segunda-feira, 30 de abril de 2018

Moll Flanders. Daniel Defoe. «O irmão mais novo, que também estava ali, exclamou, cuidado, minha irmã, você está indo depressa demais; sou uma excepção a sua regra, asseguro-lhe que se encontrar uma mulher com todos esses dotes não me comoverei em nada com dinheiro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Depois de haver iscado o anzol e de ter maquinado tão facilmente o método para colocar o chamariz no meu caminho, passou a praticar um jogo mais aberto, e um dia, passando diante do quarto da irmã quando eu ali estava, ajudando-a com alguma costura, entrou com um ar de jovialidade, ah, senhora Betty!, disse, como está, senhora Betty?, as suas faces não estão ardendo, senhora Betty?; fiz-lhe uma mesura, nada respondi; o que o leva a falar assim, irmão?, perguntou-lhe a irmã; ora, é que estivemos falando sobre ela lá em baixo durante meia hora, respondeu ele; bem, disse a irmã, nada de mau você poderia dizer dela, não tenho dúvida, por isso, pouco importa o que estiveram falando; é verdade, ele disse, estivemos longe de falar mal dela, pelo contrário, estivemos falando bastante sobre ela, e posso garantir que foram ditas muitas coisas a favor da senhora Betty e, principalmente, que é a jovem mais bonita de Colchester e, em suma, que já começam a brindar na cidade a sua saúde.
Você me surpreende, irmão, disse a moça, a Betty só falta uma coisa, mas é como se lhe faltasse tudo, pois as mulheres estão em desvantagem na sociedade, e assim digo porque se uma jovem tem beleza, nascimento, educação, espírito, circunspecção, bons modos e recato, e tudo isso de forma extremada, porém carece de dinheiro, não é ninguém, e é como se lhe faltassem todas aquelas qualidades, porque hoje em dia o dinheiro é a única coisa que recomenda uma mulher; nesse jogo, os homens recebem todas as boas cartas. O irmão mais novo, que também estava ali, exclamou, cuidado, minha irmã, você está indo depressa demais; sou uma excepção a sua regra, asseguro-lhe que se encontrar uma mulher com todos esses dotes não me comoverei em nada com dinheiro. Ah, replicou sua irmã, nesse caso você fará questão de não se encantar com uma sem dinheiro.
Está aí uma coisa que não tem como afirmar, disse o irmão mais jovem. Mas, irmã, disse o irmão maior, porque critica com tamanha veemência os homens que procuram fortuna?, não está entre aquelas que carecem de fortuna, embora talvez lhe faltem outros atributos. Entendo o que você diz, redarguiu a moça, com espírito, mas suponha que eu tenha dinheiro e me falte beleza; nos tempos que correm, prevalecerá a primeira vantagem, mesmo sem a segunda, e portanto levarei a melhor sobre as minhas concorrentes.
No entanto, atalhou o irmão mais novo, as suas concorrentes, como lhes chama, poderão ajustar contas consigo, pois muitas vezes, apesar do dinheiro, a beleza pode roubar um marido, e quando a criada é mais bonita que a patroa, com frequência faz também um bom negócio e passa de carruagem diante dela. Entendi que chegara a hora de me retirar e deixá-los e assim fiz, não me afastando tanto que não escutasse todas as palavras que diziam, entre elas uma abundância de boas coisas a meu respeito, que serviram para afagar a minha vaidade, mas, como logo viria a descobrir, não era esse o melhor caminho para aumentar o conceito em que a família me tinha, pois a irmã e o irmão mais novo entabularam uma discussão acalorada, e como ele, usando-me como referência, disse-lhe coisas muito pouco afáveis, pude perceber facilmente, pela posterior conduta dela em relação a mim, que ficara ressentida com tais comentários, o que, na verdade, era injusto comigo, porque eu nunca, nem de longe, supusera o que ela suspeitava de seu irmão mais novo; na realidade, com o seu jeito distante e remoto, o irmão mais velho dissera muitas coisas, como que de brincadeira, que fui bastante tola para acreditar que eram sérias, ou para me iludir com esperanças de coisas que deveria ter imaginado que ele não pretendia nunca e em que talvez nem tivesse pensado». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

domingo, 29 de abril de 2018

Moll Flanders. Daniel Defoe. «… e por fim as moças ganharam dois instrumentos, isto é, um cravo e uma espineta (precedeu o cravo), e elas mesmas me ensinaram; quanto à dança…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eu acabava de ser acolhida, como disse, por essa boa dama, quando a primeira senhora, isto é, a mulher do prefeito, mandou que as duas filhas cuidassem de mim, e outra família, que me conhecera quando eu era a daminha e tinha-me dado trabalho para fazer, também mandou buscar-me, depois da outra, de maneira que eu estava sendo muito requisitada, como podem ver, e além do mais se mostraram não pouco aborrecidas, principalmente a senhora prefeita, com o facto de sua amiga me ter tirado dela, como se expressou, porque, segundo dizia, eu era sua por direito, já que ela fora a primeira que havia prestado atenção em mim; a família que me tinha consigo não quis que eu a deixasse, e quanto a mim, seria muito bem-tratada com qualquer uma das outras e não poderia estar melhor do que estava. Ali permaneci até entre os dezassete e os dezoito anos, desfrutando de todas as oportunidades que se possam imaginar para minha educação; a senhora tinha em casa professores que ensinavam as filhas a dançar e a falar francês, e também a escrever nessa língua; havia também outros que lhes ensinavam música, e, como eu estava sempre junto das meninas, aprendi tão depressa quanto elas, e embora esses mestres não fossem contratados para me ensinar, eu aprendia por imitação e curiosidade, tudo que elas aprendiam por instrução e orientação; para resumir, aprendi a dançar e a falar francês tão bem quanto qualquer uma delas, e a cantar muito melhor, porque tinha melhor voz; não pude chegar a tocar o cravo e a espineta a contento, por não possuir um instrumento que fosse só meu para estudar, e só nos intervalos, quando os deixavam, o que era incerto, podia tocar os instrumentos que elas usavam; acabei aprendendo a tocá-los razoavelmente, e por fim as moças ganharam dois instrumentos, isto é, um cravo e uma espineta (precedeu o cravo), e elas mesmas me ensinaram; quanto à dança, era quase inevitável que me ajudassem com as danças campestres, porque sempre precisavam de mim para completar dois pares; por outro lado, estavam tão dispostas a ensinar-me tudo o que haviam aprendido quanto eu a aprender.
Assim, como disse anteriormente, tive todas as vantagens de uma educação que, de outra forma, só poderia ter recebido se fosse uma dama como aquelas jovens com quem vivia, e em certos aspectos eu levava vantagem sobre elas: ainda que tivessem tido melhor berço, os meus dons eram naturais, e toda a fortuna não lhes poderia dar outros iguais, em primeiro lugar, eu era, de aparência, muito mais bela do que qualquer uma delas; segundo, era mais bem-feita; e terceiro, cantava melhor, isto é, tinha melhor voz, e assim julgando, espero que me permitam dizer, não expresso o conceito que eu fazia de mim mesma, e sim a opinião de todos os que conheciam a família.
Além de tudo, eu tinha a vaidade comum do meu sexo, ou seja, sabendo ser vista como atraente ou, se preferirem, como verdadeira beldade, tinha a respeito de mim mesma opinião tão boa quanto a de qualquer pessoa e gostava especialmente de ouvir os elogios da boca alheia, o que ocorria com frequência e causava-me grande satisfação. Até aqui a minha história havia corrido sem maiores sobressaltos, e nesse período de minha vida não só todos sabiam que eu vivia com uma família magnífica, louvada e respeitada pelas suas virtudes, pela sobriedade e por muitas outras qualidades, como também era conhecida como uma jovem assaz judiciosa, modesta e virtuosa, e assim fora sempre; tampouco tivera algum dia oportunidade para pensar em nada que não fosse assim ou de saber o que significava a tentação do mal.
Aquilo que mais me envaidecia fez com que eu me perdesse, ou, em outras palavras, a vaidade foi a causa de minha perdição; a dona da casa em que eu vivia tinha dois filhos, jovens cavalheiros muito promissores e de conduta admirável, e foi a minha desdita estar bem com os dois, pois cada um deles se houve comigo de modo bastante diferente.
O mais velho, um cavalheiro folgazão que conhecia tanto a cidade quanto o campo e que, mesmo leviano o bastante para cometer más acções, era demasiado sensato para pagar caro demais pelos seus prazeres, armou aquela triste armadilha em que caem todas as mulheres, isto é, aproveitou todas as ocasiões para me dizer o quanto eu era linda, como dizia ele, agradável, de porte admirável e outras coisas desse teor; e obrou com extrema subtileza, como se dominasse a ciência de prender uma mulher na sua rede tão bem quanto aprisionava uma das suas perdizes quando ia à caça, pois urdia tudo de forma a dizer tais coisas às irmãs quando, embora eu não estivesse junto delas, ele sabia que eu não estava muito longe e com certeza o escutaria; as suas irmãs diziam baixinho, cale-se, irmão, que ela pode ouvir, está no quarto ao lado!, e ele interrompia o que vinha dizendo e baixava a voz, fingindo ignorar o facto, e admitia que havia errado; daí a pouco, como se se tivesse esquecido, falava de novo em voz alta, e eu, que me comprazia tanto em ouvir tais elogios, não perdia ocasião de escutá-lo». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

sábado, 28 de abril de 2018

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina Cunha. «Do ponto de vista da mobilidade dos membros da Ordem de Avis, parece-nos de realçar que a relação entre monarquia e milícia terá forçosamente implicado deslocações dos cavaleiros»

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A mobilidade interna na Ordem de Avis (século XII-XIV)
«(…) A proximidade existente entre monarquia e Ordem militar, se bem que matizada com confrontações esporádicas motivadas por assuntos de carácter variado e pontual, está também patenteada na presença do mestre (e provavelmente de mais alguns cavaleiros) na corte régia e na sua participação na política geral do reino. Se comparativamente a outras ordens militares a presença na corte e a colaboração da Ordem de Avis na política externa do reino se possa considerar no mínimo, bastante discreta, ela certamente terá existido, tanto mais que se tratava de uma milícia ligada a outra sediada no reino de Castela. Já nos referimos a este aspecto em trabalho anterior, a propósito da ocupação do Algarve por Afonso III em meados do século XIII: na luta então travada entre os monarcas português e castelhano pela jurisdição do Algarve, a Ordem de Avis desempenhou um papel nuclear, ao aceitar a doação do castelo de Albufeira tanto das mãos de Afonso III de Portugal (em 1250) como das de Afonso X de Castela (em 1257). Como tivemos oportunidade de realçar, a Ordem de Avis mostrou-se então disponível para demonstrar que tinham viabilidade as soluções propostas pela monarquia castelhana para resolver aquele que era, na altura, o ponto nevrálgico das relações diplomáticas entre os dois reinos (i.e., a quem pertenceria o reino do Algarve, recentemente reconquistado).
Mas se, por um lado, a ligação a uma ordem militar castelhana podia tornar a Ordem de Avis uma peça essencial nas relações entre os monarcas de ambos os reinos, como acabamos de ver, por outro ela pode explicar a (aparentemente) reduzida actividade diplomática da milícia, ao serviço dos reis de Portugal. De facto, é possível que a sensibilidade pró-castelhana que desde cedo se encontra em Avis tenha contribuído para um clima de alguma desconfiança dos monarcas relativamente à Ordem. Contudo, não podemos deixar de colocar a hipótese dos diferentes reis terem colocado essa mesma sensibilidade ao seu serviço. Já aludimos à questão do Algarve. Cerca de 100 anos mais tarde, a participação de fr. Gonçalo Vaz, mestre de Avis, numa embaixada solene a Castela (em 1335), com o objectivo de pedir ao infante João Manuel a mão de sua filha, dona Constança, para o filho do monarca português, pode ter esse significado.
Do ponto de vista da mobilidade dos membros da Ordem de Avis, parece-nos de realçar que a relação entre monarquia e milícia terá forçosamente implicado deslocações dos cavaleiros, sobretudo dentro do reino, embora raramente tenhamos provas concretas de tal facto ter acontecido, nomeadamente depois de terminada a Reconquista. O fim do anúncio das testemunhas e confirmantes nos diplomas régios, bem como a organização mais complexa da administração central que se verifica ao longo do século XIV (patente no teor diplomático dos actos), não nos permite aferir da presença dos mestres de Avis, ou dos seus procuradores, na Corte.
Tendo em conta o processo de formação da Ordem de Avis e do seu património, facilmente se entende que desde sempre os seus membros tenham conhecido alguma mobilidade interna: a doação de castelos e lugares à Ordem por parte dos primeiros monarcas portugueses, em resultado do auxílio militar prestado na Reconquista, obrigou à própria dispersão dos freires. De facto, a defesa das praças obrigava naturalmente à presença nesses locais de um contingente de cavaleiros da milícia, pelo que, logo desde os seus primórdios alguns freires foram afastados do convento central. Por outro lado, a necessidade de organizar o património que, sobretudo ao longo dos séculos XIII e XIV, a ordem foi adquirindo (nomeadamente através de doações, régias e de particulares, mas também de compras), levou à criação de comendas que se estendiam de Norte a Sul do País. À frente de cada um destes territórios, estava naturalmente, um comendador, que, segundo a regra, aí devia residir». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

CortesiaFdeLetrasPorto/JDACT

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina Cunha. «… alguns capitães e senhores de Castela, dos quais era Afonso Pires Gusmão, se ajuntaram, não para dar batalha a el-Rei Dinis I, mas para entrar, como entraram com muitas gentes da Andaluzia»

jdact

A mobilidade interna na Ordem de Avis (século XII-XIV)
«(…) Não sabemos qual foi a posição da Ordem de Avis nos conflitos que caracterizaram o reinado de Sancho II e que estiveram na base da sua deposição. A actividade militar não deve, porém, ter sido abandonada. E assim se explica a participação dos cavaleiros de Avis na conquista do Algarve em meados do século XIII e a participação, ao lado do rei Fernando III de Castela, na tomada de Sevilha em 1248.
Terminada a Reconquista em território português, a Ordem de Avis terá continuado a participar activamente na defesa do reino, e na construção e manutenção de várias fortalezas. Simultaneamente, a monarquia tentava controlar a milícia de uma maneira mais ou menos eficaz, atitude que a nosso ver se entende enquadrada, por um lado, no conjunto de medidas tendentes à centralização régia que os vários monarcas, desde Afonso II, vinham tomando, e, por outro, na perspectiva mais global de estabelecimento das fronteiras entre os reinos de Portugal e da Castela. Com efeito, sabemos que a presença e deslocações dos cavaleiros nos territórios que lhe haviam sido doados nomeadamente junto à fronteira com o reino vizinho estão relacionados com a actividade militar. No final do século XIII esta terá sido mesmo imprescindível: a Crónica de Dom Dinis refere um episódio ocorrido após 1295, que revela bem o que acabamos de verificar:

Depois do monarca Dinis I ter entrado em Castela pelas Comarcas de Cidade Rodrigo e Ledesma, alguns capitães e senhores de Castela, dos quais era Afonso Pires Gusmão, se ajuntaram, não para dar batalha a el-Rei Dinis I, mas para entrar, como entraram com muitas gentes da Andaluzia e da sua frontaria, da qual entrada mataram e cativaram de Portugal muitos homens e mulheres (...). Ao encontro do qual saiu o Mestre de Avis, com as gentes que pôde, e houveram ambos dura peleja, em que houve muitas mortes e danos de ambas as partes, no fim da qual foi o mestre vencido por as menos gentes que tinha, e muitos dos seus foram mortos, e novecentos cativos (...).

Tendo em conta o que acima afirmámos, o monarca Dinis, tal como os reis que o precederam, sempre procurou manter a Ordem ao seu serviço: os motivos expressos nas doações que lhe faz ao longo do seu reinado mostram-nos claramente o que acabamos de afirmar (polo muito serviço, en galardom do serviço que mi fez, por muyto serviço que [..] a dicta ordim e convento fezestes a mim e aaqueles onde eu venho). Mas foi a intromissão régia no processo de eleição de um dos mestres (Garcia Peres) que provocou a ida à corte de alguns comendadores. Em 1311, o mestre eleito pelos Treze não agradou à totalidade dos freires, que, receosos de perderem as comendas e os benefícios que detinham, recorreram ao rei. Este garantiu junto de Garcia a manutenção das dignidades e cargos nos cavaleiros que anteriormente os detinham, e, simultaneamente, autorizou, ultrapassando um dos preceitos da Regra da Milícia, que qualquer freire que se sentisse lesado nos seus direitos pudesse a ele recorrer directamente». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

CortesiaFdeLetrasPorto/JDACT

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina Cunha. «Um deles é a mobilidade dos membros da Ordem: apesar de existirem no cartório de Avis, actualmente depositado na Torre do Tombo»

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A mobilidade interna na Ordem de Avis (século XII-XIV)
«(…) As reflexões que agora se apresentam enquadram-se num estudo mais vasto que temos vindo a efectuar sobre a Ordem Militar de S. Bento de Avis no período que vai desde as suas origens, cerca de 1176, até finais do século XIV, e do qual resultaram vários trabalhos que permitiram conhecer não só a evolução geral da milícia e o modo de constituição do seu património, mas também o seu relacionamento com a monarquia portuguesa naquele lapso de tempo. Há, contudo, alguns aspectos que a análise da documentação nos tem sugerido, e que, tanto quanto sabemos, nunca foram abordados de uma forma sistemática. Um deles é a mobilidade dos membros da Ordem: apesar de existirem no cartório de Avis, actualmente depositado na Torre do Tombo, apenas alguns documentos que se referem de uma forma explícita à deslocação dos freires, dentro e fora do país, ela deve ter tido maior dimensão do que uma análise superficial dos actos conservados permite supor.
Assim sendo, aproveitando as informações que nos são fornecidas, não só pela documentação específica da milícia, mas também pelas crónicas dos reis de Portugal, pelos diplomas régios e por outros actos avulsos, coligimos algumas referências indirectas que testemunham a presença do Mestre ou dos cavaleiros de Avis em diversos pontos do reino. Verificamos deste modo, e num primeiro balanço, que a mobilidade dos freires de Avis está relacionada com três aspectos chave: a sua relação com a monarquia, a sua implantação territorial e a sua filiação na Ordem de Calatrava. Será exactamente por esta ordem que abordaremos o tema que agora nos ocupa.
A Milícia dos Freires de Évora, chamada Ordem (de S. Bento) de Avis depois de 1211, após a doação do lugar assim chamado por Afonso II, terá surgido entre Março de 1175 e Abril de 1176 num contexto de avanço almoada e da impossibilidade manifestada pela Ordem do Templo em assegurar eficazmente a defesa de algumas fortalezas que lhe haviam sido entregues por Afonso Henriques (1137-1185). Tendo sido ou não co-fundador da Milícia (não se sabe se a ideia da criação da milícia partiu do próprio rei, ou se apenas terá sugerido o nome do seu primeiro mestre), este monarca outorgou-lhe, logo em Abril de 1176, o castelo de Coruche e umas casas e vinhas no Alcácer velho em Évora, bem como umas casas em Santarém. Os motivos aduzidos na primeira doação afonsina são a utilitatem christianis et defensionem regni, o que aponta desde logo para a colaboração dos cavaleiros de Évora nas actividades militares régias, concretamente na defesa de fortalezas na fronteira com os mouros. É contudo possível que, além da defesa de Coruche, tivesse sido confiada aos cavaleiros de Évora a guarda do castelo dessa cidade. Foi, no entanto, preciso esperar por 1187 para que a Milícia de Évora recebesse os castelos de Alcanede e de Juromenha (este quando fosse conquistado), bem como a vila de Alpedriz. A posse destes domínios significa, em nosso entender, que nos dez primeiros anos da sua existência, a instituição monástico-militar se desenvolveu, em termos humanos, o suficiente para poder assegurar não só a manutenção destas praças, mas também a sua participação efectiva na Reconquista. Tarefa que, naturalmente, prosseguiu após a morte do primeiro rei português, ocorrida em Dezembro de 1185. A título de recompensa do serviço que então lhe prestava a milícia, Sancho I (1185-1211) doou-lhe em 1193 o castelo de Mafra. Simultaneamente, os cavaleiros colaboravam com o monarca na tarefa repovoadora do reino, outorgando cartas de foral.
No reinado de Afonso II (1211-1223), o prestígio granjeado pelos freires de Évora era já suficiente para particulares lhe fazerem doações, e os seus bens em quantidade bastante para gerar rendimentos que os cavaleiros aplicaram na compra de várias propriedades. Foi também este monarca quem, em 1211, deu à milícia o lugar de Avis, onde viria a ser construído um castelo e o convento principal da Ordem que, a partir de então, passou a ser conhecida como Ordem de Avis. E porque esta continuava assim a servir o rei a nível militar, Afonso II não só confirmou todas as doações régias anteriores, como lhe outorgou uma carta de protecção em 1217». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

CortesiaFdeLetrasPorto/JDACT

Ensaio sobre os Latinismos dos Lusiadas. Carlos Eugénio Correa Silva (Paço d’Arcos). «Ao vago custaria a admitir de Sousa Viterbo opõe-se de um modo convincente a perfeita exactidão de muitos dos confrontos de Faria Sousa ou seja a semelhança»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) … que lhe serpenteavam a solarenga propriedade minhota (foi aliás a primeira impressão que teve o primeiro leitor do poema, frei Bartolomeu Ferreira, censor do Santo Ofício, maldito, que achou no poeta muito engenho e muita erudição nas ciências humanas. Há que responder a Sousa Viterbo: a grande cultura literária de Camões é atestada no poema pelo seu próprio testemunho e indirectamente pelo, conselho que ele dá aos cabos de guerra de que consagrem os seus ócios às letras. No que diz respeito aos clássicos latinos, único ponto que aqui nos interessa, conhecê-los, num literato do século XVI, era tão normal como num literato português de hoje conhecer a literatura francesa moderna (qual era o homem culto dos séculos XVI, XVII e XVIII que não sabia latim? Apontava-se a dedo. A simples leitura atenta dos Lusíadas revela a um leitor de cultura mediana,, pela super-abundância dè porme- nores mitológicos e de história antiga, uma grande erudição clássica.
Ao vago custaria a admitir de Sousa Viterbo opõe-se de um modo convincente a perfeita exactidão de muitos dos confrontos de Faria Sousa ou seja a semelhança evidente entre determinados passos, dos Lusíadas e tais outros passos de Vergílio, de Ovídio, de Horácio, de Lucano e de outros. Outro camonistá, este com dupla autoridade que lhe provinha de ser simultaneamente filólogo e humanista, Epifânio Dias, se bem que reconhecendo, o serviço enorme prestado à cultura portuguesa pelo erudito de há três séculos, emitiu todavia sobre as suas conclusões certas reservas que convém pôr em foco: Manuel Faria Sousa (1590-1649) dotou não só os Lusíadas, senão também as demais obras de Camões, de latim, dizia mais tarde Voltaire, de Shakespeare.
Portugal então não estava em atraso em relação à Europa. No Boosco delleytoso, que se situa possivelmente nos fins do século XIV (lições de filologia) há já muito humanismo. A febre humanística intensifica-se com Mateus Pisano (1460). Depois a nossa literatura quinhentista é em grande parte tributária da latina (cfr. Sá Miranda, António Ferreira). Mais ainda: o conhecimento construtivo do latim tornou-se então uma realidade; . (basta recordar os nomes de André Resende, Aires Barbosa, Jerónimo Osório, Aquiles Estaco, Diogo Teive e de outros que escreviam correntemente em latim). Sobre o valor e o culto do latim na vida mental e social do século XVI. Um comentário completo, escrito, ainda mal, em castelhano. De leitura verdadeiramente pasmosa, inflamado em sincero amor entusiástico do poeta, consumiu no seu trabalho longos anos, não deixando muito que respigar aos futuros comentadores dos Lusíadas. Tem, supérfluo é dizê-lo, erros e de feitos, mas, geralmente falando, ninguém melhor compreendeu o sentido do Poeta, não raras vezes difícil de alcançar... Outro defeito que nos descontenta sobremaneira ao percorrermos aquelas prolixas anotações, é que, não distinguindo entre verdadeiras reminiscências literárias e coincidências fortuitas que naturalmente se dão nos que tratam dos mesmos ou de análogos assuntos, Faria Sousa em tudo quer e ver inspirações dos poetas antigos e modernos, até em passos em que cita as fontes históricas das narrativas do poema. Por um dever de probidade mental, qualidade que julgo ser indispensável ao investigador, devo dizer que não tenho elementos para poder ajuizar do valor desta crítica de Epifânio Dias. Não pude compulsar no labor de todos os dias, por não se encontrar à venda e somente em raríssimas bibliotecas, o comentário célebre do seiscentista, conhecendo-o atravé das referências constantes que lhe faz a edição de Epifânio Dias. No entanto surgem logo ao espírito duas objecções: a) porque é que Epifânio Dias não aponta um facto concreto em defesa da sua afirmação, um exemplo típico em que se veja Faria Sousa tomar a nuvem por Juno e farejar uma reminiscência clássica onde apenas existe uma coincidência fortuita? b) é possível que num ou noutro pormenor Faria Sousa tenha visto uma reminiscência clássica onde ela não existia; no conjunto os seus confrontos são justificados, e o próprio Epifânio Dias centenas de vezes recorre a eles no aparato crítico da sua edição». In Carlos Eugénio Correa Silva (Paço d’Arcos), Ensaio sobre os Latinismos dos Lusiadas, 1931/35, imprensa da U. de Coimbra, 1972, Imprensa N. Casa da Moeda, Separata de O Instituto, vols. 79 a 82, à memória de Augusto Epifânio Silva Dias.

Cortesia de UdeCoimbra/INCM/JDACT

quinta-feira, 26 de abril de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. «Por um momento, surpreendeu-a que Sara, dois anos mais velha que ela, e Raquel, ainda mais velha, acatassem a sua ideia, mas ficou contente que assim fosse»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Era verdade que ela queria saber tudo sobre Deus e suas exigências, mas não pretendia passar o tempo todo mergulhada em documentos, como os escribas e pesquisadores que conheciam em Magdala, que, apesar de perigosamente influentes junto à comunidade, também eram cómicos. Nem o próprio Eli queria juntar-se a eles. Não é bem isso..., começou a explicar. Mas o que havia para adorar num templo vazio?, era o que realmente queria perguntar a Silvanus. Mas talvez ele não compreendesse.
A viagem de volta parecia mais rápida. Assim que se reuniu, no alto da colina acima de Jerusalém, e depois de seus líderes terem contado as famílias, para se certificarem de que se encontravam todos ali, a enorme caravana partiu. Com um sinal, as carruagens começaram a mover-se na direcção norte, rumo à Galileia. Alguns iriam, depois, para Jope e outros, na direcção leste, para Jericó, mas a família de Maria iria directamente para o mar da Galileia. As coisas agora pareciam mais confusas. A família de Maria e as cinco outras famílias religiosas de Magdala passaram a ficar mais próximas umas das outras, mas Maria sempre procurava um jeito de escapar. Sentia curiosidade de ver seus vizinhos do lago, e esta era a sua oportunidade. Já sabia os nomes das cidades: Cafarnaum e Betsaida; outras, como Nazaré, ficavam bem mais longe. Queria conhecer as pessoas que moravam nesses lugares. No seu grupo de Magdala, não havia outras crianças, além das suas primas distantes, Sara e Raquel, que também estavam ansiosas por novidades. Vamos dar uma escapada!, sussurrou para elas. Vamos juntar-nos a um dos outros grupos! Vamos!
Por um momento, surpreendeu-a que Sara, dois anos mais velha que ela, e Raquel, ainda mais velha, acatassem a sua ideia, mas ficou contente que assim fosse. Foram com ela, e isso é que importava. Abaixaram-se, junto às rodas das carruagens, que rangiam, e à respiração ofegante dos jumentos. Pouco depois, encontraram o grupo de Cafarnaum. Era o maior de todos, composto de pessoas já idosas e adultos, que caminhavam com dificuldade, suspirando. Havia poucas crianças no grupo e Maria e as suas primas não ficaram por ali. Cafarnaum era a maior cidade do mar da Galileia, situada no extremo norte do lago, mas se fosse como eram os seus peregrinos, deveria ser um lugar sério e aborrecido. O grupo de Betsaida parecia ser composto, na sua maioria, por pessoas devotas, afinal, fora desse grupo que surgira o rabino que destruíra os ídolos, e também não suscitou grande interesse para as crianças.
Pulando entre os grupos, o pequeno bando de exploradoras aproximou-se de um grupo totalmente desconhecido, o que não deixava de ser emocionante, quando Maria percebeu que uma menina, mais ou menos da sua idade, as vinha seguindo. Virou-se e, na sua frente, estava uma garota com uma massa de cabelos ruivos, amarrados sem muito sucesso por laços. Quem é?, perguntou. Deveria ter sido Raquel ou Sara, que eram as mais velhas, a fazer a pergunta, mas, como ficaram caladas, ela mesma o fez. Quezia, respondeu, em voz forte. Significa cássia, a flor do cinamomo. Maria olhou para ela. Era um tipo exótico, com o seu cabelo vermelho-escuro encaracolado e os olhos castanho-dourados. Cássia era um bom nome para ela. De onde é? De Magdala, respondeu. Magdala! E seu pai? Benjamim, disse.
Mas a sua família nunca mencionara Benjamim. E não estavam viajando com as outras seis famílias. Isso significava que não deveriam ser pessoas devotas, e, portanto, seriam inadequadas para a sua companhia. Havia tanta coisa em Magdala que ela não conhecia, e agora sentia vontade de conhecer. E onde é que mora? Moramos na parte norte da cidade, na subida que leva à estrada... Na parte nova da cidade. Na zona onde se reuniam os novos-ricos, amigos dos romanos. Mas..., se tinham feito a viagem como peregrinos, não poderiam ser totalmente amigos dos romanos. Quezia, disse, com a solenidade que uma criança de 7 anos podia ter, seja bem-vinda. Obrigada! E a menina balançou a sua bela cabeleira, fazendo Maria sentir um tiquinho de inveja. Se eu tivesse um cabelo desses, minha mãe ia orgulhar-se de mim. Mas do jeito que ele é, ela só acha que é banal. O próprio cabelo dela é mais espesso e brilhante que o meu. Mas se eu tivesse o cabelo de Quezia...» In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

Meninas. Maria Teresa Horta. «Primeiro uma mão e depois a outra, pernas finas e longas abertas em leque, a fugir aos dedos que ela deveria estar a estender para me arrebatar na fuga, a fim de me colocar de volta ao soalho»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Desobediência
«(…) Vínhamos da praia pelo sol do meio-dia. Muito magra e loura, ela distanciava-se de mim a distrair-se com tudo à sua roda, naquele jeito que ainda guardava de adolescente bravia e cintilante. Na véspera tinha havido uma ligeira névoa a nimbar o céu de anil, tecida por uma fina e translúcida humidade que subia do mar em dias de marés vivas. Ah!, suspirou, num sussurro de satisfação desmedida… Cheirávamos a mar e a sol e íamos deixando atrás de nós rastos irregulares de areia fina e irizada. As duas semicerrando os olhos azuis cheios de lágrimas, devido à claridade excessiva que nos atordoava. Lembro-me de que naquele começo de tarde eu seguia-a repetindo e também inventando baixinho palavras sem sentido, numa melopeia dolente que me instigava, espécie de jogo de melodias por vezes dissonantes no qual me envolvia e voava, sandálias a balouçarem na ponta dos dedos, um dos pés descalço na berma do passeio e o outro logo abaixo no chão de terra batida. Saltitando. Foi então que ouvi dizer, reticente: calça as sandálias, Lucinha…
Olhei-a e vi-a num cintilar de beleza aturdida, a fitar alheada o horizonte, e pensei: se calhar não foi ela que falou. E procurei à volta quem me teria dado aquela inesperada ordem, enquanto continuava a andar saltando como antes, embora já desconfiada. Mas ela tornou com uma pequeníssima mas aguçada ponta de irritação no tom de voz, mesmo assim ainda inalterada: calça as sandálias, Lucinha.
Foi quando o coração me desandou no peito, e pela primeira vez nos meus dois anos a fazer-me crescer para além da idade que tinha, num sobressalto do qual nem sequer sabia o significado, primeiro estranhando o próprio sentir, mas de imediato dando conta de um secreto entusiasmo de menina teimosa, como me chamavam quando queriam obrigar-me a obedecer sem recalcitrar, ainda esvaziado de qualquer pensamento de acinte. E prossegui a saltitar descalça, adorando a brasa do calor na planta dos meus pés nus. Então a minha mãe puxou-me pelo pulso magrinho de menina frágil, dedos frementes com a dureza férrea e fria da algema. E com uma voz de gume implacável, desconhecida de ambas, repetiu pela terceira vez: calça as sandálias, Lucinha!
Olhei-a nos seus grandes olhos lápis-lazúli inundados de luz e limitei-me a abanar negativamente a cabeça, seguindo descalça ora em bicos de pés ora numa corrida curta mas rápida que acabava rodopiando num salto; e no segundo seguinte estava a repetir tudo de novo, como um pássaro desejando pela primeira vez levantar voo. Implacável, ela começou a perseguir-me, e eu cada vez mais rápida tentava distanciar-me, empolgada com aquela sensação que sempre me provoca a desobediência, e que então sentia pela primeira vez. Furiosa, tentou agarrar-me e puxar-me a si, mas eu desenvencilhei-me do aperto do seu abraço e do perfume de onda que a minha mãe guardava no louro dos cabelos ondulados e ainda molhados de oceano, fugindo com ela no encalço.
Desse modo fomos até casa, onde entrei como uma flecha pela porta que a minha avó todos os dias àquela hora nos deixava entreaberta. E assim correndo atravessámos corredor, quartos e salas, de ponta a ponta, eu a escapar-lhe sem olhar para trás, magrinha, ágil, e a minha mãe a perseguir-me com o seu canto de sereia zangada. Até que chegou o momento em que me vi encurralada, entre ela que se aproximava veloz e a imensa parede branca e lisa à minha frente. Então, para seu grande espanto e perplexidade, de pura raiva desobediente, comecei a trepar pela parede como um pequeno animal perseguido, a marinhar com determinação, a fim de chegar ao tecto, ao cimo, ao topo, como se subisse a encosta íngreme de uma montanha, pequena alpinista ousada.
Primeiro uma mão e depois a outra, pernas finas e longas abertas em leque, a fugir aos dedos que ela deveria estar a estender para me arrebatar na fuga, a fim de me colocar de volta ao soalho. Menina perecível que eu era, como uma borboleta, sentia-me um anjo, como me chamava a avó, que escutava vozes, via pessoas mortas e contactava com galáxias longínquas, como a Andrómeda. Eu preferia parecer-me com um anjo, em vez de ser uma menina…, imperceptível. Entretanto, ouvindo a respiração ofegante e entrecortada da minha mãe, parada atrás de mim, também me imobilizei, expectante, a sentir o cheiro da cal da parede à minha frente, e o odor a sal do mar dos meus braços erguidos a desejarem levar-me até ao tecto, enquanto as mãos pequenas ansiavam por escorregar, a conduzirem-me de volta ao chão. E muito quieta, fiquei a meio da parede, como um pequeno insecto ou, vista de longe, talvez apenas uma mancha mais escura, de menina inverosímil. Foi quando ouvi a minha mãe dizer com voz de grande aflição estupefacta: desce daí Lucinha, como já estamos em casa não precisas de calçar as sandálias». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Meninas. Maria Teresa Horta. «Ali tudo é vazio e oco, nada tem ainda história para mim, nem qualquer referência, não percebo as palavras nem os sentimentos dos quais desconheço o significado»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Daninha
«(…) Depois das palavras vêm as palavras dos versos, dos poemas, o universo da escrita onde a menina se acoita, sabendo ser lugar de salvação e descobrindo o assombro. Universo, diz no primeiro dia, atalhos, vales, florestas e precipícios. Ensombramentos e claridades de cumes e ventanias. Alagadas planícies a perder de vista. Rios ignotos, camuflados, a tentarem penetrar, descer empapando a terra ou nela se infiltrando de outro modo que não por via das enxadas e das pás, mas pelos espinhos das plantas ou fio e gume de fundações e raízes, seguindo pelos interstícios dos encobertos dons da natureza, que ela tanto gostaria de decifrar. Universo, diz no primeiro dia, a dar conta da existência de um canto, de um coro ou de um cântico, a fazer a gesta de toda a criação. Entre o mundo, os céus, as deusas e os deuses vorazes. Eva? Não, ela é antes. Lilith? Não, ela é anterior a si mesma.
Esquiva, ansiosa e arredia, sentindo todos os entrelaçados odores febris que cada letra guarda, cada metáfora e mito, cada uma das rimas. Nem as odes nem os sonetos nem as sonatas lhe bastam. Deixa que te procure no vulto, diz-lhe Uriel, o anjo da poesia, e ela cede, embora saiba que nem sequer daninha a consideram entre a ordem dos anjos. Todo o anjo é terrível, escreverá séculos mais tarde o poeta; todo o anjo é impiedoso, todo o anjo é sedutor, olhar perdidamente melancólico e esplendorosas asas fulvas que ela não se atreve a comparar às suas, incipientes e pálidas, embora matizadas de carmim e violeta. Mas será a menina quem acabará por desentrançar as luzes e as cores umas das outras, os sons e as lágrimas e o riso na contradição dos sentimentos. Também as paixões e a maldade, a dádiva, a mesquinhez e a inveja. E na pressa do sobressalto, ela entorna os negrumes do tempo. Adivinhando o perdimento do espaço.

Recém-nascida
Estou no berço virado de frente para ela, vagarosa a descobri-la, tão igual àquela que eu imaginara, a onda do seu cabelo dourado espalhado no linho da almofada, a face macerada e muito pálida. Olheiras pisadas a afundarem-lhe o olhar de genciana azul toldado por uma espécie de neblina que entretanto se levantara do rio do seu próprio corpo. Ela dorme? Sim, dorme e depois acorda, volta a adormecer e acorda de novo, como se uma corrente marítima se desprendesse dela, indo e retornando no seu ciclo lunar; a certa altura descubro-a a fitar-me, e então o nosso olhar encontra-se pela primeira vez. Deslumbrada estremeço, arrulhando como uma pomba. Mas, apática, ela logo se afasta de mim, de regresso à correnteza do sono. Semicerro os olhos a tentar distingui-la com mais precisão, mas isso faz com que tudo pareça ainda mais difuso. No entanto não desisto, esmero-me na espera, embora as penumbras do quarto se avolumem à medida que o dia passa.
De vez em quando aparece alguém que se debruça sobre nós, mas ela continua sem dar acordo de si; apesar de tudo ajeitam-na e em seguida inclinam-se sobre mim, e embora feche os olhos depressa levantam-me, limpam-me, embalam-me, dizendo baixo coisas que não entendo: esta menina, coitadinha, deve estar com fome E voltam a deitar-me, aninham-me no berço, puxam a roupa para cima, até ao meu queixo, alisam a dobra curta do lençol, e eu sinto-me de novo enfaixada, asfixiada pela camisinha, a fralda, o cueiro branco, o babete, a mantinha entalada no colchão, o xaile como uma nuvem de lã azul, a tirarem-me o ar. Sem me queixar, aquieto-me como se tivesse pegado no sono; então acabam por desistir. Aturdida, adormeço levemente, para logo despertar em sobressalto, temendo que ela tivesse partido, abandonando-me naquele lugar desconhecido, inóspito, onde me aquieto, atemorizada.
Ali tudo é vazio e oco, nada tem ainda história para mim, nem qualquer referência, não percebo as palavras nem os sentimentos dos quais desconheço o significado, mas dou conta do meu imaginário, numa correnteza sem fim por dentro da linha do pensamento. Pouco a pouco estou a perder a memória do meu começo, da minha origem, da forma como cheguei até aqui. Para mim ainda não existe passado, eu mesma me desconheço e nem entendo o sumiço dos odores espessos e das exultantes cores sanguíneas que desejaria ter memorizado para sempre, nem o porquê do súbito alvoroço do meu coração. O que terei esquecido dentro da minha mãe, que me transmite esta imensa sensação de falha, de falta tão dilacerante e absoluta e absurda? Perdimento e estilhaços? Volto a abrir os olhos na claridade difusa do quarto, a tentar reencontrar-me nesta inusitada imobilidade de boneca aquietada debaixo do lençol fininho, de um tom de rosa muito claro e quebradiço. Aquilo que eu não sei não tem ruído». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

terça-feira, 24 de abril de 2018

O Número de Deus. José L. Corral. «Com efeito, mestre. E por isso devemos render-nos perante a grandeza da sua criação, e perante a luz. A luz?»

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O Algarismo e o Número
«(…) Necessitamos de uma nova catedral, um templo de luz, uma catedral em que o poder criador de Nosso Senhor se manifeste em todo o seu esplendor e com toda a sua força, pensou. Ao sair da catedral deparou com o mestre Arnal Rendol, que regressava com a sua filha Teresa da abadia de Las Huelgas. O pintor e a filhita vinham montados numa mula que caminhava estafada. Boas tardes, Arnal, saudou o bispo. Senhor bispo, o mestre Rendol inclinou a cabeça e tirou o chapéu, ouvi dizer que partia para a Alemanha para ir buscar a futura rainha. Assim é. Dona Berenguela encarregou-me da custódia da princesa Beatriz. Sois um afortunado. Arnal desceu da mula, que tinha feito parar, puxando as rédeas. Sou-o por usufruir da confiança de suas majestades, disse o bispo. Que rota ides seguir? Irei pelo Caminho Francês. Quero chegar a Paris e dali dirigir-me para leste, até ao Império. É o caminho mais seguro. A Occitânia ainda está revoltada. Apesar da cruzada que Sua Santidade pregou contra os cátaros e da energia que o nobre Simão Monfort empregou em acabar com a heresia, esses endemoninhados hereges continuam empenhados em sustentar o seu erro e em se manterem em pecado. Não merecem outra coisa que não a fogueira.
Arnal teve de se conter para não se delatar ante o bispo. Desde que saíra de Pamiers fugindo da perseguição dos cruzados de Simão Monfort, não tivera oportunidade de reviver o seu passado cátaro. Uma vez instalado com a mulher em Burgos, tivera de se comportar e actuar como um fervoroso católico, mas, no fundo do coração, os seus sentimentos cátaros conservavam-se muito arreigados. Teve de fazer um esforço para não responder ao bispo e não revelar as suas íntimas crenças. Na verdade, tenho estado a meditar no interior da catedral e reparei no vosso fresco da Visitação da Virgem. É muito bom. Obrigado, Sua Eminência, senhor bispo Maurício, agradeceu Arnal. Mas que pena ter que ser destruído. Como!? Quero construir uma nova catedral em honra de Santa Maria, e desejo que seja edificada segundo o novo estilo francês. Esta será derrubada, e com ela, mestre Arnal, os vossos frescos. Arnal Rendol mordeu a língua; passados alguns instantes de meditada pausa, considerou: bem, só as obras de Deus são eternas. Com efeito, mestre. E por isso devemos render-nos perante a grandeza da sua criação, e perante a luz. A luz?
Sim, a luz. Fixai-vos no céu. Está a entardecer e a luz debilita-se por momentos. O que há um instante era luminosidade, dentro de momentos será escuridão. Entendeis a mensagem de Deus? Vós, mestre Arnal, sois um artista, reflectis nas vossas obras parte da majestosa plenitude da criação divina: pintais homens, mulheres, animais, paisagens, e fazei-lo segundo vos dita a vossa imaginação. De certo modo, sois um imitador da criação divina das coisas. Nunca tinha pensado que o meu trabalho fosse imitar Deus. Pois é-o, é-o. Vós, os artistas, fostes dotados com um dom extraordinário, uma qualidade que vos permite reflectir, ainda que seja palidamente, a grandeza da Criação. A nossa arte é apenas urna habilidade. Não, é mais, muito mais do que isso. Deus manifesta-se através das vossas mãos, é Ele quem as dirige. Talvez, senhor bispo, talvez.
Não duvideis disso, mestre Arnal, não duvideis disso. Arnal Rendol despediu-se do bispo Maurício. Pegou nas rédeas da mula e seguiu para casa. Pai, disse-lhe Teresa, tu és como Deus? Não, filha, claro que não. Mas o senhor bispo disse que... Dom Maurício apenas disse que nós, os artistas, tentamos imitar a obra de Deus. Ao chegar a casa, Amal fechou a azémola no estábulo e ordenou a um dos aprendizes que viviam com ele que tirasse os arreios ao animal e enchesse a manjedoura de palha fresca e o bebedouro de água. O dia tinha sido muito duro. As monjas de Las Huelgas tinham-lhe encomendado uma pintura mural que representasse as bodas de Caná, e queriam tê-la pronta depressa, antes que o rei Fernando se casasse com a princesa alemã». In José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
                                                                                           
Cortesia de Planeta Editora/JDACT

A Verdadeira História. Margaret George. «Se não fosse uma menina, eu diria que ainda seria uma pesquisadora, uma escriba. Eles estudam isso o dia inteiro»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Contemplando-o, vinham à sua cabeça as histórias e canções de como Deus esmagava os seus inimigos. Ali, na sua frente, fiéis, apavorados, doavam os despojos do que haviam obtido a esse rei terrível, era assim que entendia o sacrifício de animais, as oferendas e as nuvens de incenso. Significavam medo. Quem entrasse na sala errada podia ser morto. Quem usasse moedas proibidas podia ser punido. E para quem ousasse aventurar-se a entrar no santuário propriamente dito, a punição era superior à da morte. Ela queria encontrar no seu Deus amor, orgulho e adoração, mas, em vez disso, o que havia era medo. Um grupo grande de sacerdotes levíticos, vestindo paramentos imaculados, encontrava-se nos degraus que separavam o Pátio das Mulheres do Pátio dos Israelitas e do Pátio dos Sacerdotes. Cantavam belíssimos hinos, acompanhados por flautas, e, além de suas belas vozes, profundas, ouviam-se as vozes doces das crianças, a quem também era permitido cantar. Outros sacerdotes recebiam as oferendas e conduziam aos altares, por rampas, os animais a serem sacrificados. Cestas com cereais, dispostas em prateleiras, eram apresentadas ao Senhor numa cerimónia especial. Por trás das cabeças dos sacerdotes, Maria via, subindo do altar, a fumaça das oferendas sendo queimadas. O cheiro forte do incenso misturava-se, mas não eliminava, ao cheiro da carne e da gordura queimadas.
Quando foi a vez das oferendas do seu grupo de galileus (seis cordeiros machos, dois bodes, um touro, uma cesta de frutas e dois pães feitos com o trigo da nova safra), Maria pensou em mandar, sub-repticiamente, o ídolo de rosto de marfim. Livrar-se dele, agora. Seria sacrilégio tê-lo trazido aqui? Parecia que a queimava, sob as camadas de pano em que o tinha escondido. Mas isso, naturalmente, era a sua imaginação. Se o entregar, nunca mais o terei de volta, pensou. Irá embora para sempre. E talvez fosse um insulto a Deus se o misturasse às outras oferendas. Vou colocá-lo no bolso e, quando chegar em casa, tornarei a olhar para ele, para me lembrar. Depois vou jogá-lo fora antes que o meu pai o veja e me castigue.
À saída, pelo portão principal, Maria e sua família tornaram a passar pela Corte dos Gentios. Era tudo tão grande, tão fora do comum, que dava vertigens. Lembrou-se das histórias que seu pai contava durante a celebração do Sabá. Se eu entrasse no Templo, será que veria a Arca da Aliança e as tábuas dos Dez Mandamentos?, perguntou Maria a Silvanus. E aquela jarra em que é preservado o maná? Arrepiava-se ao pensar nessas coisas tão antigas. Não iria ver nada!, disse Silvanus, asperamente. Raramente Maria havia ouvido Silvanus falar nesse tom de voz. Não há nada. Foi-se tudo quando o Templo de Salomão foi destruído pelos babilónios. Há, é claro, a lenda de que a Arca foi enterrada em algum lugar. Naturalmente. Sempre queremos acreditar que não perdemos alguma coisa, é sempre assim. Tinha o rosto triste, no meio de todos os felizes peregrinos. Mas perdemos. Então, o que há lá dentro? Nada. Está vazio.
Vazio? Toda essa imensidão, essa imponência, todas essas regras, para adorar nada? Isso não é possível!, exclamou Maria. Não faz sentido. Foi isso o que pensou o general romano Pompeu quando conquistou Jerusalém há 50 anos. Então, ele foi lá dentro, para ver. E quando não viu nada, ficou perplexo com os judeus. O nosso Deus é misterioso. Nem nós o entendemos direito, mas, por adorá-lo, tornamo-nos um povo que nenhum outro compreende. Fez uma pausa.
Mas Maria não desistia. Mas porque temos, então, um templo, se as coisas preciosas que estavam lá, que serviam para adorar a Deus, não estão mais? Foi Deus que pediu que fosse construído? Não. Mas imaginávamos que o tivesse feito, pois todos os outros povos têm templos, e nós queríamos ser como eles. Isso é verdade? Parecia extremamente importante para Maria saber disso. O barulho das pessoas em volta tornou difícil ouvir as palavras do seu irmão. Deus não deu instrução alguma a Salomão ou a David para que fosse construído um templo. E o próprio Salomão o reconheceu, quando disse: mas, de facto, habitaria Deus com os homens na terra? Eis que os céus e até o céu dos céus não te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiquei. E agora, isso te satisfaz? Olhou-a com carinho. Se não fosse uma menina, eu diria que ainda seria uma pesquisadora, uma escriba. Eles estudam isso o dia inteiro». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

O Número de Deus. José L. Corral. «… numa oficina como aprendiz, coordenando o trabalho com os estudos, para que, quando obtivesse o grau de oficial, tivesse uma bagagem que lhe permitisse aceder quanto antes ao grau de mestre»

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O Algarismo e o Número
«(…) Os mestres de Chartres ensinavam que Deus-pai era o primeiro e o mais perfeito dos geómetras, e assim representavam-no manejando um compasso, à maneira de um arquitecto que estivesse a criar o mundo a partir dos números e das figuras geométricas. Deste modo, o mistério da Trindade representava-se com um triângulo e a relação do Pai com o Filho, uma relação entre iguais, com a figura de um quadrado. E dessa relação os arquitectos estabeleciam aquilo a que chamavam o número de Deus, a relação geométrica harmónica e perfeita cuja aplicação permitia construir as novas catedrais da luz. Na biblioteca catedralícia havia textos de Platão, Cícero, Séneca, Boécio e Macróbio, todos eles devidamente anotados e comentados pelo mestre Bernardo de Chartres, que tinha descoberto Platão lendo Séneca e os seus preciosos comentários sobre a teoria platónica das ideias. Bernardo cristianizara as propostas filosóficas de Platão, identificando as ideias com o pensamento divino e, a partir daí, explicava a criação da matéria e a concepção do mundo.
O jovem Henrique de Ruão foi educado na teoria das ideias de Platão. Aos nove anos, assim que ingressou na escola, ensinaram-no a ler e a escrever e começou a estudar Latim, necessário para ler os livros da biblioteca. Depois, aprenderia Matemática, Geometria, Álgebra, Filosofia, Gramática, Retórica e Teologia. O pai preparou-lhe um plano de estudos para fazer dele um grande mestre-de-obras. Até aos treze anos aprenderia aquelas disciplinas imprescindíveis ao conhecimento, depois trabalharia numa oficina como aprendiz, coordenando o trabalho com os estudos, para que, quando obtivesse o grau de oficial, tivesse uma bagagem que lhe permitisse aceder quanto antes ao grau de mestre.
Para isso teria de ir estudar para Paris e visitar as obras das principais catedrais que estavam a ser construídas no reino de França. Só assim poderia comparar diferentes tipos de trabalhos, oficinas, materiais e técnicas, e dominar todos os aspectos da sua complexa disciplina. Henrique aprendia depressa; algumas questões não tinham segredos para ele, pois o pai tinha-lhe ido explicando os mistérios do ofício. Nós, os mestres-de-obras das catedrais, somos um grupo especial de homens, dissera-lhe numa ocasião. Deus pôs nas nossas mãos uma habilidade que muito poucos homens são capazes de desenvolver. Foi-nos concedido o dom de criar uma casa para morada de Deus, somos nós que construímos o seu templo, e esse privilégio é extraordinário.

O pior do Inverno já tinha passado. Em fins de Fevereiro de 1219, o rei Fernando e a sua mãe, a rainha Berenguela, reuniram-se em Burgos com o bispo Maurício. O prelado ainda estava aborrecido porque semanas antes se vira obrigado a excomungar os monges do poderoso mosteiro de São Domingos de Silos, que tinham recusado a reforma do cenóbio por ele proposta. Maurício, o bispo, não estava disposto a abdicar da sua autoridade como bispo da sede burgalesa e agira com dureza contra os monges do cenóbio. Para a rainha Berenguela essas disputas entre clérigos pareciam-lhe questões de muito pouca relevância. Ela estava agora ocupada em casar o seu filho rei de Castela com a princesa alemã Beatriz e não queria deixar que as suas energias fossem desperdiçadas em assuntos que considerava menores. O bispo Maurício acabava de receber a incumbência definitiva de partir para o Norte da Europa para ir buscar Beatriz e a custodiar na sua viagem até Burgos.
O bispo passeava entre a penumbra das naves da catedral. De vez em quando levantava a vista e contemplava as espessas abóbadas e as maciças paredes de pedra lavrada. Aquele edifício sempre lhe tinha parecido denso, frio e escuro, mais próprio de um templo do Maligno do que de casa de Deus. Os escassos e estreitos vãos, fechados com finas lâminas de alabastro, apenas deixavam passar débeis feixes de luz amarelenta, que em seguida se difundiam no ar criando um mundo de penumbras. Recordava com inveja a sua estada em Chartres, quando visitou as obras da nova catedral, cujas paredes se mostravam rasgadas por enormes vãos dispostos de modo a deixar entrar a luz a jorros, para inundar o templo com a luminosidade que só Deus era capaz de criar. Vez atrás de vez, o bispo Maurício repetia na sua cabeça o que tinha lido em tantas ocasiões nas sagradas Escrituras: que Deus era a luz, a luz do mundo». In José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
                                                                                           
Cortesia de Planeta Editora/JDACT

A Arca Perdida da Aliança. Tudor Parfitt. «Sevias, insisti eu, não pode, pelo menos, dizer-me o que aconteceu aos objectos tribais? Ele estudou o céu e não disse nada»

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A Gruta
«(…) Os espíritos dos antepassados não gostariam de me ver ali, explicou ele. Seriam contados segredos. Havia coisas que eu não devia saber. Truculentamente, pensei para comigo: se não souber aqui, esta noite, as coisas secretas, é possível que nunca venha a sabê-las. Era agora ou nunca. Fora da cubata, um grupo de anciãos estava a olhar ansiosamente para o céu da noite, esperando sinais de chuva. Sevias sentou-se ao meu lado, encostado à parede. O seu rosto enrugado mostrava sinais de preocupação. A sua preocupação não era apenas a chuva ou a falta dela, embora isso fosse uma questão crucial tanto para ele como para os outros, na verdade, era a sua própria vida e a da sua família que dependia disso, mas também eu e o meu desapontamento por não ser admitido em todos os segredos tribais. Já lhe tinha dito que o meu trabalho de campo não tinha rendido tanto como esperava.
De cabeça inclinada e com as mãos postas num gesto de súplica, perguntou-me com o esboço de um sorriso: Mushaví, achaste o que procuravas no tempo que estiveste connosco? Distinguia-me muitas vezes com o elogioso nome tribal Mushavi, que geralmente os lembas usam só entre eles e que pensei que talvez pudesse estar ligado a Musawi, a forma árabe de seguidor de Moisés (Musa). Talvez estivesse a tentar seduzir-me chamando-me Mushavi, mas o resto da sua pergunta era incompreensível. Ele sabia perfeitamente que os segredos tribais ainda estavam, na sua maioria, intactos. Sorri e, com toda a paciência que consegui reunir, disse: sabe muito bem, Sevias, que ainda há muitos segredos que não me contou. E não se esqueça de que os anciãos de todos os clãs concordaram em que me devia ser dado acesso a tudo.
Sim, respondeu ele gravemente, mas já lhe expliquei muitas vezes que independentemente do que foi dito nessa reunião dos clãs, há coisas que não podem ser contadas fora da irmandade dos iniciados. Orações, feitiços, encantamentos. Muitos dos nossos segredos não podem ser revelados. Dissemos-lhe isso. O meu irmão, o chefe, disse-lhe isso. Os outros disseram-lhe isso. Teriam de o matar, Mushavi, se aprendesse essas coisas sagradas. É a lei. O seu rosto enrugado tornou-se quase uma expressão de preocupação e ansiedade. Sevias era um homem bom. Em todos os meses que tinha passado no seu kraal, apesar da seca e da incerteza da situação política, tanto dentro da tribo como no país em geral, apesar das dificuldades da família, sempre tinha sido calmo, amável e digno. Percebi agora que nunca tinha sido mais feliz na minha vida do que quando estava sentado a escrever debaixo da árvore grande no kraal de Sevias. Esfregou os pés nus e endurecidos na terra ressequida. Mas quanto aos objectos tribais?, insisti eu. Aquelas coisas que trouxe consigo do norte, de Senna. Falaram-me nisso mas ainda não vi nada disso.
É verdade, disse ele. Trouxemos objectos de Jerusalém há muito tempo e trouxemos objectos de Senna. Objectos sagrados, importantes, de Israel e de Senna. Senna era a cidade perdida original em que a tribo mantinha que tinha habitado depois de sair da Terra de Israel. O professor M.E.R. Mathivha, o chefe erudito da tribo lemba da Africa do Sul, já me tinha contado muita coisa acerca da lenda de Senna. A tribo viera de Senna pelo mar. Ninguém sabia onde era. Tinham atravessado Pusela, mas também ninguém sabia onde era ou o que era. Tinham vindo para África, onde reconstruíram Senna duas vezes. Em suma, foi isso.
Sevias, insisti eu, não pode, pelo menos, dizer-me o que aconteceu aos objectos tribais? Ele estudou o céu e não disse nada. Depois, murmurou: a tribo está espalhada por uma vasta área. Sabe, uma vez infringimos a lei de Deus. Detestamos ratos, que são proibidos para nós, e fomos espalhados por Deus pelas nações de África. Assim, os objectos espalharam-se e estão escondidos em diversos locais. E o ngoma? Onde pensa que possa estar?, perguntei eu. Era um tambor de madeira usado para guardar objectos sagrados. A tribo tinha seguido o ngoma, transportando-o aos ombros, na sua visita à África. Afirmam tê-lo trazido de Israel há tantos anos que ninguém se lembra quando. Segundo as suas tradições orais, levavam o ngoma à frente deles para combater e ele tinha-os guiado na sua longa caminhada através do continente». In Tudor Parfitt, A Arca Perdida da Aliança, 2006, Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-541-5.

Colecção de PdomQuixote/JDACT

segunda-feira, 23 de abril de 2018

A Arca Perdida da Aliança. Tudor Parfitt. «Olhou para mim e depois indicou-me que devia levantar-me e deixá-lo. Triste e perplexo com as suas palavras, voltei para o banco, para o meu bloco de apontamentos»

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A Gruta
«(…) O chefe estava a morrer. Toda a gente o dizia. Tinha um ar cinzento e doente. Fez-me um gesto indicando que devia ir para ao pé dele. Pegou-me na mão e sussurrou-me ao ouvido: os antepassados vieram de Israel. Vieram de Senna. Estão aqui connosco. Adeus, Mushavi. Talvez nos vejamos em Senna. Senna era a cidade perdida de onde tinham vindo e também era o 1oca1 para onde esperavam ir quando morressem. O seu rosto, iluminado pela luz bruxuleante das velas, estava enrugado com os traços da idade e da doença: os olhos estavam tapados por papadas mosqueadas de carne ligeiramente corada. Olhou para mim e depois indicou-me que devia levantar-me e deixá-lo. Triste e perplexo com as suas palavras, voltei para o banco, para o meu bloco de apontamentos, para a máquina fotográfica, e para o gravador. Estava ali na aldeia há tanto tempo que começava a sentir-me em casa, um deles. Tinha bebido uma boa quantidade da cerveja chibuku deles. Após os primeiros tragos, torna-se mais ou menos aceitáve1 e, passado um bocado, absolutamente aceitável. Achei que não era altura para me sentar a um canto a tomar apontamentos e a gravar música lemba. Havia coisas mais importantes a fazer. Tirei a camisa a fim de, pensava eu, me misturar com os homens e as mulheres seminus cujas mórbidas sombras andavam a saltar descontroladamente pelas paredes e que estavam a cair numa espécie de transe a toda a minha volta. A mulher mais velha do chefe atravessou a cubata, inclinou-se para mim com os seios descaídos e enrugados a roçarem-me no ombro, e sussurrou alguma coisa incompreensível em xona, a língua da tribo xona que predominava e no seio da qual viviam os lembas do Zimbabwe.
Comecei a dançar ao ritmo repetitivo dos tambores. Uma das mulheres mais jovens do chefe estava a dançar com os seios nus à minha frente, balançando-se de modo que evidenciava os efeitos do álcool, suplicando aos antepassados, percorrendo os seios com as mãos e, depois, a barriga e as pernas. As tamborileiras aceleravam o ritmo dos tambores. Outra mulher em transe, com os olhos inflamados, libertou-se das roupas e foi para o centro da cubata. Os homens puseram-se à sua volta a admirar-lhe o corpo magro e os seios cheios, incitando-a a continuar. Ela está a falar com os antepassados, disse-me Sevias ao ouvido. Em breve eles responderão. Quando se ouvirem as vozes deles é melhor ir-se embora.
Cerca da meia-noite o ambiente mudou. Imaginei que era chegada a hora dos feitiços do culto e das orações secretas. Essas eram as coisas bem guardadas. Esses eram os códigos orais que governavam as suas vidas e que, sem dúvida, detinham os indícios do seu passado de que eu andava à procura. Esses códigos e feitiços eram, para mim, o cerne da questão. Era nisso que queria participar. Era para isso que ali tinha ido. Os meus braços ergueram-se; o meu rosto virou-se para o tecto de colmo. O suor corria-me em bagas. Tive uma grande sensação de excitação. Tinha sido aceite. Era um deles. Os antepassados iam descer e eu estaria lá para observar o que vinha a seguir. Nunca ninguém de fora tinha observado aquilo. Dentro da cabeça senti abrir-se uma espécie de canal que parecia ser um canal de comunicação com os antepassados israelitas da tribo.
Estava a rejubilar com a eficácia da minha metodologia de investigação de cinco estrelas quando senti um punho bater-me de lado no rosto. Era o punho da mulher mais velha e mais forte do chefe. Caí no chão, em cima do corpo deitado e malcheiroso do maior bêbado de Mposi, uma espécie de vagabundo chamado Klopas que eu já tinha encontrado e cheirado muitas vezes. Durante alguns segundos, perdi a consciência. Fui levado para fora da cubata por alguns dos homens e encostado ao lado da cubata do chefe. Eee..., aborreci a mulher do chefe, disse eu. Lamento. Não lamentava nada. Sentia-me furioso.
Mushavi, disse Sevias inclinando-se por cima de mim. Não aborreceste ninguém. Este golpe foi apenas as boas-vjndas dos antepassados. Talvez também tenha sido um pequeno aviso. Só um pequeno aviso. Se os antepassados não o quisessem aqui, não lhe teriam dado um golpe ligeiro como este, tê-lo-iam desfeito em pedaços. Agora, tenho de ir porque os antepassados estão a vir ter connosco. Os não iniciados têm de se ir embora». In Tudor Parfitt, A Arca Perdida da Aliança, 2006, Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-541-5.

Colecção de PdomQuixote/JDACT

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Agora sente-se forte, imaginar vitórias animou-o, mas logo se lembra do que ouviu Egas ou Ermígio dizerem, que sem Paio Soares a comandá-las as tropas…»

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Coimbra, Julho de 1117
«(…) Uma mãe tem de dar carinho, estar lá, beijar os filhos. Caso contrário, não é uma mãe, é mãe só de nome. Ora, dona Teresa nunca estava. Via o filho uma ou duas vezes por ano, quando ia a Lamego ou a Viseu, ou ele ia a Coimbra, mas limitava-se a olhar para ele e a dizer: estais mais crescido. E era tudo. Nunca lhe dava um beijo, embora exigisse que ele lhe beijasse a mão. Não era grande coisa como mãe. Nunca foi. A verdadeira mãe do Afonso Henriques foi sempre a minha mãe, Dordia Viegas. Ela mimava-o, penteava-o, vestia-o, à noite levava-o para a cama e fazia-lhe o sinal-da-cruz na testa, como a mim, ao Afonso ou ao Soeiro. Tratava-o como nos tratava a nós três, seus filhos. Com ternura, como uma mãe deve. E ele retribuía, amava-a como nós a amávamos, sempre de roda dela, a pedir coisas, a reclamar atenção. Uma vez, o Afonso Henriques disse-me: Deus é injusto. O meu pai morreu, tinha eu três anos, mal o conheci, só às suas barbas cinzentas e falantes. E Dordia, a minha única mãe, morreu naquele Verão do cerco a Coimbra!
Para minha grande tristeza e de toda a família dos Moniz de Ribadouro, Dordia Viegas já arfava muito, tinha de sentar-se constantemente, e à mesa estava sempre com um ar calmo de mais, como quem tinha muitas dores mas sofria em silêncio, para não incomodar os outros. Tanto o meu amigo como eu sabíamos que, se ela subisse ao Céu, ninguém mais nos iria dizer: vinde dar-me um beijo! Isso entristecia-o muito, dizia-me o meu melhor amigo, e era por isso que fazia um esforço para imaginar combates sangrentos logo de manhã, no alto do castelo de Coimbra. Enquanto o arqueiro suspende a sua ronda, a um canto da torre, o menino mira de novo a faustosa tenda do califa, e promete a si próprio que quando for grande o vai derrotar. Terá de aprender a usar a enorme espada de seu pai, a montar, a vestir a cota de malha e a armadura, mas será o mais hábil, corajoso e destemido cavaleiro do Condado Portucalense.
Agora sente-se forte, imaginar vitórias animou-o, mas logo se lembra do que ouviu Egas ou Ermígio dizerem, que sem Paio Soares a comandá-las as tropas de dona Teresa pouco valem, pois Bermudo de Trava, seu marido, não nasceu para empunhar uma espada! Ontem, escutou também as meninas árabes a intrigarem, aos risinhos, nas suas costas: A rainha não gosta do Bermudo, gosta é do irmão, do Fernão! O menino já reparou que dona Teresa também nunca beija o marido em público, eles nem se tocam, não há uma festa carinhosa, uma ternura visível. Nunca viu sequer um abraço e sempre atribuiu essa falha à maneira de ser de dona Teresa. Dordia diz que ela é arisca, quando falam na condessa que agora se diz rainha, o que é raro, pois Dordia evita falar dela.
A esta hora, quando o Sol mal nasceu a leste, e enquanto o arqueiro se volta a aproximar dele, dona Teresa ainda deve estar a dormir. Costuma levantar-se tarde, ao contrário do seu marido galego, que dorme noutro quarto. O menino não consegue conversar com Bermudo, pois ele raramente fala. O personagem parece mudo e tolo, só abana a cabeça, confirmando qualquer ordem da autoritária esposa. Tudo o que Bermudo diz é: bom dia. E, horas depois: boa noite». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT