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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A Águia e o Dragão. Serge Gruzinski. «Em 1518 e 1519, Zhengde conduziu pessoalmente campanhas militares no norte, contra os mongóis, e no sul, em Jiangxi…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Fontes coreanas assinalam a presença de portugueses no ambiente imperial, onde se teriam beneficiado com os serviços de um guia e de um intérprete, o negociante muçulmano Khójja Asan. Em México-Tenochtitlán e na mesma época, Hernán Cortés encontra Moctezuma, o chefe da Tríplice Aliança ou, se preferir, o imperador dos astecas.

Os dois imperadores
Primeiro, Zhengde. Em junho de 1505, em Beijing, Zhu Houzhao sucedeu ao seu pai, o imperador Hongzhi, sob o nome imperial de Zhengde. Tendo subido ao trono aos catorze anos, o décimo imperador Ming morrerá em 1521. O seu reinado foi depreciado pelos cronistas. Se dermos crédito a eles, Zhengde teria abandonado os assuntos do Estado para se entregar a uma vida de prazeres. Preferia viajar para fora da Cidade Proibida, deixando que os seus eunucos predadores amealhassem fortunas. Na verdade, Zhengde era um guerreiro que se esforçava para fugir à tutela da alta administração a fim de reatar com a tradição de abertura, para não dizer de cosmopolitismo, da precedente dinastia mongol, os Yuan. Passava a maior parte do seu tempo fora do palácio imperial e gostava de se rodear de monges tibetanos, clérigos muçulmanos, artistas oriundos da Ásia Central, guarda-costas jurchen e mongóis, quando não frequentava as embaixadas estrangeiras de passagem por Beijing. Ele teria até proibido o consumo de porco para melhorar as suas relações com as potências muçulmanas da Ásia Central. Em 1518 e 1519, Zhengde conduziu pessoalmente campanhas militares no norte, contra os mongóis, e no sul, em Jiangxi. Em 1521, decide liquidar um príncipe rebelde e manda executá-lo em Tongzhou. A sua imagem não sairá engrandecida desse episódio. Pelo menos, essa é a impressão deixada pelas crónicas oficiais e pelas gazetas aparecidas após a sua morte, que são unânimes em fazer do seu reinado uma era de transtornos e de declínio (moshi). Êxodo de camponeses para as minas e as cidades, ascensão dos parvenus, revolução das tradições, costumes locais varridos pelas mudanças, cobranças abusivas perpetradas pela administração, mal-estar e agitação da plebe, boom do contrabando com os japoneses, o balanço que a história oficial reteve não é muito brilhante. Sem contar as catástrofes naturais, a inundação e a fome de 1511, que ninguém hesita em lançar à conta da crise que atinge a sociedade. Ao mesmo tempo, são incontáveis as novas fortunas, a produção aumentou por toda parte e o comércio internacional é mais próspero do que nunca.
Em 1520, o senhor da China, embriagado, cai do barco imperial nas águas do Grande Canal, a principal artéria que liga o norte ao sul do país. A febre ou a pneumonia que ele contrai após esse banho forçado o matará no ano seguinte, em 20 de Abril, com trinta anos. Como a água é o elemento do dragão, alguns cronistas acreditaram que os dragões foram responsáveis pelo seu fim. Alguns meses antes, criaturas estranhas teriam perturbado a calma das ruas de Beijing. Atacavam os passantes, ferindo-os com as suas garras. Eram chamadas de sombrias aflições. O ministério da Guerra se encarregou de estabelecer a ordem e os boatos se dissiparam. Zhengde, que sempre se mostrara curioso por coisas estrangeiras, havia encontrado os portugueses da embaixada pouco antes de morrer. Mas, aos olhos de seus contemporâneos e sucessores, o episódio permanecerá insignificante. Não lhe valerá o renome póstumo e trágico que se ligará à pessoa do tlatoani de México-Tenochtitlán, Moctezuma Xoyocotzin. Um filme feito em 1959, Kingdom and the Beauty, Reino e a beleza, em plena época comunista, não bastará para imortalizar as extravagâncias de um soberano que se disfarçava de homem do povo para se entregar aos prazeres». In Serge Gruzinski, A Águia e o Dragão, Edições 70, 2015, ISBN 978-972-441-844-5.

Cortesia de E70/JDACT

A Águia e o Dragão. Serge Gruzinski. «Em 1520, Carlos V, Francisco I e Henrique VIII são os astros ascendentes da cristandade latina. Regente de Castela desde 1517…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Que horas são lá..., do outro lado?, havíamos nos interrogado sobre a natureza dos vínculos que se estabeleceram desde o século XVI entre o Novo Mundo e o mundo muçulmano. Essas regiões foram então confrontadas com os primeiros efeitos da expansão europeia sobre o globo. Colombo estava convencido de que a sua descoberta forneceria o ouro com o qual os cristãos retomariam Jerusalém e esmagariam o islão. O Império Otomano, por sua vez, se inquietava por ver um continente desconhecido pelo Alcorão e pelos sábios do islão entregue à fé e à rapacidade dos cristãos. Não se poderia abordar a globalização que progressivamente fez do globo o cenário de uma história comum sem considerar o que se deu desde essa época entre terras do islão, da Europa e da América. Mas será suficiente? Se a adjunção de uma quarta parte do mundo é o registo de nascimento da globalização ibérica, a irrupção da China nos horizontes europeus e americanos constitui outra perturbação. O facto de ela ter sido, com poucos anos de diferença, contemporânea ao descobrimento do México deveria ter chamado nossa atenção mais cedo, mas o nosso olhar, por longo tempo retido pela Mesoamérica, havia esquecido que ela não é o extremo do mundo: como repetiam os antigos mexicanos, é o meio. No século XVI, por duas vezes os ibéricos visaram conquistar a China. Mas o desejo deles nunca se realizou. Parafraseando o título da célebre peça de Jean Giraudoux, A guerra da China não acontecerá. Alguns, um pouco tarde, lamentarão isso. Outros, junto connosco, reflectirão sobre aquilo que nos ensinam essas veleidades de conquista, contemporâneas da colonização das Américas e da exploração do oceano Pacífico. China, Pacífico, Novo Mundo e Europa ibérica são os protagonistas de uma história que surge do seu encontro e enfrentamento. Essa história se resume numa simples frase: no mesmo século, os ibéricos falham na China e têm êxito na América. É isso que nos é revelado por uma história global do século XVI, concebida como outra maneira de ler o Renascimento, menos obstinadamente euro-centrada e, sem dúvida, mais em harmonia com o nosso tempo.

Dois Mundos Tranquilos
Em 1520, Carlos V, Francisco I e Henrique VIII são os astros ascendentes da cristandade latina. Regente de Castela desde 1517, sagrado rei da Germânia em 1520, Carlos de Gand nasceu com o século. Francisco I torna-se rei da França em 1515 e Henrique VIII, da Inglaterra em 1509. Em Portugal, o velho Manuel I, o Venturoso, ainda tem força suficiente para contrair novas núpcias, agora com a irmã do rei Tudor. Diante dos rivais franceses e ingleses, Carlos de Gand e Manuel I alimentam ambições oceânicas que projectam os seus reinos em direcção a outros mundos. Em Novembro de 1519, um aventureiro espanhol, Hernán Cortés, à frente de uma pequena tropa de infantes e de cavaleiros, entra em México-Tenochtitlán. Em Maio de 1520, uma embaixada portuguesa, de efectivos ainda mais modestos, penetra em Nanjing. É nessa cidade que o emissário Tomé Pires é recebido pelo imperador da China, Zhengde». In Serge Gruzinski, A Águia e o Dragão, Edições 70, 2015, ISBN 978-972-441-844-5.

Cortesia de E70/JDACT

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

A Águia e o Dragão. Serge Gruzinski. «O servo chinês de O sapato de cetim diz a Don Rodrigue, vice-rei das Índias: nós nos tomamos um pelo outro e não há mais como nos desenvencilhar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Escritores da primeira metade do século XX percorreram os caminhos que nos levaram do México à China. Por muito tempo Jean Giraudoux nos sugeriu um título, A guerra da China não acontecerá, que foi preciso abandonar. Paul Claudel soube ressuscitar mundos que, hoje, talvez sejamos mais capazes de compreender. Nas jornadas de O sapato de cetim (1929) dialogam seres vindos dos quatro cantos do globo. O palco deste drama é o mundo, e mais especialmente a Espanha no final do século XVI. Ao comprimir os países e as épocas, Claudel não pretendia fazer um trabalho de historiador, mas nos mergulhava nos remoinhos de uma globalização. Uma globalização que não era nem a primeira nem a última, mas que se instalou rapidamente durante o século XVI, na esteira das expedições portuguesas e espanholas. A águia asteca e o dragão chinês sofreram, então, os primeiros efeitos da desmesura europeia.
Essa globalização é um fenómeno diferente da expansão europeia, que mobilizou muitos recursos técnicos, financeiros, espirituais e humanos. Ela respondeu a opções políticas, cálculos económicos e aspirações religiosas que se conjugaram, com menor ou maior eficácia, para atrair marinheiros, soldados, padres e comerciantes a milhares de quilómetros de distância da Península Ibérica, num deslocamento em todas as direcções do mundo. A expansão ibérica provocou reacções em cadeia e, com frequência, choques que desestabilizaram sociedades inteiras. Foi o que aconteceu na América. A Ásia enfrentou algo mais forte do que ela, quando não atolou nos pântanos e nas florestas da África. A imagem de uma progressão inelutável dos europeus, quer exaltemos as suas virtudes heroicas e civilizadoras, quer a condenemos às gemónias, é uma ilusão da qual é bem difícil se desfazer.
Resulta de uma visão linear e teleológica da história que continua a aderir à pena do historiador e ao olho do leitor. O que é equivocado quanto à expansão ibérica é ainda mais errado quanto à globalização, que podemos definir como a proliferação de todos os tipos de vínculo entre partes do mundo que até então se ignoravam ou se relacionavam com enorme distanciamento. A que se desenrola no século XVI abrange ao mesmo tempo a Europa, a África, a Ásia e o Novo Mundo, entre os quais com frequência se desencadeiam interacções de intensidade sem precedentes. Um tecido ainda frágil, cheio de buracos imensos, sempre prestes a rasgar ao menor naufrágio, mas indiferente às fronteiras políticas e culturais, começa a se estender por todo o planeta. Quais são os protagonistas dessa globalização? Por bem ou por mal, populações africanas, asiáticas e ameríndias participam dela, mas os portugueses, os espanhóis e os italianos fornecem o essencial da energia religiosa, comercial e imperialista, ao menos nessa época e por um bom século e meio. O servo chinês de O sapato de cetim diz a Don Rodrigue, vice-rei das Índias: nós nos tomamos um pelo outro e não há mais como nos desenvencilhar.
O que os contemporâneos percebem de tudo isso? Com frequência o olhar deles é mais penetrante do que o dos historiadores que se sucederam para observá-los. Homens do século XVI, e não somente europeus, compreendem a amplitude do movimento ao qual são confrontados, e na maioria das vezes o fazem em termos religiosos, a partir das perspectivas que a missão lhes abre. Mas a globalização se desenha também no espírito dos que são sensíveis à aceleração das comunicações entre as diferentes partes do mundo, à descoberta da infinita diversidade das paisagens e dos povos, às extraordinárias oportunidades de lucro trazidas por investimentos projectados no outro lado do globo, ao crescimento ilimitado dos espaços conhecidos e dos riscos enfrentados. Nada parece resistir à curiosidade dos viajantes, ainda que muitas vezes estes não fossem a lugar algum sem o auxílio de seus guias e dos seus pilotos nativos.
Pode-se atribuir o descobrimento da América ou a conquista do México a figuras históricas como Hernán Cortés ou Cristóvão Colombo. O assunto é discutível, mas o procedimento é cómodo. A distância dos séculos e a nossa ignorância cada vez maior militam para que aceitemos essas simplificações. Já a globalização não tem autor. Ela responde em escala planetária aos embates provocados pelas iniciativas ibéricas. Mistura histórias múltiplas cujas trajectórias de repente se entrechocam, precipitando desenlaces imprevistos e até então inconcebíveis. A globalização não tem nada de uma maquinaria inexorável e irreversível que executaria um plano preconcebido com vistas à uniformização do globo. Portanto, seria equivocado acreditar que nossa globalização nasceu com a queda do muro de Berlim. Seria igualmente ilusório imaginar que ela é a gigantesca árvore nascida de uma semente plantada no século XVI por mãos ibéricas. Parece, contudo, que o nosso tempo é devedor dessa época longínqua, por várias razões, se aceitarmos que a ausência de filiação directa ou de linearidade não transforma o curso da história numa cascata de acasos e de acontecimentos sem consequências. É no século XVI que a história humana se inscreve num cenário que se identifica com o globo. É então que as conexões entre as partes do mundo se aceleram: Europa/Caribe a partir de 1492, Lisboa/Cantão a partir de 1513, Sevilha/México a partir de 1517 etc. Acrescentemos outra razão que está no cerne deste livro: é com a globalização ibérica que a Europa, o Novo Mundo e a China se tornam parceiros planetários.
A China e a América têm um papel importantíssimo na globalização actual. Mas por que a China e a América se encontram face a face no xadrez terrestre, de onde vem isso? E porque a América dá hoje sinais de esgotamento, enquanto a China parece ter tomado impulso para lhe arrebatar o primeiro lugar?» In Serge Gruzinski, A Águia e o Dragão, Edições 70, 2015, ISBN 978-972-441-844-5.

Cortesia de E70/JDACT