domingo, 31 de maio de 2020

Camões e a Infanta D. Maria no 31. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Onde tão subtis regras lhe mostrasse, que nunca lhe passassem da memoria, em nenhum tempo, as cousas que passasse»

jdact

[…]
No Oriente
Das poesias lyricas escriplas por Camões no Oriente, três sobretudo constituem documentos importantes para a historia da sua paixão pela infanta. São ellas, por ordem chronologica, a elegia 3.a (O poeta Simonides fallando), a canção 10ª (Junto de um secco, duro, estéril monte) e a canção 6.ª (Com força desusada).
A elegia 3.a foi composta, pelo menos em parte, no fim do anno de 1553 ou no começo de 1554, para ser remettida ao seu destino pelas naus que iam partir para o reino (a elegia foi escripta ou pelo menos concluída talvez em Cochim, depois da expedição contra o rei da Pimenta. É possivel, com effeito, que o poeta para alli acompanhasse o vice-rei Affonso Noronha, que ia dar pressa ás naus do reino. Estas, no dizer de Couto, partiram até 15 de Janeiro. M. Perestrello, que voltava na S. Bento, em que fora o poeta, diz que partiram no dia 1 de Fevereiro, 1904).
Para bem se comprehender o estado de espirito do poeta ao escrever esta elegia, cumpre ter presente que, quando elle embarcou para a Índia, o casamento da infanta era cousa definitivamente assente e não devia tardar muito a effectuar-se. O futuro rei de Espanha havia mandado a Lisboa Ruy Gomez Silva, que sobre o assumpto se tinha intendido com João III [(o pouco sincero irmão da infanta ficou preso em uma armadilha que elle próprio tinha preparado, por conselho do activo e astuto Lourenço Pires Távora, embaixador junto de Carlos V. Quando este, formando novos planos políticos, resolveu casar o príncipe seu filho com uma filha do rei dos romanos e destinou a infanta dona Maria para o archiduque Fernando, Lourenço Távora avisou logo João III do novo perigo e aconselhou o alvitre de levar a infanta a não desistir do seu casamento com o filho de Carlos V. Era o meio seguro de inutilizar o novo projecto matrimonial. A infanta, que tanto desejava casar com o sobrinho, accedeu de bom grado ás indicações que neste sentido lhe foram dadas. Mallogrados, porém, dentro em pouco os planos de Carlos V, não restava a João III senão mostrar rosto alegre, e arranjar novos pretextos para adiar o enlace da irmã com o futuro rei de Espanha. Vejam-se as duas curiosas cartas de Lourenço Távora, escriptas em Dezembro de 1550, uma a João III e outra á infanta, e publicadas na Historia de varões illustres do appellido Távora de Ruy Lourenço Távora, Paris, 1648, e na Vida da Infanta dona Maria de fr. M. Pacheco. A carta dirigida á infanta é um modelo de cynismo… diplomático)].
Estava regularizada a questão da entrega do dote e agora o único pretexto que restava ao monarca português era a expressa acquiescencia do imperador, acquiescencia que elle… tinha pejo de soliicitar, apesar das instancias da já outras vezes ludibriada senhora. Oiçamos o próprio João III historiando o caso, quando as suas conveniências politicas lhe fizeram perder o pejo, embora já fosse tarde : Ruy guomcz se despedio de mim &, depoys de ser com o Primcepe, me screueo o Primcepe muitos cõtentamentos da rresposta que lhe mandara pelo dito Ruy guomez, da qual todauia comuinha auisar o Emperador, por ele asy lho ther mãdado. Sabemdo a Imfanta minha Irmaã os termos e que este neguocio estaua & como aymda se auia desperar por rresposta do Emperador, me pedio que eu lhe quisesse despachar huü correo, pelo qual lhe fizesc saber o comtentamento q eu tinha de se este negocio fazer & dos termos em q estaua & do que eu nele acerqua de seu dotte podia fazer. Porque emtemdia q, em quanto o Emperador ysto nam tiuesse sabido de mim, nam poderia o neguocio deixar de pasar a gramde dilaçam ; & com quanto eu em toda cousa deseje sempre dar todo comtentamento posiuel a Imfamte minha Irmãa, nesta em q me falou tiue pejo para o nam fazer como lho aela parecia. Porque deixar de o por em obra como mo rrequcria nam era causa de se o negocio deixar de fazer estamdo elle tamto adiamte como estaua. Do publico, porém, não era conhecido esse pejo, e quando Camões enviou para o reino a elegia 3.a , estava convencido de que a sua bem-amada já se achava em terras de Castella, casada com o principe Philippe.
Que restava ao desolado poeta? Varrer da memoria o seu doce sonho, que já não servia senão para o entristecer e magoar.
Vejamos como elle nos revela o estado da sua alma.

O poeta Simonides, fallando
Co capitão Themistocles um dia,
Em cousas de sciencia praticando,

Um’arte singular lhe promettia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia;

Onde tão subtis regras lhe mostrasse,
Que nunca lhe passassem da memoria,
Em nenhum tempo, as cousas que passasse.

Bem merecia, certo, fama e gloria
Quem dava regra contra o esquecimento
Que sepulta qualquer antiga historia.

Mas o capitão claro, cujo intento
Bem differente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento,

Oh illustre Simonides (dizia).
Pois tanto em teu engenho te confias.
Que mostras á memoria nova via:

Se me desses um’arte, que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias!

Se este excellente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente.
Em longas esperanças degradado,

Oh como bradaria justamente:
Simonides, inventa novas artes
Não midas o passado co presente!
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT

No 31. Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Aquella triste e leda madrugada, cheia toda de mágoa e de piedade, emquanto houver no mundo saudade, quero que seja sempre celebrada»

jdact

De volta de Ceuta
«(…) Como se não ririam dos desastres amorosos do apaixonado poeta os seus inimigos litterarios, os que o apodavam de rústico Magalio, de pomposo Chérilo; os que o tratavam de ignorante, de mau poeta, cujos versos não eram caballinos, antes pareciam de cavallo? Como não deviam irritar o brioso e destemido mancebo, que tinha a consciência do que valia como poeta e que nunca deixou ver as solas dos pés, quando aggredia ou era aggredido, como não deviam irritá-lo, digo, essas más línguas, peores tenções, damnadas vontades, nascidas de pura inveja de verem su amada yedra de si arrancada y en otro muro asida, essas amizades mais brandas que cera, que se accendiam em ódios que disparavam lume que lhe deitava mais pingos na fama que nos couros de um leitão? (escrita da Índia; estou convencido de que entre as amisades de que falla o poeta se contava a de Andrade Caminha, o mal succedido cortejador de dona Francisca de Aragão).
E para acabar de lhe azedar a alma, não faltariam os boatos de que a infanta tinha todo o empenho em não protrahir o seu casamento com o principe das Astúrias.
Foi talvez por pôr a bocca no mau successo dos amores de Camões com a infanta, que Gonçalo Borges, encarregado dos arreios do paço, foi gravemente ferido pelo poeta, na rua de Santo Antão, em pleno dia, quando toda a Lisboa andava na rua para assistir á procissão do Corpo de Deus (16 de Junho de 1552) [a narrativa do facto, contida na carta de perdão, auctoriza, a meu ver, a conjectura de que não foi casual a intervenção do poeta na briga travada entre Gonçalo Borges e os dous cavalleiros mascarados. A immediata retirada destes faz suppôr que o poeta tinha contas a ajustar com aquelle, mas não queria ser o provocador].
Como se sabe, o poeta esteve preso até 7 de Março de 1553 e foi solto por lhe ter perdoado a parte offendida e por ir servir aquelle anno na Índia. E antes de findar o mês, talvez no dia 26, lá saía elle da amada terra, em que lhe ficava o magoado coração.
E tanto mais magoado, quanto ás saudades da infanta accresciam também agora as da menina dos olhos verdes, que, sinceramente compadecida da sorte d'aquelle a quem tanto havia amado e esquecendo profundos aggravos, não quis faltar ao amargurado poeta com o seu perdão nem com as sinceras lagrimas da despedida, na manhã do dia de embarque.

Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Emquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ella só, quando amena e marchetada
Saía, dando á terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ella só viu as lagrimas em fio,
Que, de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.

Ella ouviu as palavras maguadas,
Que poderão tornar o fogo frio
E dar descanso ás almas condemnadas.

(Soneto 20).

E já em pleno mar, é ainda esta doce imagem que o poeta evoca, para arrostar os perigos que o esperavam:

Por cima destas aguas, forte e firme,
Irei aonde os fados o ordenaram,
Pois por cima de quantas derramaram
Aquelles claros olhos, pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me;
Já mil impedimentos se acabaram.
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com animo obstinado.
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido já desesperado.

Em qual figura ou gesto desusado
Pôde já fazer medo a morte irosa
A quem tem a seus pés, rendido e atado?

Mas, como vamos ver, não era só na menina dos olhos verdes que o poeta ia pensando durante a longa e acidentada viagem para a Índia».
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT

No 31. Os Trovadores Medievais. José D’Assunção Barros. «… frequentemente o trovador que louva a sua Dama utiliza uma senha, e jamais enuncia publicamente o nome da Dama a quem dedica as suas canções e o seu serviço amoroso»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Amor Cortês. Reflexões Historiográficas
«(…) Contudo, o sistema do Amor Cortês apresenta outros elementos singulares que são tão ou mais importantes do que aqueles mais propriamente associados às normas políticas da vassalagem. Condição integrante da cortesia é a manutenção do Segredo. O Amador deve manter secreta a sua relação amorosa com a Dama, mesmo sendo uma relação idealizada e que não envolve o contacto sexual. Sendo a Dama em muitos casos casada, e em outros casos ocupando uma alta posição, postula-se que a inobservância deste aspecto poderia abalar de uma maneira ou de outra a reputação da Dama, ou então expô-la gratuitamente aos comentários e à curiosidade alheia. Por isso, frequentemente o trovador que louva a sua Dama utiliza uma senha, e jamais enuncia publicamente o nome da Dama a quem dedica as suas canções e o seu serviço amoroso. Neste ponto, portanto, a fidelidade secreta do amor cortês contrasta com a fidelidade vassálica, já que esta é declarada publicamente.
A Mesura, virtude que torna o Amador capaz de comportar-se com temperança e com moderação diante desta relação amorosa que é por outro lado de completa entrega, deve ser cultivada, e na verdade aprendida pelo trovador ou pelo amante cortês que realiza através do amor o aprimoramento do seu espírito. Deve o Amador exercitar uma infinita capacidade de espera, aprimorando uma paciência que é a única virtude que o permitirá manter-se vivo diante deste desejo extremo que está fadado a não se realizar nunca. Neste sentido, desempenha uma função dialéctica imprescindível a virtude da Mesura, através da qual o Amador procura exercer algum controle sobre os seus próprios sentidos, exercitando-se tanto na capacidade de discrição como na de evitar que o conduza aos extremos da loucura e da morte o inevitável desespero diante do afastamento do objecto amado. É assim que o Amor Cortês, pleno deste e de outros paradoxos, apresenta-se simultaneamente como um extravasamento dos sentidos e como um sistema educativo para a contenção dos sentidos.
Outros paradoxos são ainda inevitáveis. Como manter rigorosamente o Segredo exigido pelo sistema cortês, se a função do próprio trovador é a de cantar o Amor? Como cumprir simultaneamente a fidelidade à Dama com uma estrita observância de silêncio a respeito da vassalagem amorosa, e a fidelidade ao próprio Deus do Amor, a quem o trovador também deve servir difundindo a doutrina do Amor Cortês a partir de exemplos concretos e de suas próprias experiências vividas? Esta contradição também tem sido observada pelos estudiosos do Amor Cortês: ao falar de seus próprios casos amorosos, mesmo que de maneira cifrada, o trovador trai a sua própria Dama; ao falar dos casos alheios, destinados a ensinar os aprendizes do Amor a trilhar o caminho da cortesia, o trovador acaba se comportando como um daqueles losengiers fofoqueiros da vida amorosa que estão sempre prontos a tornar público um segredo de amor. Todo o trovador parece estar irremediavelmente aprisionado pelo complexo circuito do dizer e do não-dizer, que é apenas um dos muitos paradoxos característicos do amor subtil. Um outro aspecto que introduz o Amor Cortês no mundo das contradições é a sua já mencionada incompatibilidade com o Casamento na sua forma tradicional, o casamento que será compreendido aqui como o matrimónio oficializado, tornado público, socialmente condicionado pelos interesses familiares e políticos, voltado para a produção do filho que irá herdar o património feudal, e, sobretudo, rebaixador da mulher medieval ao definir a sua rigorosa sujeição ao jugo do marido». In José D’Assunção Barros, A Arena dos Trovadores, 1995, Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês. Reflexões Historiográficas, revista Alethéia, UFG, Abril/Maio 2008.

Cortesia de Alethéia/JDACT

sábado, 30 de maio de 2020

A Mitologia Clássica no Humanismo do Renascimento Português. António M. Martins Melo. «Havia de ficar ainda esta data associada à sua aclamação como rei. Também as origens da Hélade estão plasmadas em narrativas fabulosas, os mitos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Quando transpomos a muralha da Fortaleza de Sagres e percorremos as veredas estreitas a desafiar inóspitas falésias, conquista-nos a magia do lugar a que os antigos chamaram promontorium sacrum. Finisterra misteriosa, que nos murmura segredos inaudíveis, da intrépida gente henriquina que ousou ir além do horizonte a desafiar os perigos do Mar Tenebroso. Lugar mítico dos descobrimentos portugueses, que nos convida à reflexão, a um regresso às nossas origens, aos primórdios da nacionalidade portuguesa. Envolta pelo sobrenatural, a conferir maior simbolismo à data, a independência de Portugal afirma-se com a lenda do milagre da Batalha de Ourique, a 25 de Julho 1139, dia de S. Tiago, patrono dos cristãos em luta com os mouros. Justifica-se a vitória das forças cristãs, em número muito inferior aos muçulmanos, pela intervenção divina, pois a Afonso Henriques na Cruz o Filho de Maria /.Amostrando-se o animava. Havia de ficar ainda esta data associada à sua aclamação como rei. Também as origens da Hélade estão plasmadas em narrativas fabulosas, os mitos. Indiferentes à verdade, verbalizam eles experiências partilhadas que conduzem à coesão de um grupo social. Exilado na corte de Pélops, que lhe havia de confiar a educação de seu filho, Crisipo, Laio enamorou-se do jovem e raptou-o. Este grave delito na sociedade grega mais primitiva, na época em que surgiu este mito, vai suscitar o terrível oráculo que há-de pesar sobre Laio e sua descendência. Da união com Jocasta vai nascer o amaldiçoado Édipo que porá termo à vida do pai e desposará a própria mãe. Ambiente semelhante rodeia o início da mítica Guerra de Tróia: na ausência de Menelau, rei de Esparta, Páris rapta sua filha Helena e arrasta-a para a Tróia de Príamo, seu pai. Por dez longos anos se arrasta a guerra que vai opor esta cidade ao exército de Agamémnon.
Até que, mercê do ardiloso cavalo de madeira, Tróia é saqueada e destruída pelos Gregos. E os Poemas Homéricos a imortalizaram. A um conjunto de mitos de um povo, de uma cultura ou de um país dá-se o nome de mitologia e, deste modo, podemos falar em mitologia grega, romana ou até em mitologia portuguesa. Povoada por deuses e heróis, comuns à religião, a mitologia grega foi organizada por Homero e Hesíodo, como se depreende do testemunho do historiador grego Heródoto (século V a. C.): efectivamente, penso que Hesíodo e Homero são anteriores a mim uns quatrocentos anos, e não mais. Foram esses os que inventaram aos Gregos a teogonia e atribuíram aos deuses os seus nomes, que repartiram as suas honras e artes, e que descreveram a sua forma.
Entre estes relatos fantásticos, chamam a nossa atenção os mitos cosmogónicos, que narram a criação do mundo. Na Teogonia de Hesíodo, posterior aos Poemas Homéricos, pode ler-se: primeiro que tudo houve o Caos, e depois a Terra de peito ingente... Do Caos nasceram o Érebro e a negra noite e da Noite, por sua vez, o Éter e o Dia... Por aqui nos aproximamos da linguagem mítica do Livro do Génesis, o primeiro da Bíblia, quando descreve a história das origens: no princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: Faça-se a luz. E a luz foi feita... Aqui se narra a criação do homem a partir do barro, a árvore da Vida e da ciência e o mito da serpente , que nos trazem à memória os mitos de Prometeu e de Pandora. O que se explica pela influência dos mitos do próximo oriente, nomeadamente da Suméria, da Babilónia e de Ugarit.
Os romanos vão assimilar a mitologia grega, emprestando-lhe uma feição singular: a mitologia de Roma, como a caracterizou Victor Jabouille, nunca foi fantasmagórica nem cósmica: foi nacional e histórica, ocupa-se essencialmente com a fundação e desenvolvimento da própria cidade. E a mitologia divina, de natureza grega, vai lentamente perdendo a sua expressão e reduz-se ao ritual». In António M. Martins Melo, A Mitologia Clássica no Humanismo do Renascimento Português, Universidade Católica Portuguesa, Braga, Ágora, Estudos Clássicos em Debate 6, 2004.

Cortesia de Ágora/JDACT

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Estudo Morfológico da Cidade de São Tomé. Teresa Madeira. «Relativamente aos modelos que estiveram na génese das cidades insulares atlânticas de origem portuguesa, vários são os autores que referem a influência da cidade medieval e renascentista portuguesa do continente»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Início da Expansão
«(…) De uma forma geral é aceite que a expansão portuguesa se divide em cinco grandes grupos geograficamente distintos: o norte de África, as ilhas atlânticas, a costa africana, o Oriente e o Brasil. No norte de África o domínio português, que se iniciou no princípio do século XV, é marcado em termos urbanos sobretudo pela construção de fortalezas. A actuação nesta altura é marcada, não por uma acção planificada no sentido de uma política urbanizadora, mas sim por um sentido defensivo cujo interesse passava por razões estratégicas. Contemporânea à ocupação do Norte de África é a ocupação das ilhas atlânticas. Com o objectivo de futuros empreendimentos ligados ao interesse de chegar à Índia, a criação de uma rede urbana ligada pela navegação originou o interesse e a colonização das ilhas. Estas, em oposição aos estabelecimentos do Norte de África, reflectem uma forma de urbanização, claramente com um sentido colonizador, idêntica ao que se praticava no continente. A ocupação dos arquipélagos atlânticos iniciou-se na Madeira em 1422, seguindo-se as Canárias 1424, os Açores em 1439, depois Cabo Verde em 1462 e finalmente São Tomé em 1485. Com base na agricultura destinada à exportação, introduziu-se o açúcar, o vinho, as plantas tintureiras e o trigo, sendo estas culturas introduzidas durante a primeira fase de ocupação. As cidades que mais se desenvolveram nestes arquipélagos durante os séculos XV e XVI foram, na Madeira, a cidade do Funchal; no arquipélago dos Açores, as cidades de Angra do Heroísmo e Ponta Delgada; no arquipélago de Cabo Verde, a cidade da Ribeira Grande (embora, só até ao século XVII, tendo-se verificado o seu declínio a partir dessa altura); e no arquipélago de São Tomé e Príncipe, a cidade de São Tomé e Santo António.

As cidades das Ilhas Atlânticas de Origem Portuguesa. Funchal, Angra do Heroísmo e Ribeira Grande.
Como já foi referido é comummente aceite que a prática que se processava no continente foi de certa forma exportada para as cidades da expansão. Certamente que a tradição e prática que se processava no continente na época (século XV), e em épocas anteriores (séculos XIII e XIV) e posteriores (século XVI), foi o modelo que lhes serviu de base. Relativamente aos modelos que estiveram na génese das cidades insulares atlânticas de origem portuguesa, vários são os autores que referem a influência da cidade medieval e renascentista portuguesa do continente. Através da análise da evolução do traçado urbano e de alguns elementos da morfologia do tecido urbano (estrutura de quarteirões, ruas e largos, implantação de edifícios de grande significado e pontos defensivos), apreendeu-se um conjunto de traços comuns às três cidades.

Evolução da Estrutura Urbana
Nas três cidades estudadas a malha urbana nasce a partir de uma rua principal que une dois núcleos urbanos, constituindo esta o elemento gerador e estruturador da referida malha urbana. Para a cidade do Funchal sabemos que a cidade teve origem em dois núcleos urbanos: no núcleo primitivo de Santa Maria do Calhau (onde se ergue a igreja de Santa Maria) e em Santa Catarina onde o capitão mandou erguer a sua casa. O núcleo de Santa Maria do Calhau definiu-se a partir de uma igreja e de um largo que lhe estava associado e de uma rua paralela ao mar, a Rua de Santa Maria. Esta rua, paralela ao mar, existia entre o largo da igreja (junto à Ribeira de Santa Luzia) e a zona onde existe o forte de S. Tiago. Para o lado poente da Ribeira de Santa Luzia e no seguimento da Rua de Santa Maria desenha-se, nesta fase de desenvolvimento, a Rua de Santa Catarina (posteriormente designada Rua dos Mercadores e depois Rua da Alfândega) ligando os dois pólos primitivos, de Santa Maria do Calhau e de Santa Catarina. A este tipo de desenvolvimento corresponde uma estrutura alongada no sentido da costa, percorrendo toda a zona junto ao mar.
Também para a cidade de Angra se reconhece um crescimento deste tipo. Assim temos que o primeiro núcleo urbano se desenvolveu no alto de uma colina no lugar onde se ergueu a primeira fortaleza. Paralelamente a este núcleo desenvolve-se um outro (S. Pedro) do lado oposto da baía de Angra para o lado poente. A ligar estes dois núcleos desenvolve-se uma rua, a actual rua da Sé que liga o núcleo do castelo a S. Pedro. Com o desenvolvimento do porto na zona baixa da cidade houve necessidade de ligar o castelo e o cais. É então que se assiste a um novo crescimento linear através da Rua de Santo Espírito, mas este ao contrário do que acabamos de ver para o Funchal é um crescimento linear, neste caso, perpendicular à costa». In Teresa Madeira, Urbanismo, Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Universo Urbanístico Português, 1415-1822, Coimbra, 1999.

Cortesia de Wikipédia/JDACT

Tratado de Alcanizes. Rei Diniz I de Portugal e o rei Fernando IV de Castela. 1297. «E eu El Rey Dom Fernando de suso dito por mim, e por todos meus Successores com conselo, e com outorgamento, e per autoridade da Rainha Dona Maria, minha Madre, e do Infante Dom Anrique meu Tio»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) E outro si eu El Rey Dom Fernando, entendendo, e conocendo, que vós aviades direito en aluns Lugares dos Castellos, e Villas de Sabugal, e de Alfayates, e de Castel Rodrigo, e de Villa Mayor, e de Castel Boom, e de Almeida, e de Castel Melhor. e de Monforte, e dos outros Lugares de Riba Coa, que vós Rey Dom Diniz teendes agora en vossa mão, e por que me vós partades do direito, que aviedes en Vallença, e em Ferreira, e en no Sparagal, que agora tem a Ordem d'Alcantara asá maão, e que aviades en Ayamonte, e en outros Lugares dos Reinos de Leon e de Galiza. E outro si por que me vós partades das demandas que me faziades sobre razon dos termos, que som antre meu Senorio, e vosso por esso me vos parto do ditos Castellos, e Villas, e Lugares de Sabugal, e de Alfayates, e de Castel Rodrigo, e de Villa Maior, e de Castel Boom, e de Almeida, e de Castel Melhor e de Monforte, e dos outors Lugares de Riba Coa que vós agora teendes à vossa maãao, com todas seus Termos, e Direitos, e perteenças, e partome de toda demanda, que eu hei, ou poderia aver contra vós, ou contra vossos successores per razom destes Lugares sobreditos de Riba Coa, e de cada hum delles. E outo si me parto de todo o Direito, ou jurisdiçom, ou, Senorio Real tambem en possissom come em propriedade, come en outra maneira qualquer, que eu hi avia, e toloo de mim todo, e dos meus successores, e do Senorio dos Reinos de Castella, e de Leom, e ponoo en vós, e em vossos Successores, e no Senorio do reino de Portugal pera sempre. E mando, e outorgo, que se per ventura alguus Privilegios, ou Cartas, ou Estrumentos parecerem, que fossem feitos antre os Reys de Castella, ou de Leom, e os Reys de Portugal sobre estes Lugares sobreditos, d'aveenças, ou de posturas, ou demarcamentos, ou em outra maneira qualquer sobre estes Lugares, que sejão contra vós, ou contra vossos Successores, e me voss o dano,ou em dano do Senorio do Reino de Portugal, que daqui em diante nom valham, nem tenham, nem ajam fermidoim, nem me possa ajudar dellas, eu, nem meus Successores, e revogoos todos para sempre. E eu El Rey Dom Diniz de suso dito por Olivença, e por São Felizes dos Galegos. que vós amim dades, e por Ougela que metedes a meu Senorio, segundo sobre dito hé, parmotivos dos Castellos, e das Villas d'Arouche, e da Aracena, e de todos seus Termos, e de todos seus Direitos, e de todas sas pertenças, e de toda a demanda, que eu hei, ou poderia aver contra vós, ou contra vossos Successores per razom destes Lugares sobreditos, e de cada hum delles, ou dos fruitos delles, que El Rey Dom Affonso vosso Avoo, e El Rey Dom Sancho vosso Padre, e vós ouvetses, e recebestes destes Lugares e dou a vós, e a vossos Successores todo o direito, e jurisdiçom, e Senorio real que eu hei, e de direito devia aaver em esses Castellos, e Villas d'Arouche e da Aracena por quealquer maneira, que o eu hi ouvesse, e tolhoo de mim, e de meus Successores, e no Senorio do Reino de Castella, e de Leom pera sempre.
Outro si eu Rei Dom Diniz de suso dito, por que mi vós vos quitades dos Castellos, e de Villas do Sabugal, e de Alfayates, e de Castel Rodrigo, e de Villar Mayor, e de Castel Boom, e de Almeida, e de Castel Melhor, e de Monforte; e dos Lugares de Riba Coa, com seus termo; que eu agora teno á minha maão, assi como de susso dito he, quimotivos, e partomivos de todo o direito, que eu hei en Vallença, e em Ferreira, e no Esparregal, e em Ayamonte; Outro si mi vosparto de outros Lugares de todolos vossos Reinos em qual maneira quer; Outro si mi vos parto de todolas demandas, que eu havia contra vós per razom dos Termos, que som antre o meu Senorio, e o vosso, sobre que era contenda. E eu El Rey Dom Fernando de suso dito por mim, e por todos meus Successores com conselo, e com outorgamento, e per autoridade da Rainha Dona Maria, minha Madre, e do Infante Dom Anrique meu Tio, e meu Yutor, e Guarda de Avangelos, sobreolhos quaaes pusy minhas maãos, e faço menagem a vós Rey Dom Diniz ateer, e cumprir, e a guardar todas estas couzas de suso ditas, e cada huma dellas pera sempre, e de nunca vir contra ellas per mim, nem per outrem deffeito, nem de conselo, e se o assi nom fezer, que fique por prejuro, e por traidor come quem mata Senhor, e traae Castello. E nós Rainha Dona Maria, e o Infante Dom Anrique se suso ditos, outorgamos tosa estas couzas, e cada huma dellas, e damos poder, e autoridade a El Rey Dom Fernando pera fazellas, e prometemos em boa fé por nós, e polo dito Rey Dom Fernando, e juramos sobreolhos Saantos Avengelos, sobreolhos quaaes pozemos nossas maãos, e fazemos menagem a vós Rey Dom Diniz, que El Rei Dom Fernando, e nós tinhamos, e complamos, e guardemos, e façamos teer, e cumprir, e guardar todalas couzas sobreditas, e cada huma dellas pera sempre, e de nunca virmos contra ellas per nós, nem per outro defeito, nem de direito, nem de conselo, e se o assi nom fazessemos, que fiquemos por prejuros, e por traedores assi como mata Senhor, ou traae Castello. E eu Rey Dom Dinis por mim, e pola Rainha Dona Izabel minha Mulher, e polo Infante Dom Affonso meu Filho, primeiro, e herdeiro, e por todos meus successores, prometo a boa fé, e jura sobreolhos Santos Avangelos, sobreolhos,quaaes pono minhas maãos, e fasso menagem a Vós Rey Dom Fernando por v´s, e por vossos successores, e a vós Rainha Dona Maria, e a vós Infante Dom Anrique de teer, e aguardar, e cumprir todas estas couzas de suso ditas, e cada huma dellas pera sempre, e de nunca vir contra ellas per mim, nem per outrem defeito, nem de dereito, nem de conselo, e se o assi nom fezer, que fique por prejuro, e por traedor come quem mata Senhor, ou traae Castello. E por todas estas couzas sejão firmes, e mais certas, e nom possão vir em duvida, fazemos ender fezer duas Cartas em hum teor, tal ahuma come a outra, seelladas com nossos sellos do Chumbo d nós ambos los Reyes e dos seellos das Raynhas, e do Infante Dom Anrique em testemonio de verdade. Das quuaes Cartas cada huum de nós Reys devemos ateer senhas. Feita em Alcanizes sexta feira doze dias do mes de Setembro. Era de mil trezentos trinta e cinco anos». In Extraído da obra Nos caminhos de Olivença», por Carlos Luna.

In Wikipédia, Carlos Luna, Nos caminhos de Olivença, 2010.

Cortesia de Wikipédia/JDACT

Barco da Carreira dos Tolos. 1850. Obra Crítica, moral e Divertida. José Daniel Rodrigues da Costa. «O outro dia foi huma Saloia alli de Camarate procurar me, dizendo-me que se casava, e que se queria refazer de algum fatinho mais aceado, e sem escrúpulo»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original!

Carreira dos Tolos. Modistas
«(…) Aqui o Arrais compadecido da pobre Velha, e achándo-lhe alguma razão, mandou que entrasse para o Barco-, e com demora de cinco minutos chegou huma Adela, perguntou pelo Arrais, e dando com elle, lhe fallou deste modo: senhor Arrais, aqui venho para fazer viagem na sua Carreira, porque não há huma mulher mais tola do que eu : tenho passado a minha vida na occupação de Adela, tenho ganho muito dinheiro, e vejo-me pobre, como Job. Para eu ver se a sua tolice está no seu auge, lhe respondeo o Arrais, quero saber porque motivo ganhou esse dinheiro, o porque motivo se vê sem elle? Eu, senhor Arrais, lhe replicou a Adela , darei conta de todos os estratagemas, que por mim tem passado nisto de vender fatos alheios, alborcar fatos, e comprar fatos.

O anno passado vendi trinta e dois vestidos de Senhoras, de veludo preto, aos armadores para armações de Igreja, que he hoje só a applicação, que lhes dão, vendidos a doze vinténs o covado: isto então huma fazenda, que custou certamente a meia moeda. Eis-ahi, lhe disse o Arrais, huma desordem causada pelas modas, que abandonão sempre as cousas de valor, para abraçarem trezentas canquilharias. A semana passada, continuou a Adela, vendi oito mantos de huma bella seda em bom uso; e soube que suas donas com o dinheiro delles forão logo comprar chapelinhos do Sol de sete mezinhos, a medalhas para se mostrarem pelas ruas de Lisboa. Tive em minha casa dois caixões cheios de saias de grodetú, que ninguém olhava para ellas: tinha quatro dúzias de aventaes lizos , e bordados, finos, e grossos, que não sabia o fim, que lhes havia de dar: tinha vinte capas de panno fino, tudo dentro do mesmo caixão. Eis senão quando; hum genro que tenho, levado do demo, pilhou-me fora, e roubou-me; e ainda cahi na tolice de o metter outra vez em casa.

O outro dia foi huma Saloia alli de Camarate procurar me, dizendo-me que se casava, e que se queria refazer de algum fatinho mais aceado, e sem escrúpulo. Dei logo parabéns á minha fortuna, assentando comigo que sáias, capas, aventaes, e roupinhas terião alli alguma sahida. Vou ao caixão, e foi então quando não achei, nem hum fio, porque o maroto de meu genro tudo tinha abafado. Ainda mostrei algum fatinho á saloia, que tinha em outro sitio, e cómmodos nos preços; porém ella a tudo cuspio, e a tudo fez focinho, e descarta-se me, dizendo: V. m. julga-me alguma bruta? vá lá para o meu lugar, e verá o que por lá acha! Eu quero fato da moda; se me lá vissem com isto, corrião-me á pedrada: eu quero algum vestido branco bordado, franzido, quasi sem cintura, e sem mangas; quero hum chalé, que tenha ao menos duas varas de largo, e de comprido; quero huma barretina com véó. E finalmente entra a boa da Saloia a fazer-me huma pintura como lá dizem, de tremer». In José Daniel Rodrigues da Costa, Barco da Carreira dos Tolos, Obra Crítica, Moral e Divertida, RB196984, University of Toronto, Typographia de Elias José Costa Sanches, Lisboa, 1850.

Cortesia de T. Sanches/JDACT

O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910). Luiz Rebello. «Mais activa seria a participação de Guilherme Azevedo, (1839-1882), o poeta revolucionário da Alma Nova, que se reunira ao grupo coimbrão…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Teatro em 1871
«(…) Esse mesmo interesse tê-lo-á movido, embora com resultados bem menos relevantes, a escrever duas peças, ambas em verso, baseadas na vida de duas grandes figuras literárias: Gil Vicente (Auto por Desafronta) e Correia Garção (Poeta por Desgraça), que em 1869 foram incluídas no volume de poesias Torrentes. A última fora representada em 1865, no Teatro Académico de Coimbra, tendo Eça de Queirós interpretado o protagonista. Motivos vicentinos inspiraram ainda a Teófilo o auto O Lobo da Madragoa, integrado no 2.º volume da colectânea Folhas Verdes, editada igualmente em 1869. Tempos depois, em 1907, com os cinco actos, enquadrados por um prólogo e um epílogo, de Gomes Freire, reincidiria no drama histórico, que, invocando o Shakespeare de Júlio César e o Schiller de Guilherme Tell, contrapunha à tragédia antiga, considerando-o a expressão teatral moderna por excelência, na medida em que nos pode apresentar os altos caracteres, como tipos de imitação, e dar-nos a lição objectiva dos grandes sucessos como uma animada experiência sociológica. Um propósito semelhante animara Oliveira Martins (1845-1894) a conceber o projecto de um ciclo de quatro peças históricas, que todavia nunca chegou a realizar mas de que confidenciou a Teófilo Braga, numa carta datada de 1869, os títulos e os temas: A Tragédia do Jogral, em que aspirava a desenhar, dentro do movimento nacional português de emancipação dos servos, o carácter da Idade-Média, pela formação da consciência dentro do animal»; Afonso VI, tragédia histórica, simbolizando o cair do direito divino e da autoridade política; O Abade, luta confusa de elementos religiosos, políticos e económicos da sociedade actual; e O Mundo Novo, tragédia ideal representando a fusão e compreensão do espírito com a carne, da ciência com a consciência, o encerramento da Idade-Média, a continuação da antiguidade alargada por todas as descobertas do mundo moral.
Mais activa seria a participação de Guilherme Azevedo, (1839-1882), o poeta revolucionário da Alma Nova, que se reunira ao grupo coimbrão quando este se deslocou para Lisboa entre 1870 e 1871: além de uma tradução de Sardou. (Andréa, 1876) e de uma opereta francesa, escreveu uma comédia-drama em quatro actos, Rosalino, e, em colaboração com Guerra Junqueiro, a revista do ano Viagem à Roda da Parvónia. A primeira, definida por Rafael Bordalo Pinheiro como a expressão espirituosa da sensaboria lisboeta, estreou-se no Teatro Nacional em 1877, mas foi hostilmente recebida pelo público e pela crítica; mais tarde, o autor reduziu-a a três actos, eliminando a parte dramática e refundindo a parte cómica, subindo então de novo à cena no Teatro do Ginásio, mas desta vez com assinalado êxito. Neste mesmo Teatro se representou, a 17 de Janeiro de 1879, a revista escrita de parceria com Junqueiro, anunciada nos cartazes como relatório em quatro actos e seis quadros, da autoria de Gil Vaz (comendador)», que seria pateada das dez à meia-noite e proibida no Governo Civil à uma da madrugada. Dela falaremos mais desenvolvidamente no capítulo dedicado ao teatro de revista, limitando-nos por agora a citar Antero Quental (que em 1875 havia traduzido, com Jaime Batalha Reis, o libreto da ópera-cómica O Degelo, posta em música por Augusto Machado): numa das curiosas notas incluídas na sua edição em livro, o autor dos Sonetos caracterizou-a como a descrição da sociedade de Lisboa, na variedade pitoresca das suas pequenas e não pequenas misérias morais e intelectuais, com os seus ridículos e as suas baixezas, as suas pretensões e a sua ignorância, o seu descaramento e o seu vazio». In Luiz Rebello, O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910, Série Literatura, volume 16, Instituto de Cultura Portuguesa, Livraria Bertrand, 1978, Centro Virtual Camões, Instituto Camões.

Cortesia do ICamões/JDACT

O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910). Luiz Rebello. «… a intervenção dos intelectuais de 70 na vida teatral do país assumiu a figura de uma pequena secante. Nenhum deles fez do teatro, como Garrett, o centro da sua paixão…»


Cortesia de wikipedia e jdact

O Teatro em 1871
«(…) Não se esqueça, aliás, que por finais do século o índice de analfabetismo era da ordem dos 75%. O diagnóstico de Eça Queirós estava, pois, certo. Mas faltava encontrar a terapêutica. E nenhum dos homens da geração de 70, mau grado o interesse que, de um modo ou de outro, todos eles manifestaram pelo teatro, se empenhou a fundo em descobri-la.

A Geração de 70 e o Teatro
Com efeito, a intervenção dos intelectuais de 70 na vida teatral do país assumiu a figura de uma pequena secante. Nenhum deles fez do teatro, como Garrett, o centro da sua paixão dominante, embora eventualmente para ele ou sobre ele houvessem escrito, sem que, no primeiro caso, daí tenham advindo consequências de maior para a sua obra ou para a evolução da nossa literatura dramática. Já no segundo caso o seu contributo se revestiu de um significado mais relevante: a investigação histórica de um Teófilo Braga, a doutrinação estética de um Lourenço Pinto, sobrelevam decididamente o mérito dos, raros aliás, textos dramáticos dos seus companheiros de geração. No citado artigo das Farpas, Eça defendia a criação de um teatro normal que estimulasse a criação de uma literatura dramática, isto é, o enriquecimento do nosso património intelectual». Não foi, decerto, cumprido este propósito com o seu único labor teatral conhecido: uma imprevista tradução (que aliás ficou inédita) de um melodrama francês de Joseph Bouchardy, Philidor, modelo acabado daqueles dramas de efeito que não pouparia, mais tarde, aos seus sarcasmos... É certo que no seu espólio literário foram encontrados apontamentos para uma peça a extrair de Os Maias, o único dos meus livros que sempre se me afigurou próprio a dar um drama, e um drama patético, de fortes caracteres, de situações morais altamente comoventes, diria ele em carta dirigida ao escritor brasileiro Augusto Fábregas, que transpusera O Crime do Padre Amaro para a cena. A adaptação teatral dos Maias ficaria, porém, a dever-se a José Bruno Carreiro (e estrear-se-ia em 1945, no Teatro Nacional, por ocasião das comemorações do primeiro centenário do grande romancista), mas circunscrever-se-ia praticamente ao conflito passional do livro, reduzindo-lhe o alcance da crítica social.
Outras teatralizações da ficção queirosiana foram empreendidas, quase sempre com êxito, pelo conde de Arnoso e Alberto Oliveira (Suave Milagre, 1901), Vaz Pereira (O Primo Basílio, 1915), Artur Ramos (A Relíquia, em colaboração com Luis Sttau Monteiro, 1969), e A Capital, em colaboração com Artur Portela Filho, 1971). E o colaborador de Eça nas Farpas, Ramalho Ortigão, (1836-1915), também limitou a sua actividade dramatúrgica à tradução de obras alheias, embora de melhor quilate que o melodrama de Bouchardy: o Anthony de Dumas (1870), O Marquês de Villemer de George Sand, A Esfinge e O Acrobata de Feuillet (1874), Fromont & C.ª de A. Daudet e A. Belot (1899), a Electra de Pérez Galdós (1901).
O interesse de Teófilo Braga (1843-1924) pela história da nossa literatura em geral, e do teatro em particular, corporizou-se nos quatro tomos da sua História do Teatro Português, publicados em 1870 e 1871 e respectivamente dedicados à Vida de Gil Vicente e sua Escola (que em 1898 seria por ele desenvolvido e desdobrado em dois volumes), à Comédia Clássica e as Tragicomédias, à Baixa Comédia e a Ópera, a Garrett e os Dramas Românticos. Com todos os seus lapsos e inexactidões, as suas hipóteses arriscadas, que o facto de se tratar de um terreno virgem, pela primeira vez explorado, amplamente justificava, com todos os seus preconceitos, a sua conformação aos esquemas mentais do positivismo, ela é ainda o estudo mais completo, mais sistemático, mais rico de informações, que ao nosso teatro até hoje se consagrou: e a verdade, como observou Augusto Costa Dias, é que poucos souberam, como Teófilo, analisar as ideologias na criação literária, os seus aspectos alienatórios e as suas determinações económico-sociais». In Luiz Rebello, O Teatro Naturalista e Neo-Romântico (1870-1910, Série Literatura, volume 16, Instituto de Cultura Portuguesa, Livraria Bertrand, 1978, Centro Virtual Camões, Instituto Camões.

Cortesia do ICamões/JDACT

quinta-feira, 28 de maio de 2020

O Primitivo Teatro Português. Luiz Francisco Rebello. «Foi nos séculos XIII e XIV, e sobretudo nos reinados de Afonso III (1248-1279) e seu filho Dinis I (1279-1325), que a poesia jogralesca viveu entre nós o período mais florescente»

jdact

Primeiras manifestações teatrais: o arremedilho
«(…) É, de resto, com os jograis que melhor se patenteia a fluidez, a indeterminação de fronteiras entre as diversas manifestações dramáticas medievais, cujo sincretismo a obra de Gil Vicente (e, até, alguns dos seus autos isoladamente considerados: pense-se nas Barcas, por exemplo, ou no Auto da Feira) de maneira tão flagrante ilustra. A própria etimologia da palavra arremedilho insinua que se trataria de uma representação elementar em que a declamação e a mímica se combinavam para tornar mais atraente e persuasiva a fábula contada pelos jograis ao seu auditório popular ou cortês: como que a iluminura animada das novelas ou das canções épicas da Idade Média, na definição expressiva de Oscar de Pratt. Remedadores, com efeito, se chamavam no reinado de Afonso X de Castela (di-lo uma declaração do trovador Guiraut Riquier, de 1275, que os aproximava dos contrafazedores provençais), os jograis especializados na arte de imitar; e uma das Cantigas de Santa Maria, do Rei Sábio, conta a história de um jogral que quis remedar como seja a imagem de Santa Maria, e torceu-se-lhe a boca e o braço. Num dos versos dessa mesma cantiga depara-se-nos o termo remedilho, que Menéndez Pidal define como sendo o espectáculo que dava o remedador. Parece, assim, não haver dúvidas de que estamos perante uma verdadeira manifestação dramática, embora incipiente e rudimentar; e tanto que, em pleno século XVI, o autor da anónima Obra da Geração Humana (Gil Vicente?), na cena introdutória, e Chiado (no Auto da Natural Invenção) designam por arremed(i)ação uma modalidade cénica que, na obra do último, se dá também como sinónimo de comédia, representação, auto ou prática. Foi nos séculos XIII e XIV, e sobretudo nos reinados de Afonso III (1248-1279) e seu filho Dinis I (1279-1325), que a poesia jogralesca viveu entre nós o período mais florescente. Apesar de o regimento da casa real, de 1250, proibir que houvesse mais de três jograis na corte ou jogralesas (denominadas soldadeiras) que não viessem de passagem ou se demorassem mais de três dias, a verdade é que em nenhuma outra época tão grande número de jograis e trovadores deverá ter-se reunido na corte portuguesa, o que autoriza a concluir que as representações de arremedilhos fossem, então, frequentes. Não era, de certo, infundadamente que o jogral João Airas, de Santiago, numa das suas cantigas, aludia às ricas e nobres Cortes que faz el-rei. (Convém esclarecer que o trovador se distingue do jogral por uma condição social e um grau de cultura mais elevados, e está para ele como, na antiguidade clássica, o aedo ou rapsodo relativamente ao mimo e ao histrião. Mas esta distinção, que aliás aparece glosada em várias cantigas de escárneo e mal-dizer, é por via de regra mais teórica do que prática).
Abundam, aliás, nos Cancioneiros dos séculos XIII (Ajuda) e XIV (Vaticana e Biblioteca Nacional) as composições poéticas de esquema dialógico, ou tenções, que um breve tratado de versificação, anexo ao último dos citados Cancioneiros, assim define: outras cantigas fazem os trovadores que chamam tenções, porque são feitas por maneira de razão que um haja contra outro, em que diga aquilo que por bem tiver na prima cobra (isto é, copla) e o outro responda-lhe na outra dizendo o contrário. Estas se podem fazer de amor, ou de amigo, ou de escárneo, ou de mal-dizer. Poderiam multiplicar-se exemplos de tais composições, desde as cantigas de trovadores e jograis como Pedro Meogo, Bernaldo Bonaval, Paio Gomes Charinho, Fernando Esguio, Lourenço, o próprio rei Dinis I, que tomam a forma dum diálogo com o namorado, a mãe, a amiga confidente, às polémicas em verso que aqueles entre si travaram, com a questão do Guarecer por trovar em que intervieram o jogral Lourenço, João Garcia Guilhade, João Aboim, João Soares Coelho e João Vasques. A sua estrutura subsiste no Cancioneiro Geral de Garcia Resende (a querela do Cuidar e Suspirar, o processo de Vasco Abul em que interveio Gil Vicente, a porfia entre o conde de Vimioso e Aires Teles sobre a questão de desejar e bem-querer) e nas éclogas de um Sá Miranda, de um Bernardim Ribeiro ou de um Rodrigues Lobo; seria, no entanto, excessivo qualificar, por essa razão apenas, de dramáticas tais composições». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.

Cortesia do ICamões/JDACT

Esboço para um possível Ensaio sobre Fiama Hasse Pais Brandão. Márcio L. Dantas. «Em Obra Breve, os pequenos livros de meus poemas reúnem-se de uma forma contígua, tal como foram vividos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar». In Roland Barthes

(…)
À guisa de apresentação
Este conjunto de ensaios foi uma selecção procedida a partir dos trabalhos referentes à primeira avaliação da disciplina Tópicos de Literatura Portuguesa II, curso monotemático, disciplina complementar, ministrado na graduação de Letras da UFRN, sobre a poeta Fiama Hasse Pais Brandão. A forma e o conteúdo são da responsabilidade dos meus alunos, por sinal, diligentes e afeitos ao gosto pela poesia portuguesa. Tenho em mim, sempre, as palavras de Roland Barthes: há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama de pesquisar. Pois muito bem, ando pesquisando a obra da escritora portuguesa que participou junto com Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge da revista-movimento Poesia 61.

Apontamentos para a Poesia Atómica - em Fiama
Fiama Hasse Pais Brandão, ou simplesmente Fiama (1938-2007), publicou uma vasta obra lírica, de considerável valor estético e múltipla, desde Barcas Novas até âmago I/ nova arte e, sobretudo, o admirável Obra Breve. A poeta, exímia modeladora do corpo do verso (não foi à toa que traduziu para o português o Cântico dos Cânticos, Cântico Maior na sua tradução/recriação), além da publicação do seu último livro Cenas Vivas, de carácter autobiográfico, no qual mostra-nos mais uma das suas facetas, tinha, tal como Pessoa, uma pluralidade estética e literária. Tais qualidades só podem adquirir brilho se o autor envolvido com a força da palavra possuir um vasto repertório no que diz respeito à criação artística e à consciência artística, aliando a tradição ao talento individual tal como pensara Eliot. Fiama os possuía.
Estes apontamentos para poesia atómica de Fiama, breves, aliás, breves como a Obra Breve em análise, basear-se-ão na premissa escrita pela própria poeta na abertura do livro (uma espécie de comentário) que logo colocarei num poema da mesma obra: Tema 4. Assim adverte aos leitores e críticos:

Em Obra Breve, os pequenos livros de meus poemas reúnem-se de uma forma contígua, tal como foram vividos. As cortinas delimitam, confundindo-os, livros e parte de livros; poemas inéditos preenchem alguns intervalos. Na verdade, cada livro tinha sido apenas um corte, a poesia vai sendo escrita, transformada, recortada, ao correr do tempo todo.

Fiama recria, constantemente, parte da sua obra poética ao correr do tempo, reunindo-a tal como foi vivida, como se ela fosse um organismo poético vivo e mutante. A vida e a experiência dão certos sentidos às palavras, revelando a sua face mais bela ou assustadora, oferecendo à poeta inspiração o suficiente para criar e recriar a sua obra inacabada. A crítica talvez se perturbe com tal movimento de escrita e reescrita (perene até o período de vida da autora), contudo, não cabe aos críticos a preocupação com a mudança ou recriação de um poema, ora, o papel da crítica é justamente o de interpretar, sugerir, supor e adiantar algo a partir da análise do poema. Se ele é outro poema (reescrito), deverá se fazer, como se faz com poemas à primeira vista díspares, outra crítica, comparando-os e relacionando-os, percebendo o processo de escrita do poeta e seus ganhos, estéticos ou literários.
Afinal, Nenhum sinal nos calcina as órbitas.
Doravante, para apresentar a proposta deste ensaio, irei expor uma perspectiva de poesia, fazendo uma breve definição, relações com as demais ciências, críticas e literaturas, além de reforçar algumas ideias essenciais do conteúdo poético, desenvolverei características intrínsecas da manifestação verbal poesia, finalizando com o poema de Fiama. Porque realizar tais movimentos? Existe, na poesia portuguesa, um sentimento de tristeza profundamente enraizado na sua tradição (como se pode conferir pelo estilo musical fado), que deram a poetas como Sá Miranda e Camões, temas infindos para a sua poesia. Fiama é diferente. Fernando Pessoa, mesmo sob a face do heterónimo Álvaro de Campos, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, não fugiu à regra. A poeta tende para as poesias de vanguarda dos anos 60, geração de grandes poetas da Europa (Eliot, Pound), deixando a tristeza com os que foram ao mar. Adiante, pois, as poesias de Obra Breve revelam um teor mais moderno do que se imagina; aos sentidos e sentidos da poesia». In Márcio Lima Dantas, Esboço para um possível Ensaio sobre Fiama Hasse Pais Brandão, Departamento de Letras da UFRN, Tópicos de Literatura Portuguesa II, Wikipédia, Poesia 61.

Cortesia de DLdaUFRN/JDACT

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Breve Notícia sobre o Descobrimento da América. Teixeira de Aragão. «Na volta para a Europa, em fevereiro de 1493, aportou á ilha de Santa Maria, onde o capitão João Castanheda, por suspeitas, pretendeu aprisional-o»

jdact

Conforme o original

A América Antecolombiana
«(…) Por este período e segundo dizem vários escriptores, o genovez foi-se guiando por uma carta de marear. Seria a de Toscmelli, egual ã que enviou ao cónego Martins e onde se notava a Antilia? Este homem verdadeiramente extraordinário pela coragem com que persistia, e pela fé cega com que acreditava as inspirações celestes, conseguiu vencer todos os obstáculos e descobrir as ilhas de Cuba, Lucayas c S. Salvador [Varnhagen publicou em Valência a primeira carta que Colombo escreveu a D. Gabriel Sanches, thesoureiro de Aragão, dando conta do famoso descobrimento. Diz o titulo: primera epistola del almirante D. Christobal Cólon dando atenta de su gran descobrimento a D. Gabriel Sanchez, tesorero de Aragon. Acompana el texto original castellano el de la
traduccion latina de Leandro de Cosso, segnn la primera edicion de Roma de 1493, y precede la noticia de una copia del original manuscripto, e de las antiguas adiciones del texto en latin, hecha por el editor D. Genaro H. Volafen (anagratnma de Adolfo de Varnhagen). Depois fez-se nova edição em Vianna, pelo mesmo editor, servindo de texto o único exemplar conhecido da primitiva, em castelhano, que se conserva na bibliotheca Ambrosiona de Madrid, sem indicação de anno. Carta de Christobal Cólon, enviada de Lisboa a Barcelona en Marzo de 1493].
Na volta para a Europa, em fevereiro de 1493, aportou á ilha de Santa Maria, onde o capitão João Castanheda, por suspeitas, pretendeu aprisional-o. A 6 de março entrou o Tejo; e João II, que se achava em Valle do Paraizo, logo que o soube mandou-o chamar, para se informar se o descobrimento das ilhas de Cypango e Antilia, de que vinha tão ufano, estavam dentro dos mares e terras do seu senhorio da Guiné. O genovez alardeando das riquezas e possessões que adquirira para a Hespanha, censurou el-rei João II de não dar credito ás suas promessas. (Aqui contradiz-se em parte a carta que Colombo recebeu em 1488 do monarcha portuguez). Pela sua descortezia houve idéa de o matarem, ao que el-rei se oppoz formalmente. Colombo affirmava ter descoberto a ilha de Ophir, que dizia próxima das Autilias e a que poz o nome de Hispaniola. Pedro Marfim de Angéva na Oceânica diz: ... Offyaã isulã sesse reperisse refert sed cosmographorum tracto, diligêter considerato atilie isule síit ille et adiacètes alies hãc hispaniolã appellanit.
Na corte de Fernando e Isabel foi recebido com as maiores solemnidades em abril de 1493, prestando-se-lhe grandes honras e fazendo-se-lhe largas mercês, entre as quaes a de addicionar ao seu brazão um leão e um caslello.
Em 28 de maio de 1483 foi-lhe confirmado o cargo de almirante, vicerei e governador das ilhas e terras, que havia descoberto e descobrisse. Na mesma data teve a nomeação de capitão general da armada que ia em segunda viagem á índia, com auctorização de prover os officios, e de nomear quem o substituísse na sua ausência. Pouco tempo lhe foi concedido de descanço. A 25 de setembro do mesmo anno tornou a sahir de Cadiz para continuar as descobertas, e os reis de Hespanha, com animo e crença no novo almirante, pozeram á sua disposição 17 navios bem providos e guarnecidos por 1:500 homens. N'esta segunda viagem fundou diversos estabelecimentos nas Antilhas e em S. Domingos. A 24 de abril de 1494 entregou o governo da nova colónia a seu irmão Diogo e, com três caravellas, partiu para continuar as descobertas. Conseguiu chegar ao Cabo de S. António; mas o mau estado dos navios obrigou-o a voltar para a Hispaniola, onde encontrou revoltados a maior parte dos europeus, commettendo as maiores atrocidades, e quando deram noticia da chegada da frota do almirante, apoderaram-se de algumas caravellas e fugiram para Hespanha.
Colombo coadjuvado por seu irmão Bartholomeu e duzentos homens suplantou 100:000 indios; mas fizeram grande numero de victimas, e as crueldades que se praticaram são descriptas por Las Casas com horríveis cores. Constando-lhe que os seus inimigos o accusavam e intrigavam com os reis de Castella, para se justificar, entregou o governo das ilhas a seu irmão Bartholomeu, de sua inteira confiança, com o titulo de Adelanlado de las índias, e embarcou para a Europa». In A. C. Teixeira de Aragão, Breve Notícia sobre o Descobrimento da América, Mckew Parr Collection, Maggellan, BrandeisUniversity (Lo que nos importa), Tipografia da Academia Real das Ciências, Lisboa, 1892.

Cortesia de Adas Ciências/JDACT

Os Meus Amores. Contos e Baladas. Trindade Coelho. «E debruçando-se um pouco na parede, poz-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os hombros…»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

«(…) Se por vezes parava, recolhendo-se n'uma quietação attenta, logo um gesto brusco desmanchava a sua immobilidade de estatua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a andar. Vens ou não vens?, perguntava elle, evocando com dorido esforço a imagem da mulher ou da filha. Não vinha; e quando apparecia era como se fosse um relampago, apagava-se logo. N'esta lucta com a sua dôr as horas iam passando longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrellas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paizagem o largo silencio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia somnolenta do rio. Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosmo e viu um vulto perpassar de repente e de repente sumir-se n'um recanto onde a sombra era mais densa. Temos historia..., resmungou comsigo o rapaz. E, rente a uma arvore, quedou-se alapardado, á espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquillo era mariola de larapio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e poz-se a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira. Cão do diabo!, exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar a pedra. Espera que eu te arranjo... E já ia arremessal-a na direcção do canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao logar onde o rapaz estava. Melhor! Mais a geito ficas...
E debruçando-se um pouco na parede, poz-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os hombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte d'elle, parou. Foi então que o rapaz se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com effeito, ser o d'elle; lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aquelles carreiros por onde ellas tinham andado. Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou: tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luiz... Vossemecê que tem? O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu: doe-lhe alguma coisa, ó tio José? Não dóe, não. Sabes que mais? peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas afflicções. Vae com Deus, vae. O rapaz ficou surprehendido, triste do tom de supplica dorida que o José Cosme dera áquellas palavras, e retirou-se silencioso, quasi aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso jogasse a pedrada.
No emtanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro ruido que não fosse o das aguas do rio. E o José Cosme, sem despegar do seu fadario, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um automato ou um somnambulo. Ás vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar. Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. N'isto, de uma vez que passava em frente do cancello, pareceu-lhe ouvir passos. Ó Thomaz! Sr. José!, respondeu o que entrava, n'uma voz que era mesmo voz de barqueiro. O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontral-o a pé, elle então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado. Como tinha de madrugar... Pois são horas de largar, sr. José; isto vae p'r'as duas». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de PGutenberg/JDACT