quarta-feira, 25 de abril de 2018

Meninas. Maria Teresa Horta. «Ali tudo é vazio e oco, nada tem ainda história para mim, nem qualquer referência, não percebo as palavras nem os sentimentos dos quais desconheço o significado»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Daninha
«(…) Depois das palavras vêm as palavras dos versos, dos poemas, o universo da escrita onde a menina se acoita, sabendo ser lugar de salvação e descobrindo o assombro. Universo, diz no primeiro dia, atalhos, vales, florestas e precipícios. Ensombramentos e claridades de cumes e ventanias. Alagadas planícies a perder de vista. Rios ignotos, camuflados, a tentarem penetrar, descer empapando a terra ou nela se infiltrando de outro modo que não por via das enxadas e das pás, mas pelos espinhos das plantas ou fio e gume de fundações e raízes, seguindo pelos interstícios dos encobertos dons da natureza, que ela tanto gostaria de decifrar. Universo, diz no primeiro dia, a dar conta da existência de um canto, de um coro ou de um cântico, a fazer a gesta de toda a criação. Entre o mundo, os céus, as deusas e os deuses vorazes. Eva? Não, ela é antes. Lilith? Não, ela é anterior a si mesma.
Esquiva, ansiosa e arredia, sentindo todos os entrelaçados odores febris que cada letra guarda, cada metáfora e mito, cada uma das rimas. Nem as odes nem os sonetos nem as sonatas lhe bastam. Deixa que te procure no vulto, diz-lhe Uriel, o anjo da poesia, e ela cede, embora saiba que nem sequer daninha a consideram entre a ordem dos anjos. Todo o anjo é terrível, escreverá séculos mais tarde o poeta; todo o anjo é impiedoso, todo o anjo é sedutor, olhar perdidamente melancólico e esplendorosas asas fulvas que ela não se atreve a comparar às suas, incipientes e pálidas, embora matizadas de carmim e violeta. Mas será a menina quem acabará por desentrançar as luzes e as cores umas das outras, os sons e as lágrimas e o riso na contradição dos sentimentos. Também as paixões e a maldade, a dádiva, a mesquinhez e a inveja. E na pressa do sobressalto, ela entorna os negrumes do tempo. Adivinhando o perdimento do espaço.

Recém-nascida
Estou no berço virado de frente para ela, vagarosa a descobri-la, tão igual àquela que eu imaginara, a onda do seu cabelo dourado espalhado no linho da almofada, a face macerada e muito pálida. Olheiras pisadas a afundarem-lhe o olhar de genciana azul toldado por uma espécie de neblina que entretanto se levantara do rio do seu próprio corpo. Ela dorme? Sim, dorme e depois acorda, volta a adormecer e acorda de novo, como se uma corrente marítima se desprendesse dela, indo e retornando no seu ciclo lunar; a certa altura descubro-a a fitar-me, e então o nosso olhar encontra-se pela primeira vez. Deslumbrada estremeço, arrulhando como uma pomba. Mas, apática, ela logo se afasta de mim, de regresso à correnteza do sono. Semicerro os olhos a tentar distingui-la com mais precisão, mas isso faz com que tudo pareça ainda mais difuso. No entanto não desisto, esmero-me na espera, embora as penumbras do quarto se avolumem à medida que o dia passa.
De vez em quando aparece alguém que se debruça sobre nós, mas ela continua sem dar acordo de si; apesar de tudo ajeitam-na e em seguida inclinam-se sobre mim, e embora feche os olhos depressa levantam-me, limpam-me, embalam-me, dizendo baixo coisas que não entendo: esta menina, coitadinha, deve estar com fome E voltam a deitar-me, aninham-me no berço, puxam a roupa para cima, até ao meu queixo, alisam a dobra curta do lençol, e eu sinto-me de novo enfaixada, asfixiada pela camisinha, a fralda, o cueiro branco, o babete, a mantinha entalada no colchão, o xaile como uma nuvem de lã azul, a tirarem-me o ar. Sem me queixar, aquieto-me como se tivesse pegado no sono; então acabam por desistir. Aturdida, adormeço levemente, para logo despertar em sobressalto, temendo que ela tivesse partido, abandonando-me naquele lugar desconhecido, inóspito, onde me aquieto, atemorizada.
Ali tudo é vazio e oco, nada tem ainda história para mim, nem qualquer referência, não percebo as palavras nem os sentimentos dos quais desconheço o significado, mas dou conta do meu imaginário, numa correnteza sem fim por dentro da linha do pensamento. Pouco a pouco estou a perder a memória do meu começo, da minha origem, da forma como cheguei até aqui. Para mim ainda não existe passado, eu mesma me desconheço e nem entendo o sumiço dos odores espessos e das exultantes cores sanguíneas que desejaria ter memorizado para sempre, nem o porquê do súbito alvoroço do meu coração. O que terei esquecido dentro da minha mãe, que me transmite esta imensa sensação de falha, de falta tão dilacerante e absoluta e absurda? Perdimento e estilhaços? Volto a abrir os olhos na claridade difusa do quarto, a tentar reencontrar-me nesta inusitada imobilidade de boneca aquietada debaixo do lençol fininho, de um tom de rosa muito claro e quebradiço. Aquilo que eu não sei não tem ruído». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT