sábado, 19 de setembro de 2015

A Lei dos Varões. Maurice Druon. «As rainhas usam luto branco. Branca, a faixa de tecido fino que envolvia o pescoço, aprisionando o queixo até a boca e deixando aparecer apenas o centro do rosto; branco, o grande véu que cobria a fronte e as sobrancelhas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Durante trezentos e vinte e sete anos, da eleição de Hugo Capeto até a morte de Filipe, o Belo, somente onze reis se sucederam, deixando todos um filho para receber a coroa de França. Dinastia prodigiosa, que o destino parecia ter marcado para a durabilidade e para a permanência! Entre aqueles onze reinos, só dois cobriram um período menor que quinze anos. Aquela extraordinária continuidade no exercício e na transmissão do poder, tinha permitido, e talvez mesmo determinado, a formação da unidade nacional. O vínculo feudal, puramente pessoal de vassalo para suserano, do mais fraco para o mais forte, ia sendo substituído progressivamente por outro vínculo, por aquele outro contrato que une os membros de uma vasta comunidade humana, por muito tempo submetida às mesmas vicissitudes e às mesmas leis. Se a ideia de nação ainda não era evidente, seu princípio, sua representação, já existiam na pessoa real, fonte suprema de autoridade e supremo recurso. Quem pensasse em, o rei, pensava também em, a França. E Filipe, o Belo, durante toda a sua vida, aplicara-se em cimentar aquela unidade nascente, pela forte centralização administrativa e pela destruição sistemática dos poderes exteriores ou particulares.
Ora, mal o Rei de Ferro desapareceu, seu filho Luís X o seguiu ao túmulo. O povo, diante daquelas duas mortes sobrevindas uma após a outra, ferindo reis em plena força da vida, não podia deixar de ver nisso o signo da fatalidade. Luís X, o Turbulento, reinara dezoito meses, seis dias e dez horas. Não fora necessário mais tempo àquele lastimável monarca para arruinar em grande parte a obra de seu pai. Durante o seu governo, a rainha fora assassinada e o primeiro-ministro enforcado. A fome assolara a França, duas províncias revoltaram-se, um exército inteiro afundou-se na lama da Flandres. A alta nobreza retomava a dianteira sobre o poder real, a reacção era todo-poderosa e o tesouro estava a seco. Luís X ascendera ao trono quando o mundo estava sem papa, e partia sem que se tivesse ainda chegado a um acordo sobre a escolha de um pontífice. Deixava a cristandade à beira do cisma. Agora, a França estava sem rei.
Porque, de seu casamento com Margarida de Borgonha, Luís X deixava apenas uma filha de cinco anos, Joana de Navarra, sobre a qual pesavam fortes suspeitas de bastardia. De seu segundo casamento ficava somente uma esperança: a Rainha Clemência estava grávida, mas só daria à luz dentro de cinco meses. Enfim, dizia-se, abertamente, que o Turbulento fora envenenado. Nada tendo sido previsto para a organização da regência, as ambições pessoais atirar-se-iam ao assalto do poder. Em Paris, o conde de Valois tentava fazer-se reconhecer como regente. Em Dijon, o duque de Borgonha, irmão de Margarida, a assassinada, e chefe de poderosa liga baronial, ia empreender a vingança da morte de sua irmã, fazendo-se campeão dos direitos de sua sobrinha. Em Lion, o conde de Poitiers, primeiro irmão do Turbulento, via-se envolvido nas intrigas dos cardeais e esforçava-se inutilmente por obter uma decisão do conclave. Os flamengos só aguardavam ocasião propícia para retomar as armas, e os senhores d’Artois continuavam sua guerra civil. Seria preciso tanto para que a memória do povo recordasse o anátema lançado pelo grão-mestre dos Templários, dois anos antes, do alto de sua fogueira? Numa época disposta às crendices, não seria difícil perguntar, a si próprio, naquela primeira semana de Junho de 1316, se a raça dos Capetos não estaria, dali por diante, maldita.

A Rainha Branca
As rainhas usam luto branco. Branca, a faixa de tecido fino que envolvia o pescoço, aprisionando o queixo até a boca e deixando aparecer apenas o centro do rosto; branco, o grande véu que cobria a fronte e as sobrancelhas; branco, o vestido fechado nos punhos e tombando até os pés. Esse era o trajo quase monacal que acabava de vestir, provavelmente pelo resto da vida, a rainha Clemência da Hungria, viúva aos vinte e três anos do rei Luís X, depois de dez meses de casamento. Dali por diante ninguém mais veria seus admiráveis cabelos de ouro, nem o oval perfeito de seu rosto, nem aquele brilho, aquele tranquilo esplendor, que tinham impressionado os que dela se aproximavam, e tornado célebre a sua beleza. A máscara estreita e patética, que se recortava agora entre aqueles linhos imaculados, trazia a marca das noites de insónia e dos dias de lágrimas. O próprio olhar modificara-se: não se fixava em nada de preciso, e parecia flutuar à superfície dos seres e das coisas. A bela rainha Clemência já assumira o aspecto que teria a sua estátua jacente.
Entretanto, sob as pregas de seu trajo, nova vida se ia formando. Clemência esperava um filho, e o pensamento de que seu esposo jamais o conheceria obsecava-a. Se Luís tivesse vivido ao menos o bastante para vê-lo nascer!, dizia consigo. Cinco meses, somente cinco meses mais! Como ficaria alegre, especialmente se fôr homem... Por que não fiquei grávida desde nossa noite de núpcias!... A rainha voltou a cabeça, com um gesto frágil, para o conde de Valois, que, em passo de galo gordo, andava de cá para lá através do aposento. Mas por que, meu tio, por que haviam de envenená-lo tão perversamente?, perguntou ela. Não praticava todo o bem que podia? Por que procurais sempre a perfídia dos homens onde, sem dúvida, é a vontade de Deus que se manifesta?» In Maurice Druon, A Lei dos Varões, 1957, tradução de Nair Lacerda, Gótica, colecção Cavalo de Tróia, 2006, ISBN 978-972-792-167-6.

Cortesia de Gótica/JDACT