sábado, 2 de maio de 2020

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «O eco de minha voz perdeu-se no casarão. Tomei consciência do manto de sombras que se estendia ao meu redor. O clarão dos relâmpagos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O crepúsculo era um telão de mármore acinzentado no horizonte. Tive a impressão de ter ouvido um estalo às minhas costas, na entrada da ruela. Virei-me assustado. Por um instante, senti que alguém estava me seguindo. Mas não havia ninguém, apenas a chuva metralhando as poças d’água no caminho. Enfiei-me pelo portão. A claridade dos relâmpagos guiou meus passos até a casa. Os querubins da fonte me deram as boas-vindas. Tremendo de frio, cheguei à porta da cozinha, nos fundos. Estava aberta. Entrei. A casa estava completamente às escuras. Lembrei-me das palavras de Germán sobre a ausência de eletricidade. Até então, não me tinha ocorrido que ninguém me tinha convidado. Pela segunda vez, eu me enfiava naquela casa sem pretexto algum. Pensei em partir, mas a tempestade uivava lá fora. Suspirei. Minhas mãos doíam de frio e eu mal sentia as pontas dos dedos. Tossi como um cachorro e senti o coração latejando nas têmporas. Minha roupa estava grudada no corpo, gelada. Meu reino por uma toalha, pensei.
Marina?, chamei. O eco de minha voz perdeu-se no casarão. Tomei consciência do manto de sombras que se estendia ao meu redor. O clarão dos relâmpagos filtrando-se pelas janelas proporcionava apenas uma rápida sensação de claridade, como o flash de uma máquina fotográfica. Marina?, insisti. E Oscar... Timidamente, entrei na casa. Meus sapatos empapados produziam um som viscoso ao andar. Parei quando cheguei no salão onde tínhamos jantado na véspera. A mesa estava vazia e as cadeiras, desertas. Marina? Germán? Não obtive resposta. Avistei um castiçal e uma caixa de fósforos em cima de uma mesinha console. Meus dedos enrugados e insensíveis só conseguiram acender a vela na quinta tentativa. Levantei a chama tremelicante. Uma claridade fantasmagórica inundou a sala. Deslizei até o corredor onde tinha visto Marina e seu pai desaparecerem no dia anterior. O corredor conduzia até outro salão, igualmente coroado por um lustre de cristal. Suas contas brilhavam na penumbra como carrosséis de diamantes. A casa era habitada por sombras oblíquas que a tempestade projectava de fora através das vidraças. Velhos móveis e poltronas dormiam sob lençóis brancos. Uma escada de mármore subia para o primeiro andar. Fui até lá, sentindo-me um verdadeiro intruso. Dois olhos amarelos brilharam no alto da escada. Ouvi um miado. Kafka. Suspirei aliviado. Um segundo depois, o gato se retirou para as sombras. Parei e olhei ao redor. Meus passos tinham deixado um rasto de pegadas sobre a poeira.
Tem alguém aí?, chamei novamente, sem obter resposta. Imaginei aquele grande salão décadas atrás, vestido de gala. Uma orquestra e dezenas de casais dançando. Agora, parecia o salão de um navio afundado. As paredes estavam cobertas por quadros a óleo. Todos retratavam a mesma mulher. Era a mesma que aparecia no quadro que vi na primeira noite em que entrei naquela casa. A perfeição e a magia do traço e a luminosidade daquelas pinturas eram quase sobrenaturais. Fiquei perguntando quem seria o artista. Mesmo porque, era evidente que todos eles eram obra da mesma mão. Parecia que aquela dama me vigiava de todos os lados. Não era difícil perceber a incrível semelhança entre aquela mulher e Marina: os mesmos lábios sobre uma pele clara, quase transparente. A mesma figura, esbelta e frágil como a de uma estatueta de porcelana. Os mesmos olhos cor de cinza, tristes e sem fundo. Senti alguma coisa roçar meu tornozelo. Kafka ronronava aos meus pés. Abaixei e acariciei a sua pelagem prateada. Onde está sua dona, hein? Como resposta, ele miou melancolicamente. Não havia ninguém ali. Ouvi o som da chuva batendo no telhado. Milhares de aranhas-de-água corriam pelas calhas. Imaginei que Marina e Germán tinham saído por algum motivo impossível de adivinhar. Em todo caso, não era da minha conta. Fiz um carinho em Kafka e resolvi ir embora antes que retornassem». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT