domingo, 31 de maio de 2020

Camões e a Infanta D. Maria no 31. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Onde tão subtis regras lhe mostrasse, que nunca lhe passassem da memoria, em nenhum tempo, as cousas que passasse»

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No Oriente
Das poesias lyricas escriplas por Camões no Oriente, três sobretudo constituem documentos importantes para a historia da sua paixão pela infanta. São ellas, por ordem chronologica, a elegia 3.a (O poeta Simonides fallando), a canção 10ª (Junto de um secco, duro, estéril monte) e a canção 6.ª (Com força desusada).
A elegia 3.a foi composta, pelo menos em parte, no fim do anno de 1553 ou no começo de 1554, para ser remettida ao seu destino pelas naus que iam partir para o reino (a elegia foi escripta ou pelo menos concluída talvez em Cochim, depois da expedição contra o rei da Pimenta. É possivel, com effeito, que o poeta para alli acompanhasse o vice-rei Affonso Noronha, que ia dar pressa ás naus do reino. Estas, no dizer de Couto, partiram até 15 de Janeiro. M. Perestrello, que voltava na S. Bento, em que fora o poeta, diz que partiram no dia 1 de Fevereiro, 1904).
Para bem se comprehender o estado de espirito do poeta ao escrever esta elegia, cumpre ter presente que, quando elle embarcou para a Índia, o casamento da infanta era cousa definitivamente assente e não devia tardar muito a effectuar-se. O futuro rei de Espanha havia mandado a Lisboa Ruy Gomez Silva, que sobre o assumpto se tinha intendido com João III [(o pouco sincero irmão da infanta ficou preso em uma armadilha que elle próprio tinha preparado, por conselho do activo e astuto Lourenço Pires Távora, embaixador junto de Carlos V. Quando este, formando novos planos políticos, resolveu casar o príncipe seu filho com uma filha do rei dos romanos e destinou a infanta dona Maria para o archiduque Fernando, Lourenço Távora avisou logo João III do novo perigo e aconselhou o alvitre de levar a infanta a não desistir do seu casamento com o filho de Carlos V. Era o meio seguro de inutilizar o novo projecto matrimonial. A infanta, que tanto desejava casar com o sobrinho, accedeu de bom grado ás indicações que neste sentido lhe foram dadas. Mallogrados, porém, dentro em pouco os planos de Carlos V, não restava a João III senão mostrar rosto alegre, e arranjar novos pretextos para adiar o enlace da irmã com o futuro rei de Espanha. Vejam-se as duas curiosas cartas de Lourenço Távora, escriptas em Dezembro de 1550, uma a João III e outra á infanta, e publicadas na Historia de varões illustres do appellido Távora de Ruy Lourenço Távora, Paris, 1648, e na Vida da Infanta dona Maria de fr. M. Pacheco. A carta dirigida á infanta é um modelo de cynismo… diplomático)].
Estava regularizada a questão da entrega do dote e agora o único pretexto que restava ao monarca português era a expressa acquiescencia do imperador, acquiescencia que elle… tinha pejo de soliicitar, apesar das instancias da já outras vezes ludibriada senhora. Oiçamos o próprio João III historiando o caso, quando as suas conveniências politicas lhe fizeram perder o pejo, embora já fosse tarde : Ruy guomcz se despedio de mim &, depoys de ser com o Primcepe, me screueo o Primcepe muitos cõtentamentos da rresposta que lhe mandara pelo dito Ruy guomez, da qual todauia comuinha auisar o Emperador, por ele asy lho ther mãdado. Sabemdo a Imfanta minha Irmaã os termos e que este neguocio estaua & como aymda se auia desperar por rresposta do Emperador, me pedio que eu lhe quisesse despachar huü correo, pelo qual lhe fizesc saber o comtentamento q eu tinha de se este negocio fazer & dos termos em q estaua & do que eu nele acerqua de seu dotte podia fazer. Porque emtemdia q, em quanto o Emperador ysto nam tiuesse sabido de mim, nam poderia o neguocio deixar de pasar a gramde dilaçam ; & com quanto eu em toda cousa deseje sempre dar todo comtentamento posiuel a Imfamte minha Irmãa, nesta em q me falou tiue pejo para o nam fazer como lho aela parecia. Porque deixar de o por em obra como mo rrequcria nam era causa de se o negocio deixar de fazer estamdo elle tamto adiamte como estaua. Do publico, porém, não era conhecido esse pejo, e quando Camões enviou para o reino a elegia 3.a , estava convencido de que a sua bem-amada já se achava em terras de Castella, casada com o principe Philippe.
Que restava ao desolado poeta? Varrer da memoria o seu doce sonho, que já não servia senão para o entristecer e magoar.
Vejamos como elle nos revela o estado da sua alma.

O poeta Simonides, fallando
Co capitão Themistocles um dia,
Em cousas de sciencia praticando,

Um’arte singular lhe promettia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia;

Onde tão subtis regras lhe mostrasse,
Que nunca lhe passassem da memoria,
Em nenhum tempo, as cousas que passasse.

Bem merecia, certo, fama e gloria
Quem dava regra contra o esquecimento
Que sepulta qualquer antiga historia.

Mas o capitão claro, cujo intento
Bem differente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento,

Oh illustre Simonides (dizia).
Pois tanto em teu engenho te confias.
Que mostras á memoria nova via:

Se me desses um’arte, que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias!

Se este excellente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente.
Em longas esperanças degradado,

Oh como bradaria justamente:
Simonides, inventa novas artes
Não midas o passado co presente!
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT