava coberta com uma pele de tigre, conseguia vencer, sem dificuldade, os animais da floresta, apesar de ser ainda uma criança»

Cortesia de wikipedia

«(…) Na realidade, Camila fica cega para tudo o resto; os seus olhos só vêem o guerreiro Cloreu:

unum ex omni certamine pugnae
caeca sequebatur totumque incauta per agmen
femineo praedae et spoliorum ardebat amore,

Era apenas a ele que, em todas as refregas, perseguia, na sua cegueira e,
sem precaução [corria] por todo o campo, numa ânsia bem feminina por
aquela presa e por aqueles despojos.

E assim esta enorme sede de despojos acaba por se transformar numa sombra fatal para Camila e para as tropas que estavam sob o seu comando. A caracterização desta figura apresenta, contudo, alguns pontos que permanecem na obscuridade. De facto, quando era uma criança de tenra idade, vai com o seu pai, Métabo, para o exílio. Mais tarde, porém, surge perante o leitor como rainha incontestada dos Volscos, povo que tinha afastado Métabo do trono e do seu território através de uma perseguição impiedosa. Como se verifica este regresso à pátria e ao trono de onde o seu pai fora expulso? Virgílio nada nos diz sobre o assunto. Associada a esta diferença na maneira de viver, aparece também uma maneira diferente de se vestir. Enquanto criança e jovem caçadora, Camila envergava como vestuário uma simples pele de tigre, e este facto é apontado por Diana como um motivo de orgulho, dado o contraste estabelecido:

Pro crinali auro, pro longae tegmine pallae
tigridis exuuiae per dorsum a uertice pendent.

Em vez de um gancho de ouro no cabelo, em vez de um longo vestido, é uma
pele de tigre que, desde a cabeça, lhe pende pelas costas.

Quando, porém, se apresenta como rainha dos Volscos, já aparece adornada com um belo manto de púrpura e com um gancho de ouro no cabelo, fazendo com que todos fiquem admirados com a sua beleza. Mais tarde ainda, não contente com as suas ricas vestes reais, vai perseguir um guerreiro, só porque ele vem adornado com vestes ricas e vistosas. Terá esta diferente maneira de vestir algo a ver com o seu comportamento guerreiro? É que, no tempo em que andava coberta com uma pele de tigre, conseguia vencer, sem dificuldade, os animais da floresta, apesar de ser ainda uma criança; quando, porém, aparece ricamente vestida e, sobretudo, quando deseja os vistosos despojos dos outros, apesar de vencer uma série de guerreiros, acaba por suportar em si própria a dureza da morte. Mas, haverá alguma razão para a existência destes pontos obscuros na figura de Camila?
A este facto não serão, naturalmente, estranhos os diferentes modelos que Virgílio utilizou no desenho desta sua virgem guerreira. Na verdade, foram vários os elementos que contribuíram para o esboço desta personagem. Camila é, antes de mais, uma personagem itálica, ainda que não conheçamos com muita profundidade os elementos locais de que Virgílio se terá servido, pois o Mantuano é o único autor que dela nos fala. Em contrapartida, sabemos que no delineamento desta jovem heroína entraram elementos de algumas personagens mitológicas, nomeadamente Hipólito, Pentesileia e Harpálice.
Hipólito é o modelo de fundo. O amor de Ártemis, tal como o amor de Diana em relação a Camila, é uma das grandes linhas de orientação da vida de Hipólito, mas, em ambos os casos, a protecção concedida por estas deusas não impede que elas se afastem no momento da morte. Além disso, uma das ocupações predilectas de Ártemis é a caça e, por isso, Hipólito passa a sua vida nesta tarefa, como vai acontecer com Camila antes de ir para a guerra. Pentesileia é, como sabemos, a rainha das Amazonas que, após a morte de Heitor, participa na guerra de Tróia, onde é morta por Aquiles. Trata-se, pois, de uma mulher que desempenha as altas funções de rainha no meio de um povo que tinha a particularidade de ser constituído só por mulheres, uma vez que os homens que aí eram admitidos se destinavam apenas a trabalhos servis e à procriação. Esta facto implica que a corte da rainha teria de ser obrigatoriamente feminina e isto vem realçar ainda mais a semelhança com Camila, que nos aparece rodeada por uma corte formada apenas por virgens como ela». In João Manuel Nunes Torrão, Camila, A Virgem Guerreira, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT