sábado, 28 de fevereiro de 2015

Em Mim… Poesia. David Mourão Ferreira. «E no entanto bem suspeitas ó Mneumósina, rainha! Que hás-de morrer nessa fogueira a que vais dando a tua vida… Mas teu corpo de mármore fugidio, como há-de a humanos golpes sucumbir?»

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Memórias
«Ó Mneumósina, rainha
como tu vives encerrada!
Laboratórios, oficinas,
tudo te serve de mansarda!

Ó Mneumósina, rainha,
instigada da Grande Obra,
brincas connosco às escondidas,
mas tens a morte em tuas órbitas…

Ah! Como cega te arremessas,
ó Mneumósina, rainha!
Nas espirais da cibernética,
nos estilhaços da energia!

E no entanto bem suspeitas
ó Mneumósina, rainha!
Que hás-de morrer nessa fogueira
a que vais dando a tua vida…»


«Mas teu corpo de mármore fugidio,
como há-de a humanos golpes sucumbir?

Se és múltipla, presente em toda a parte,
quem pode assassinar-te, ó testemunha?

Ó bela adormecida na penumbra
dos arquivos, quem consegue atingir-te?

Quem vai secar-te, ó fonte inextinguível
do secular saber?

Quem é capaz
de eliminar teu corpo que não há…?»
Poemas de David Mourão Ferreira, in ‘Memória

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Poesia. Máscaras. Orlando Neves. «Jamais o jogo terá fim, jamais as palavras sairão do caos para a harmonia. Das Palavras apenas fará palavras com duplos triplos sentidos infinitos sentidos. Assim: amigo 1 amigo 2 amigo 3 amigo 4…»


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Pitágoras nos jardins da Babilónia
«Tenta-se o filósofo ao jogo,
no terraço de begónias:
como as palavras serão deuses?
Sofia amigo razão fábula erro música luz
amigo razão fábula erro música luz
amigo razão erro música luz
amigo razão música luz.
A tarde fecha-se num eclipse sem surpresa.
O filósofo está exausto.
Jamais o jogo terá fim,
jamais as palavras sairão do caos
para a harmonia. Das Palavras
apenas fará palavras
com duplos triplos sentidos
infinitos sentidos. Assim:
amigo 1 amigo 2 amigo 3 amigo 4
razão 1 razão 2 razão 3 razão 4
música 1 música 2 música 3 música 4
luz 1 luz 2 luz 3 luz 4.
De súbito, o deserto incendeia-se:
palavras, palavras, campos fechados
expostos à radiação apenas do número
10.

Eis o acorde perfeito, a harmonia,
o princípio de todas as coisas,
a chave do Universo.
Finalmente, as palavras
caminham em busca do equilíbrio:
energia, inteligência, amor.
Pitágoras invoca os céus de Babilónia.
Ó número divino que engendraste
os deuses e os homens, bendito sejas!»


Schopenhauer. Invectiva Platão
«Ei-lo, o tempo, ó velho sonhador,
o círculo, a roda eterna do suplício sem termo.
Opaco como um falso sol,
ele gira, perpetuamente, em torno de si mesmo.
Ixíon é o homem condenado
à repetição infinita da vida.
Ei-lo, o tempo, ó velho grego,
a água que as Danaides
despejam no tonel sem fundo,
circuito perene.
Ei-lo: pedra de Sísifo, sede de Tântalo,
movimento oco, gesto vazio.
Eis o tempo nu, sem artifício, senhor do tédio.
Ó velho sábio ingénuo,
porque lhe chamaste
entrega insaciável a paixões insatisfeitas?
O tempo é o eco,
o nenhum futuro,
apenas monotonia sem fim.
Nada é novo, tudo recomeça igual,
eadem sed aliter».
Poemas de Orlando Neves, in ‘As Máscaras

In Orlando Neves, Máscaras, edições Sol XXI, Tipografia Voz de Lamego, 1997, ISBN 972-8183-52-6.

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O Mistério da Pureza. Alexandre Borges. «Pedro V era, pois, o começar de novo, uma figura que inspirava no imaginário popular uma admiração natural, entre o primeiro Pedro de Portugal, pela história de amor…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Pedro V e dona Estefânia
«Não dissemos nada, demos as mãos, ele beijou-me na testa, eu chorei, ele tinha lágrimas nos olhos, ficámos a olhar-nos por muito tempo, sem nada dizer, mas compreendendo-nos» Poderia ser uma entrada no diário dum poeta. Ou o trecho dum romancista descrevendo um momento perfeito, mas ficcionado, em que duas criaturas, tão feitas uma para a outra que dispensavam as palavras, se conheciam, por fim. Contudo, não foram ditas por qualquer escritor de carreira. São razoavelmente contemporâneas desse género de literatura, mas pertenciam à vida real. Foi a rainha dona Estefânia quem as registou em carta, descrevendo à mãe o momento em que viu pela primeira vez o noivo, Pedro V num cais de Lisboa, a 17 de Maio de 1858. Ela tinha acabado de chegar; ele era como se tivesse.
Cada um de 21 anos incompletos. Tinham casado por procuração no dia 29 do mês anterior, na Igreja de Santa Edwiges, em Dresden. Ela, a princesa de Hohenzollern-Sigmaringen; ele, rei de Portugal, representado na ocasião pelo cunhado, o príncipe Leopoldo, irmão da noiva, um procedimento estranho ao entendimento ocidental no século XXI, mas um ritual frequente ainda naqueles meados de Oitocentos. Agora, ali, diante um do outro selavam o pacto em silêncio. No dia seguinte, casavam de novo, para o país ver, em cerimónia oficial. Casariam as vezes que fossem precisas, porque o termo poucas vezes fizera tanto sentido. Pedro e dona Estefânia tinham acabado de chegar a casa.
Talvez se recorde dele das notas de 1000 escudos, 1000$00. Foi, durante alguns anos, a nota de maior valor facial em Portugal. Ao centro, um homem de cabelo e bigode finos, impecavelmente aparados, rosto angular, olhar claro, fixo num ponto distante, ombros direitos, pose esfíngica, uma figura cristalizada na juventude eterna de príncipe perfeito. Era Pedro V um dos últimos reis de Portugal. E um dos mais amados. Cresceu rodeado de uma aura de esperança. Era o rei que haveria de reconciliar um país dilacerado pelos traumas da guerra civil que, anos antes, opusera o avô, Pedro IV ao tio-avô, Miguel, e, portanto, duas visões opostas do mundo: liberalismo e absolutismo. A sua mãe, dona Maria II, já sarara boa parte das feridas, mas continuava a ser a rainha que resultara duma guerra, para desonra dos vencidos. Pedro V era, pois, o começar de novo, uma figura que inspirava no imaginário popular uma admiração natural, entre o primeiro Pedro de Portugal, pela história de amor, e o desaparecido rei Sebastião.
Todas as histórias que se contavam acerca do jovem alimentavam esse sentimento. Dele se diz que, com apenas ano e meio, já se fazia entender em português, francês e alemão. Tocava bem piano, era hábil na esgrima e no tiro e os críticos apreciavam a firmeza do seu traço no desenho. Crescia numa educação humanista e cheia de princípios, ou não ficasse a sua mãe, para a História, como a Educadora. Realizava trabalho social junto da comunidade. Gostava de escrever e preparar discursos. No futuro, haveria de colaborar na Revista Contemporânea sob pseudónimo, como um vulgar opinador sobre matérias internacionais. Não era, com efeito, um jovem comum. Queixava-se da futilidade das raparigas que se acercavam da família real quando ia passar férias a Sintra. Procurou, desde cedo, a companhia de Alexandre Herculano e isso dizia quase tudo sobre o seu carácter e a forma como preparava as responsabilidades que o aguardavam como filho mais velho da rainha. Herculano era, por esta altura, a autoridade moral do reino. Mas não só. Era a autoridade moral que se desapontara, profunda e irredutivelmente, com esse mesmo reino. Tinha sido um homem invulgar, um soldado-escritor. De armas na mão e no campo de batalha, lutou ao lado de Pedro IV na guerra, realizando na prática os ideais que defendia por escrito. Vencido o combate, recebeu os naturais convites para ocupar lugares políticos no regime que ajudara a implantar. E Herculano chegou a ocupá-los, mas depressa se desiludiu. Preferiu trocar o Parlamento pelas bibliotecas, o presente efectivo pela redacção da primeira grande História de Portugal e pelos romances históricos. Depois, quando desistisse definitivamente dum país que, feitas as contas, continuava a querer títulos de conde e barão, onde não sentia pulsar a força da regeneração, mas a soturna decadência de vícios antigos, retirar-se-ia para o campo». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

As Três Leonores. Uma por cada Guerra. Alexandre Borges. «… falamos de Fernando, o tal rapaz que se punha príncipe garboso e belo e que ficaria oficialmente cognominado de ‘o Formoso’ e, oficiosamente, de ‘o Inconstante’ ou ‘o Inconsciente’»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Fernando é o outro lado da História. É a criança que cresceu sem mãe, educado por uma aia, enquanto o pai vivia o mais célebre romance do imaginário nacional. É o filho de Dona Constança, a mulher que morreu pouco depois de o dar à luz e já nem o pôde amamentar. É o jovem infante que também perdeu cedo o irmão mais velho, Luís, e que foi assistindo a tudo isto debaixo da protecção que lhe conseguiam dar os avós, Afonso IV e dona Beatriz, reis de Portugal. E, naquele tempo, apenas o rodapé ao caso do pai, Pedro, e da amante, dona Inês. O espectador que não sabemos o que sentiu enquanto via o pai desencantar-se da mãe, apaixonar-se por um a aia desta, viver com ela uma relação proibida depois de enviuvar e dar-lhe com dona Inês meios-irmãos. Todavia, este foi Fernando, futuro rei, nos seus primeiros anos de vida, o pequeno príncipe que assistiu à espiral de loucura que tomara conta da família: o avô que manda matar a mulher do pai, um pai que ensandece, manda matar os assassinos de dona Inês e desenterra-a, coroando-lhe a cabeça morta e ordenando que o povo viesse beijar a mão da rainha-cadáver. O excesso romântico de tudo isto. E, no entanto, a verdade é que Pedro, o pai deste rapaz a crescer belo e garboso, seria um rei bem mais equilibrado e menos dramático do que aqueles episódios faziam prever. Uns, chamá-lo-iam para sempre o Cruel, mas outros o Justo. Equilibrou as contas do reino e até gostava de se apear da carruagem real para ir dançar com o povo, no meio dos arraiais.
No entanto, a História é algo bem diferente do que a memória colectiva depois faz dela. A passagem do tempo apenas deixou visível o que estava à superfície: o rei Pedro como eterno apaixonado de uma mulher que amava e fora cruelmente assassinada, e nada mais. Nem uma referência à relação que manteria com esse filho, que sabia que lhe ia suceder, ou àquela que esse filho teria com os meios-irmãos, filhos do pai e de dona Inês, e que também hão-de desempenhar um papel na história das décadas seguintes. E quase nada sobre todos os envolvimentos amorosos que Pedro I levou depois de dona Inês de Casto, num trajecto bem diferente de uma hipotética viuvez pudica e melancólica, e que pode ter incluído dona Beatriz Dias, o escudeiro Afonso Madeira, que um dia teria mandado castrar por lhe ter sido infiel com uma dama da corte, e, acima de tudo, dona Teresa Lourenço, a dama galega da qual nada se sabe (não é sequer certo que se trate de Teresa Gil Lourenço ou Teresa Lourenço de Almeida), a não ser que lhe daria um filho bastardo que, anos mais tarde, haveria de salvar a independência de Portugal. Lá chegaremos. Por agora, falamos de Fernando, o tal rapaz que se punha príncipe garboso e belo e que ficaria oficialmente cognominado de o Formoso e, oficiosamente, de o Inconstante ou o Inconsciente, dando razão àquele velho dito de que beleza não põe mesa logo a partir do dia em que sucedesse no trono ao pai, ano da graça de 1367.
Fernando tinha 22 anos, era belo, valente e senhor dum reino que andava de cofres cheios. O problema, para ele, não começou dentro de portas, mas do lado de 1á da fronteira. Castela estava em guerra depois da morte do rei Afonso XI. O trono era violentamente disputado entre Pedro, também cognominado o Cruel, único filho legítimo do soberano falecido, e o seu irmão bastardo, Henrique de Trastâmara. Fernando começou de forma prudente, mantendo-se neutral, mas o caso mudou de figura quando a contenda atingiu o extremo da infâmia: Henrique mata o irmão, saltando para o trono de forma sanguinária e ilegítima. Temendo pela vida, muitos dos fidalgos que tinham combatido ao lado do falecido Pedro fogem para Portugal. Vinham em busca de refúgio e de algo mais: um novo candidato que representasse o seu partido e destronasse o rei assassino. Fernando ainda bisneto de Sancho IV era também um jovem manipulável e ambicioso, e assim não custou muito a convencer a dar guerra a Henrique e a reclamar para si a coroa castelhana. Começava assim a primeira das guerras fernandinas, todas com Castela, todas dispendiosas, absurdas e inúteis. Deslumbrado com a visão de si mesmo como primeiro rei de Portugal e Castela, isto é, de quase toda a Península Ibérica, Fernando daria início à vertiginosa sangria dos cofres nacionais que o pai, Pedro, numa rara ocasião em toda a História nacional, tão bem equilibrados deixara». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

A Flor-de-Lis e o Leão. Os Reis Malditos. Maurice Druon. «Entre a multidão, os sussurros iam cessando. O silêncio estendia-se como uma onda circular e a jovem voz real ressoava, propagava-se sobre milhares de cabeças, audível quase até ao extremo da praça»

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Os novos reis. O casamento de Janeiro
«De todas as paróquias da cidade, de ambas as margens do rio, de Saint-Denys, de Saint-Cuthbert, de Saint-Martin-cum-Gregory, de Saint-Mary-Senior e de Saint-Mary-Junior, dos Shambles, de Tanner Row, de toda a patte, o povo de Iorque subia há duas horas em filas ininterruptas em direcção ao Minster, à catedral gigantesca, alta, longa, maciça, que ocupava o ponto mais elevado da cidade. Em Stonegate e em Deangate, as duas ruas tortuosas que iam dar ao Yard, já não se conseguia passar. Os adolescentes empoleirados sobre os pilares apenas viam cabeças, nada senão cabeças, um verdadeiro fervilhar de cabeças que cobria completamente a praça. Burgueses, mercadores, matronas com grandes ninhadas, aleijados de muletas, criadas, artesãos, clérigos com os seus capuzes, soldados com cotas de malhas, mendigos andrajosos, todos se confundiam como as palhas de um fardo bem atado. Os ladrões de dedos ágeis faziam negócio para todo o ano. Das janelas das mansardas pareciam sair cachos de rostos. Mas a luz baça e húmida que se espalhava entre o orvalho frio e a nuvem espessa que envolvia o enorme edifício e a multidão que patinhava na lama não parecia uma luz de meio-dia. As pessoas apertavam-se umas contra as outras para conservarem o seu próprio calor.
Estava-se no dia 24 de Janeiro de 1328. Perante Guilherme de Melton, arcebispo de Iorque e primaz de Inglaterra, o rei Eduardo III, que ainda não completara dezasseis anos, casava com Filipa Hainaut, sua prima, que pouco passava dos catorze. Na catedral reservada aos dignitários do reino, aos representantes do alto clero, aos membros do Parlamento, aos quinhentos cavaleiros convidados, aos cem nobres escoceses vestidos de xadrez que se haviam deslocado a Iorque pela mesma ocasião para ratificar o tratado de paz, não restava um único lugar. Dali a pouco seria celebrada a missa solene, cantada por cento e vinte chantres. Mas de momento a primeira parte da cerimónia, o casamento propriamente dito, tinha lugar frente ao pórtico sul, no exterior da igreja e à vista do povo, de acordo com o antigo ritual e os costumes particulares da arquidiocese de Iorque. A neblina deixava rastos húmidos no veludo vermelho do baldaquim erguido frente ao pórtico, condensava-se sobre as mitras dos bispos, colava os mantos de pele às costas dos membros da família real reunidos em volta do jovem casal. Here I take thee, Philippa, to my wedded wife, to have and to hold at bed and at board... Aqui te tomo, Filipa, como esposa, para te ter e guardar no meu leito e em minha casa...
Saída dos seus lábios tenros, do rosto imberbe, a voz do rei surpreendeu pela força, pela clareza e pela intensidade da sua vibração. A rainha-mãe, Isabel, sentiu-se emocionada, bem como João Hainaut, tio da noiva, e todos os outros assistentes das filas da frente, entre os quais se encontravam os condes de Kent e de Norfolk, o conde de Lencastre, Pescoço Torcido, chefe do conselho de regência e tutor do rei. ...for fairer for fouler, for better for worse, in sickness and in health... para o belo e o feio, para o melhor e para o pior, na saúde e na doença... Entre a multidão, os sussurros iam cessando. O silêncio estendia-se como uma onda circular e a jovem voz real ressoava, propagava-se sobre milhares de cabeças, audível quase até ao extremo da praça. O rei pronunciava lentamente a longa fórmula do voto que aprendera na véspera, mas poderia pensar-se que inventava todas as suas palavras, tal a clareza com que dizia cada uma delas, e de tal forma as pensava para lhes impor o seu sentido mais profundo e mais grave. Eram como as palavras de uma oração destinada a ser dita apenas uma vez, e para toda a vida». In Maurice Druon, 1966, Os Reis Inimigos, A Flor-de-Lis e o Leão, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2007, ISBN 978-972-42-3926-2.

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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Congratulou-se com a conversão e estendeu-lhes a sua mão camaleónica. Tempo de personalidade decorosa, de reputação inquestionável era tão pretérito como os seus inquestionáveis ensinamentos sobre os diversos versetos da ‘Tora’»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Reza a história que, quanto ao episódio de Toledo, as confissões foram arrancadas pelos inquisidores no clima de tortura e a reconstituição foi feita conforme a imaginação destes, independentemente de não se ter dado por falta de criança alguma, e muito menos se terem visto restos mortais no local que foi indicado ao inquisidor. Acontecimentos desses eram férteis pela Europa fora e não de exclusividade castelhana. Nessa matéria, a Igreja não falava a uma só voz. Havia vozes ao mais alto nível que se insurgiam contra tais práticas que visavam única e exclusivamente a fomentação de ódios. Já tinha acontecido, no ano mil duzentos e quarente e sete, com a contestação papal, onde este afirmava não haver fundo de verdade no tal ritual e considerava mesmo que tudo não passava de lendas. Era uma posição que, ocasionalmente, Roma vinha a público reiterar. O mistério prevaleceu até ao ano mil setecentos e cinquenta e nove, altura em que foi publicado o resultado de uma investigação exaustiva, pedida pelas comunidades judaicas europeias, ao cardeal Ganganelli, mais tarde papa Clemente XIV, onde se concluiu que tais acontecimentos nunce tiveram lugar em qualquer momento da História da Europa. Em termos imediatos, a acusação valeu aos visados a fogueira e o enforcamento, um pouco à semelhança daquilo que acontecia por todo o reino. Para além da consequência imediata, isto também constituía mais um motivo para atirar a população contra os judeus e conversos.
O amanhã é uma incógnita e nunca sabemos quando é que o destino troca as voltas aos nossos pés e nos traz de volta para calcar um vestígio antigo que a nossa lucidez procura esconder face à incapacidade de esquecer. Invariavelmente, a minha avó emocionava-se a cada vez que contava a forma como tinham perdido tudo. Sua tez franzida, os movimentos das suas mãos e sublinhar as suas palavras, produzidas num tom de voz visivelmente emocionado, mas nem por isso menos segura de si. O seu rosto reabria-se lentamente quando passava a falar da nova vida, apesar do trauma da conversão. Com o seu pé direito que assenta apenas sobre a ponta e lhe confere um andar característico, o rabino Isaías..., não percebo por que carga de água insistem na palavra rabino se o homem rasgou as bases da lei moisaica e adoptou as leis cristãs, se calhar pela sua rabugice, mas pronto..., pronto, era assim tratado e não vou estar agora a questionar. Na altura, um fervoroso cristão-novo, apareceu com a mão do gato, correu o ferrolho, abriu a cancela de recorte de ferro que dava acesso à sua casa e atravessou o caminho dos meus antepassados quando estes regressavam com as mãos vazias, tal como das outras vezes, desde que se converteu, assemelhando-se a um demónio pronto a estrangular as crianças, a minha avó diz ter sentido isso como criança que era, e seduzir o meu bisavô como uma autêntica rainha do mal.
Congratulou-se com a conversão e estendeu-lhes a sua mão camaleónica. Tempo de personalidade decorosa, de reputação inquestionável era tão pretérito como os seus inquestionáveis ensinamentos sobre os diversos versetos da Tora. Deixou-se levar pela correnteza da conversão que arrastou vala abaixo os seus próprios princípios e crença, ao navegar pelo cano cego, numa tentativa de purificar o próprio sangue e quiçá a alma. De pé atrás, fizeram mão morta à oferenda do antigo rabino e viram minimizada a penúria. Ao contrário dos meus antepassados, numa jogada de antecipação, mostrou que a sua fé era mutante. Isso permitiu que ele conservasse o seu padrão de vida no meio da procela e assim estava com os pés na algibeira. A sua mão estendida, triunfalmente, para os meus antepassados, constituía uma espécie de recompensa pelas várias tentativas falhadas para os conduzir pelo caminho da conversão. Para os meus antepassados a fé era inegociável, a menos que isso significasse manter a capacidade de continuar a respirar para depois se recomporem e retomarem o caminho que os sustentava espiritualmente». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

A Última Quimera. Ana Miranda. «Ele me examina com estranheza, tentando reconhecer-me. Recua a cabeça, aperta os olhos e responde, ainda interrogativo, ao meu cumprimento, tocando de leve na cartola. Já vai se afastando de mim quando o interpelo novamente, dizendo algo a respeito de Théophile Gautier»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Talvez ninguém em nossa literatura tenha personificado com tamanha força a figura do outsider, do bizarro, do homem com uma sensibilidade fora do normal, como Augusto dos Anjos (1884-1914). Incompreendido no seu tempo e quase miserável (como herança à família deixou pouco mais do que os exemplares encalhados de seu único livro), o poeta paraibano foi um dos raros escritores a transpor o abismo entre as expressões literárias do final do século e a explosão do modernismo. A sua obra permanece viva, não apenas nos manuais de literatura mas nos poemas que se incorporaram à memória popular. Particularmente notável, neste livro, é a evocação do Rio de Janeiro, onde o poeta atravessou anos cruciais de seu desenvolvimento. Ali, naquela época de transição, quando os primeiros automóveis disputavam as ruas com os tílburis puxados a cavalo, ainda se faziam sentir os últimos suspiros de uma belle époque sensual e boémia. Por esse cenário tumultuado, onde ousados projectos de reurbanização da Capital conviviam com disputas políticas e literárias que magnetizavam toda a população, desfilam personagens reais e fictícios, surpreendidos nos momentos mais significativos. E é nesse contexto inusitado que emerge, como contraponto ao drama de Augusto, a figura ímpar de Olavo Bilac. Tratado com sensibilidade e precisão, ele cresce à medida que o livro avança. Escrita com todo o fausto da nossa língua, esta obra revela-se, no conjunto, uma das mais belas criações da autora e assinala um daqueles momentos sublimes em que o romance histórico alcança o nível da mais inventiva ficção.

A plenitude da existência
Na madrugada da morte de Augusto dos Anjos caminho pela rua, pensativo, quando avisto Olavo Bilac saindo de uma confeitaria, de fraque e calça xadrez, com bigodes encerados de pontas para cima e pincené de ouro se equilibrando nas abas do nariz. Embora esteja perto dos cinquenta anos, o poeta do amor carnal ainda tem aquele olhar que tanto agrada às burguesas e às prostitutas ou, para citar ele mesmo, às lavadeiras e às condessas. Sinto pudor de dirigir-me a este homem erecto, famoso, rutilante, recém-chegado de Paris, no seu tom de poeta supremo, com quem um simples passeio na rua do Ouvidor equivale a uma consagração literária. Não quero ser confundido com um oportunista, ou com um chaleirista. Mas sendo este um momento de profunda tristeza, e a tristeza é uma espécie de anestésico, tomo coragem, jogo fora o cigarro, paro em frente de Bilac e lhe digo um quase inaudível bom-dia, porém percebendo logo o erro que cometi me corrijo: Boa noite.
Ele me examina com estranheza, tentando reconhecer-me. Recua a cabeça, aperta os olhos e responde, ainda interrogativo, ao meu cumprimento, tocando de leve na cartola. Já vai se afastando de mim quando o interpelo novamente, dizendo algo a respeito de Théophile Gautier, a quem Bilac muito admira. Ele pára e se volta, sorrindo. Falamos alguns minutos sobre o escritor francês, desde tolices como minha referência a suas calças verde-água e seu colete cereja, vaiados em plena rua e que se tornaram uma polémica mundial, até coisas importantes, que Bilac introduz na conversa, como comentários a respeito da arte pela arte, dos poetas românticos no cenáculo do beco de Doyenné. Passamos a falar a respeito de Banville e logo, por uma associação perfeita, sobre Baudelaire, de quem uma vez disseram que um odor fétido de alcova porca emanava das suas poesias. Chegamos, portanto, onde eu desejava.
Falar sobre Baudelaire tem o mesmo gosto que falar sobre Augusto dos Anjos. Relato a Olavo Bilac a recente morte do poeta paraibano. Ele me pede que repita o nome. Augusto dos Anjos, repito. Bilac diz que lamenta muito mas, por um lapso, não o conhece, tem andado mais em Paris que no Rio de Janeiro. Com o rosto sinceramente compungido pede informações sobre Augusto, talvez pensando na própria morte, seus últimos poemas não são mais voluptuosos como no Sarça de Fogo, porém melancólicos e reflexivos; e, como cronista, não é mais tão irónico e fescenino. Digo que Augusto foi um grande poeta filosofante, cientificista, sim, mas com um abismo dentro de sua alma que leva o leitor de seus poemas às mais profundas esferas da triste humanidade. Bilac reflecte alguns instantes, segurando o queixo com o indicador e o polegar. Tuberculose?, pergunta, e digo que não sei ainda a causa da morte de Augusto, mas que embora tenha morrido aos trinta anos decerto nunca foi tísico, era todavia asmático; logo saberei o motivo da sua morte, pois pretendo partir no primeiro trem para a cidade mineira de Leopoldina, onde ele morreu, a fim de assistir aos funerais. Bilac abana a cabeça negativamente, num lamento; pede que eu declame um verso qualquer do poeta morto, em seguida se cala, à espera do poema.
Sei de cor todos os versos de Augusto, posso recitar qualquer um deles de frente para trás e de trás para a frente. Mas nunca conseguirei imitar os modos de Augusto quando declamava, transfigurado, sem fazer quase nenhum gesto, usando apenas a voz, numa frieza e paixão simultâneas, as sílabas escândidas com uma sonoridade metálica, os olhos penetrantes, os lábios tensos. Tiro o chapéu, aperto-o contra o peito e, com uma voz trêmula, anuncio o título do poema: Versos íntimos. Raspo a garganta. E inicio a declamação: Vês?! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão, esta pantera foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa ainda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija! Ao terminar estou suspenso, frio, quase tonto e abro os olhos. O senhor Bilac fita-me, imóvel, os lábios entreabertos, os olhos um pouco arregalados, ainda segurando o queixo. Pois bem, ele diz. Eh... Tosse, cobrindo a boca com a mão. Depois cala-se, visivelmente perturbado. Olha para os lados. Num impulso súbito deseja livrar-se de mim. Pois se quem morreu é o poeta que escreveu esses versos, ele diz, então não se perdeu grande coisa». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Os Museus e o Património Cultural Imaterial. Ana Carvalho. «… objecto uma reflexão em torno da salvaguarda do PCI. Deste projecto resultaram mais perguntas do que respostas, às quais importava dar um sentido. Face à inexistência de um debate profundo sobre esta matéria em Portugal…»

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Estratégias para o desenvolvimento de boas práticas
«A salvaguarda do Património Cultural Imaterial (doravante PCI) é um tema que tem merecido particular destaque nos últimos anos nos fóruns internacionais, especialmente os promovidos pela UNESCO, motivando o interesse crescente de profissionais de várias áreas para a sua investigação e análise. Mas não só, o ICOMOS, o ICOM e a WIPO são também algumas das organizações envolvidas no debate e que se prolonga nos meios universitários. De certa forma, este era um campo tradicionalmente restrito aos antropólogos e sociólogos, mas pouco a pouco o debate expandiu-se com a participação de museólogos, historiadores, arquitectos, urbanistas, entre outros. Assistimos nas últimas décadas a um alargamento significativo do conceito de património cultural. A ideia de património estritamente focada nos monumentos e sítios foi sendo abandonada, passando por um processo evolutivo que introduz novas dimensões ou novos patrimónios. Por outro lado, ganhou expressividade uma perspectiva antropológica da cultura, mais interessada nos processos, em detrimento de uma visão centrada apenas nos objectos. Daqui resulta uma definição de património que se constitui por um conjunto de expressões, interligadas e complexas, apelando à diversidade cultural, da qual o PCI é um dos elementos essenciais. Vários foram os termos utilizados ao longo do tempo, alguns até com carácter pejorativo, mas a designação PCI ganhou recentemente mais expressividade, sobretudo na esfera política, como conceito operativo, introduzido pela UNESCO.
O PCI compreende um conjunto diverso de expressões e tradições que as comunidades e os grupos vão transmitindo de geração em geração, recriando-as ao sabor dos tempos. Trata-se de um património vivo que se vai expressando através da música, da dança, da oralidade, do teatro e dos objectos, fazendo parte de uma complexa teia de valores, sistemas do conhecimento e saberes que estão associados à vida humana. Considerado um pilar fundamental da diversidade cultural, o PCI está na base da(s) identidade(s) das comunidades. No entanto, estes conhecimentos raramente são documentados e, na maior parte das vezes, correm o risco de se perder indelevelmente, tendo em conta que se encontram muito condicionados pelos efeitos homogeneizadores da globalização. Este é um património que importa salvaguardar de modo a que continue a ser praticado e transmitido no seio das comunidades onde se insere. A par das preocupações vindas da antropologia em resgatar os vestígios de uma sociedade cujas práticas sociais e culturais tradicionais estão em vias de desaparecer e de um contexto político preocupado com os efeitos da globalização, surgem algumas movimentações relativamente à protecção deste património. A UNESCO tem preconizado muitas das iniciativas que colocaram o tema do PCI na ordem do dia, alimentando a discussão em torno da sua salvaguarda, dando-lhe assim amplo reconhecimento internacional. Exemplo disso é o culminar de um longo caminho percorrido em prol da protecção deste património, primeiro com a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore, em 1989, e, mais recentemente, com a adopção da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial em 2003 (doravante Convenção de 2003). Esta Convenção vem reconhecer a importância do PCI e completar, de certo modo, um espaço deixado pela Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural de 1972 (doravante Convenção de 1972), um instrumento jurídico mais direccionado para o património material.
Apesar do seu relativo sucesso, se assim se pode dizer, a Convenção de 2003 tem sido objecto de várias críticas. Muitos debates têm surgido em torno da sua implementação e dos princípios que lhe estão adjacentes. Mas a verdade é que a ratificação da Convenção pelos Estados-Partes, que actualmente já ultrapassa a centena, obriga a uma reflexão que cada país terá que necessariamente fazer em torno da formulação de políticas culturais de valorização do PCI. Afinal, essa é uma consequência directa da aceitação deste documento normativo. Assim, tal como a Convenção de 1972 viria a mudar indiscutivelmente o panorama político de salvaguarda do património cultural, é comummente aceite que o mesmo se passará com esta nova Convenção. A motivação para desenvolver este tema nasce das interrogações que surgiram no decorrer do trabalho de campo realizado no contexto de um projecto de dois anos que teve como objecto uma reflexão em torno da salvaguarda do PCI. Deste projecto resultaram mais perguntas do que respostas, às quais importava dar um sentido. Face à inexistência de um debate profundo sobre esta matéria em Portugal e perante os desenvolvimentos introduzidos pela UNESCO a propósito da Convenção de 2003 e respectiva conjuntura actual, considerou-se oportuno aprofundar este tema e interligá-lo com os museus. No que respeita à museologia, é conhecido o apoio do ICOM à Convenção de 2003. Em documentos como a Carta de Shanghai (2002) ou a Declaração de Seoul (2004), o ICOM reconhece o papel dos museus na salvaguarda do PCI». In Ana Carvalho, Os Museus e o Património Cultural Imaterial, Estratégias para o desenvolvimento de boas práticas, Edições Colibri, CIDEHUS, Universidade de Évora, 2011, ISBN 978-9879-689-169-5.

Cortesia de EColibri/JDACT

Escutar a Literatura. Vieira Carvalho. «Este é o ponto que, segundo Tomasello, marca a diferença entre os grandes símios e os humanos: os símios ‘apontam’, mas não ‘cooperam’ no gesto de apontar; os humanos ‘apontam e cooperam’ indissociavelmente»

jdact

Universos Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«(…) Dir-se-ia que a hipótese de Rousseau, que em todo o caso defende a maior proximidade à natureza da linguagem gestual, é em parte confirmada na obra de Michel Tomasello, origins of Human Communication, publicada em 2008, onde o autor sintetiza as conclusões a que tem chegado ao longo de anos de observação e experimentação com grandes símios, confrontando-as com a investigação em curso sobre a comunicação com recém-nascidos ou crianças com poucos meses de idade. Segundo as investigações de Tomasello, é no gesto, no gesto de apontar, no gesto de mostrar, que reside o fundamento originário da comunicação humana. Tomasello opõe-se, pois, àqueles que vêem antecedentes da comunicação falada nas vocalizações dos símios ou que, como Georg Knepler (1982),abordam a antropogénese como um processo ao longo do qual um único sistema de comunicação acústica se subdividiu em dois: fala e música. Tomasello conclui das suas observações que as vocalizações dos grandes símios são de natureza filogenética e se mantêm inalteradas, mesmo quando eles são submetidos a um contacto intensivo com os humanos, ao passo que os gestos são do domínio da ontogénese, susceptíveis de aprendizagem cultural. E essa aprendizagem que está, por sua vez, inscrita evolucionariamente na infraestrutura psicológica oculta, altamente complexa, da intencionalidade partilhada, exclusiva da espécie humana, no âmbito da qual os humanos usam os seus gestos para construir um modelo cooperativo de comunicação. Este é o ponto que, segundo Tomasello, marca a diferença entre os grandes símios e os humanos: os símios apontam, mas não cooperam no gesto de apontar; os humanos apontam e cooperam indissociavelmente.
O fundacional na comunicação humana não está, pois, segundo Tomasello, no código ou nas convenções, mas sim noutras formas em que se manifesta a intencionalidade partilhada e o propósito cooperativo: nos gestos naturais de apontar e mimar. Os gestos humanos emergiram evolucionariamente a partir dos gestos dos símios e abriram caminho à completa convencionalização das linguagens humanas. Do ponto de vista psicológico-funcional, Tomasello indica dois tipos básicos de comunicação baseados no gesto de apontar e/ou mimar:
  • Dirigir a atenção do receptor espacialmente para algo no meio-ambiente imediatamente percepcionado (gesto deítico, usado pelas crianças desde a mais tenra idade); 
  • Dirigir a imaginação do receptor para algo não presente no meio-ambiente imediatamente percepcionado, através da simulação comportamental de uma acção, relação ou objecto (isto é, por via icónica ou da pantomima): induz-se o receptor a imaginar um referente ausente do campo da percepção ou acções que não estão a ocorrer nesse momento.
Enquanto os grandes símios solicitam coisas usando sinais ritualizados, compreendem intenções e percepções, raciocinam na prática sobre elas, os humanos somam a essas competências mais duas componentes: novos motivos de ajuda e partilha; nova aptidão para imitar acções (incluindo a aptidão para reverter o papel, role reversal, dando origem a gestos icónicos e convenções comunicativas». In Mário Vieira Carvalho, Escutar a Literatura, Universos Sonoros da Escrita, Edições Colibri, Universidade Nova de Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-689-427-6.

Cortesia EColibri/JDACT

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Festejos no Porto pelos casamentos dos príncipes João com dona Carlota Joaquina Bourbon e e de dona Mariana Vitória com Gabriel Bourbon. Joaquim Ferreira Alves. « O Porto, sendo a cidade depois da capital, a mais illustre do Reino pela sua opulência e grandeza, aproveitou, através da festa apologética do poder»

Cortesia de wikipedia

«O duplo casamento efectuado em 1785 entre dois filhos de dona Maria I (1734-1816/1777-1816) e do rei consorte Pedro III (1717-1786), o infante João (1767-1826) e a infanta dona Mariana Vitória Josefa (1768-1788), com dois membros da Casa Real de Espanha, respectivamente a infanta dona Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830), filha dos príncipes das Astúrias, e o infante Gabriel António Francisco Xavier Bourbon (1752-1788), filho do rei de Espanha Carlos III (1716-1788) e da rainha dona Maria Amália da Saxónia (1724-1760), motivaram grandes festejos nos dois reinos peninsulares. Nas manifestações de júbilo de 1785, que se inserem no designado cycle humain individuel de la famille régnante, encontramos a permanência do esquema da festa barroca. Esta, cujo mecanismo político/artístico se estruturou a partir do Renascimento, com formas herdadas do passado romano e medieval, encontrou nos séculos XVII-XVIII, as épocas da sua total identificação com o poder. O rei, e por extensão a família real, é o actor/espectador por excelência de um ritual complexo, que o mitifica perante uma nobreza dependente da sua liberalidade grandiosa, e um povo quase ausente do seu quotidiano e que apenas o vislumbra. Pela festa, consequência de motivações diversas, nascimento, casamento, aniversário, morte, entrada pública, coroação, vitória militar, o monarca torna-se num objecto de culto. Lugar tenente de Deus na terra, e a quem Deus designa como divino, no conceito de Jaime I (1566-1625), rei da Escócia (1567-1625), da Inglaterra e Irlanda (1603-1625), expresso no Basilikon Doron (Edimburgo, 1599), o soberano vai ser o centro da festa barroca, metamorfoseando-se, por vezes, numa divindade, Febo-Apolo/Luís XIV (Ballet royal de la Nuit, dançado pelo rei em 1653), ou presidindo a um Olimpo familiar, como Jean Nocret (1615-1672) representa Luís XIV (1638-1715) e a sua família. A festa, como imagem do poder, reproduz-se no Ancien Régime nos diversos poderes que o constituem, com programa e impacto proporcional à importância do motivo festivo; da mesma forma, o espectáculo/imagem do poder, que atingiu o modelo acabado no Barroco, será mantido nos séculos seguintes com as diferenças próprias de cada época, com momentos de grande esplendor.
Referidas as motivações, várias questões se levantam em relação à festa barroca relacionada com o poder centrada no mundo português. Se a capital, e principalmente o lugar onde está a corte, é o espaço onde se realizam as principais festividades, estas vão ter repercussão em todo o território. Numa época em que os monarcas quase não se deslocavam, restringindo as suas saídas a uma área limitada à volta da capital, aos espaços das caçadas e excepcionalmente a locais de peregrinação e termais, os momentos festivos serviam para unir todo o território europeu e as colónias à volta da família Real, reforçando assim a ligação natural entre vassalos e os seus soberanos. O despoletar de todo o processo festivo, após a chegada da carta régia que o anuncia, é promovido pelas autoridades locais (Senado da Câmara, Provedor da Comarca, autoridades eclesiásticas e militares) que, além de serem os principais organizadores do programa, vão motivar outras instituições (academias e irmandades) e particulares (nobreza e negociantes estrangeiros), a participar com outras realizações.
O programa era constituído por festas religiosas (tríduos, missas, vésperas, procissões) e profanas (touradas, cortejos, representações teatrais, música e canto, danças e bailes, serenatas, encamisadas, cavalhadas, banquetes e refrescos, luminárias, fogo de artifício), que tinham como palco preferencial o mundo urbano, tanto nos seus espaços abertos (praças, ruas, jardins), como nos espaços fechados (igrejas, palácios, teatros). Apontadas algumas das questões relacionadas com a festa, todas elas constituindo um frutuoso campo de estudo, queremos ainda referir que para a sua concretização são mobilizados escritores, poetas, pintores, escultores, cenógrafos, costureiros, entre outros criadores, assim como artistas e artífices, menos conhecidos, contribuindo todos, através dos seus textos e das montagens efémeras, para a glória do motivo festejado, para a afirmação da sua vassalagem, e para, no tempo festivo, uma parte da população se esquecer das dificuldades de um quotidiano. Toda esta realidade se repetiu nas festividades de 1785 que, ultrapassando Lisboa/Vila Viçosa-Madrid/Aranjuez, os principais locais em que foram vividas, se estenderam do Minho ao Maranhão. O Porto, sendo a cidade depois da capital, a mais illustre do Reino pela sua opulência e grandeza, aproveitou, através da festa apologética do poder, para mais uma vez mostrar a lealdade e amor, que sempre tributou aos seus soberanos.

Festejos no Porto (11 a 29 de Junho de 1785)
Ainda que o duplo consórcio se tenha realizado entre Março/Abril de 1785, só em 10 de Junho é que o Corregedor e Provedor da Comarca do Porto, Francisco Almada Mendonça (1757-1804), recebeu a carta régia, pela qual era informado dos Augustos Desposorios dos Sereníssimos Infantes, e na qual se solicitava que fosse dado conhecimento da alegre noticia ao Senado da Câmara, e se recomendava que se fizessem aquellas demonstrações de jubilo, que a fidelidade dos póvos costuma manifestar em similhantes ocasiões». In Joaquim Jaime B. Ferreira Alves, Festejos no Porto pelos casamentos dos príncipes João com dona Carlota Joaquina Bourbon e e de dona Mariana Vitória com Gabriel Bourbon, CEPESE. Universidade do Porto, História de Portugal, Século XVIII, FLUP, 2014, 000 207 130.

Cortesia de UPorto/JDACT

Contos Júlio Cortázar. André Bueno. «Ahora estas noticias / esta collage de recuerdos / Igual de lo que cuentan/ son la obra anónima:la lucha / de um puñado de pájaros/ contra La Gran Costumbre. / Manos livianas las trazaron / con la tiza que invienta la poesia en la calle / com el color que asalta los grises anfiteatros»

Cortesia de wikipedia

«(…) A seu modo, Libro de Manuel ensaia a necessidade dessa aproximação entre o espírito libertário, lúdico, erótico e alegre, e os processos revolucionários. Não era, sem dúvida, uma aposta pequena. Mas fica claro que para o escritor argentino se tratava de uma aposta fundamental: apoiar as lutas de libertação, sobretudo na América Latina, sem renunciar à liberdade e à imaginação criadora, a pretexto de pragmatismo ou necessidades objectivas ditando a forma e o sentido da arte. Desse ângulo, Cortázar precisava acertar as contas com a pesada herança do stalinismo e do chamado realismo socialista. Sem dúvida uma herança pesada e autoritária, que rompeu de vez as produtivas aproximações entre vanguarda estética e vanguarda política. Fiquem como exemplos, salientes, as tentativas dos surrealistas se aproximarem do movimento comunista e a vanguarda soviética apoiando a Revolução em seu primeiro período. Cabendo lembrar, e frisar, que ambas as aproximações entre estética e política foram cortadas, de modo violento, pela ascensão do próprio stalinismo, que encerrou de vez a conversa. Na forma nada subtil da censura, do exílio ou prisão dos artistas. Tendo como marco, triste de lembrar, o suicídio de Vladimir Maiakovski no final da década de 1920. É certo que Cortázar, assim como muitos intelectuais e artistas, tanto na Europa como na América Latina, viram na Revolução cubana a esperança de um outro modelo, um contraponto ao stalinismo, na forma de um socialismo democrático, que respeitasse e apoiasse a liberdade no campo da cultura e da arte. Um divisor de águas nessa esperança acontece ainda na década de 1960, com o julgamento público do poeta Heberto Padilla.
Para muitos que apoiavam a Revolução cubana, ou ao menos eram simpatizantes, pareceu muito incómoda a semelhança do julgamento do poeta com os Processo de Moscovo na década de 1930. Como era de se esperar, as simpatias mais superficiais se desfizeram, e os apoios mais fundados e sérios precisaram, de facto, lidar com um problema nada fácil. Cortázar não trata do assunto, mas também não era um problema nada fácil de lidar a perseguição aos homossexuais em Cuba, muitas vezes jogados em presídios comuns, como criminosos. As memórias do escritor Reinaldo Arenas, que morreu de SIDA no exílio, dão uma notícia amarga dessa perseguição infame. Não ajuda muito saber que no presente, já velho, Fidel Castro tenha feito uma autocrítica da perseguição aos homossexuais em Cuba. No que diz respeito à justiça social e a liberdade, Cortázar foi sempre claro: o seu apoio à Revolução, fraterno e leal, jamais levaria a um enquadramento da sua imaginação crítica e criativa. E assim, de facto, aconteceu. O escritor argentino nunca colocou sua literatura a serviço de, nem reduziu o alcance do que escrevia ao horizonte estreito e instrumental das disputas imediatas no campo das lutas e dos partidos políticos. Em resumo, quis sempre criar pontes e passagens, manter vivo o espaço que relaciona estética e política. Sabendo que a Revolução nunca é um ameno piquenique ou convescote intelectual, mas acreditando que liberdade e justiça social precisam andar juntas.
Já foi notado, e me parece correcto, que Cortázar, em Libro de Manuel, leva as indagações de Rayuela, de tipo existencial e libertário, para o contexto histórico e social do começo da década de 1970. Para tratar de uma situação extrema, a ditadura militar argentina e a resistência armada ao regime- apenas uns poucos anos depois das revoltas de 1968, das quais participou com entusiasmo e alegria. Na Paris que escolhera para viver. É desse período um longo poema, uma espécie de colagem, intitulada Notícias del mês de Mayo, publicado em Ultimo round, no ano de 1969.(...) Poema-colagem em que se lê o momento histórico, brevíssimo, em que a utopia ocupou as ruas: Ahora estas noticias / esta collage de recuerdos / Igual de lo que cuentan/ son la obra anónima:la lucha / de um puñado de pájaros/ contra La Gran Costumbre. / Manos livianas las trazaron / con la tiza que invienta la poesia en la calle / com el color que asalta los grises anfiteatros. / Aqui prosigue la tarea / de escribir en los muros de la Tierra: / El sueno es realidad. ( Cortázar, 1969)
O contraponto não poderia ser mais forte, e difícil. Logo depois dessas imagens do Maio de 1968, da poesia na rua, do sonho parecendo realidade, da imaginação ocupando o lugar seco do poder e do costume mais conformista e arraigado, Cortázar precisava tratar de um estado de excepção, com todo seu cortejo de massacres. Do lado de lá, em Paris e na Europa, as esperanças de 1968 foram derrotadas, e as forças conservadoras voltaram a ocupar seu lugar, sem o recurso ao estado de excepção aberto e declarado. Do lado de cá, na América Latina, já começara, e continuaria ao longo da década de 1970, um ciclo pesado de golpes e ditaduras. É com certa melancolia que se nota a extensão do recuo, em tão breve espaço de tempo. Não poderia ser maior a distância que separava a imaginação e o poder». In André Bueno, Alguns contos de Cortázar. Literatura e autoritarismo, Espaço urbano e Experiências de desolação e violência, revista nº 19, 2012, ISSN 1679-849X.

Cortesia de RLAutoritarismo/JDACT

Livro de Manuel. Júlio Cortázar. «… es decir la carrera humana por una pista falsa, una realidad aceptada hasta ahora como real y así nos va. Consecuencia: hay un solo deber y es encontrar la buena pista. ‘Método, la revolución. Sí’»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Una prueba de su intención de entrar de inmediato en materia (y tal vez de mostrar la dificultad de hacerlo) la daba inter alia el hecho de que el que te dije estuviera escuchando cuando Ludmilla, después de juntar y desjuntar las manos como en un ejercicio gimnástico más bien esotérico, me miró despacio con ayuda de un dispositivo ocular profundamente verde y me dijo Andrés, tengo una impresión al nivel del estómago de que todo lo que ocurre o nos ocurre es muy confuso. Polaquita, la confusión es un término relativo, le hice notar, entenderemos o no entenderemos, pero lo que vos llamas confusión no es responsable de ninguna de las dos cosas. Sólo de nosotros, me parece, depende entender, y para eso no basta medir la realidade en términos de confusión o de orden. Hacen falta otras potencias, otras opciones como dicen ahora, otras mediaciones como archidicen ahora. Cuando se habla de confusión, lo que casi siempre hay es confusos; a veces basta un amor, una decisión, una hora fuera del reloj para que de golpe el azar y la voluntad fijen los cristales del calidoscopio. Etcétera. Blup, dijo Ludmilla, que se valía de esa sílaba para irse mentalmente a la vereda de enfrente y andá seguila.
Claro que, observa el que te dije, a pesar de ese obstruccionismo subjetivo el tema subyacente es muy simple:
1) La realidad existe o no existe, en todo caso es incomprensible en su esencia, así como las esencias son incomprensibles en la realidad, y la comprensión es otro espejo para alondras, y la alondra es un pajarito, y un pajarito es el diminutivo de pájaro, y la palabra pájaro tiene tres sílabas, y cada sílaba tiene dos letras, y así es como se ve que la realidad existe (puesto que alondras y sílabas) pero que es incomprensible, porque además qué significa significar, o sea entre otras cosas decir que la realidad existe;
2) La realidad será incomprensible pero existe, o por lo menos es algo que nos ocurre o que cada uno hace ocurrir, de manera que una alegría, una necesidad elemental lleva a olvidar todo lo dicho (en 1) y pasar a;
3) Acabamos de aceptar la realidad (en 2), sea lo que sea o como sea, y por consiguiente aceptamos estar instalados en ella, pero ahí mismo sabemos que, absurda o falsa o trucada, la realidad es un fracaso del hombre aunque no lo sea del pajarito que vuela sin hacerse preguntas y se muere sin saberlo. Así, fatalmente, si acabamos de aceptar lo dicho en 3), hay que pasar a;
4) Esta realidad, a nivel de 3), es una estafa y hay que cambiarla. Aquí bifurcación, 5 a) y 5 b): Ufa, dice Marcos;
5 a) Cambiar la realidad para mí sólo, continúa el que te dije, es viejo y factible: Eckart, Zen, Vedanta. Descubrir que el yo es ilusión, cultivar su jardín, ser santo, a la caza darle alcance, etcétera. No. Hacés bien, dice Marcos;
5 b) Cambiar la realidad para todos, continúa el que te dije, es aceptar que todos son (deberían ser) lo que yo, y de alguna manera fundar lo real como humanidad. Eso significa admitir la historia, es decir la carrera humana por una pista falsa, una realidad aceptada hasta ahora como real y así nos va. Consecuencia: hay un solo deber y es encontrar la buena pista. Método, la revolución. Sí.
Che, dice Marcos, vos para los simplismos y las tautologías, pibe. Es mi librito rojo de todas las mañanas, dice el que te dije, y reconoce que si todo el mundo creyera en esos simplismos, a la Shell Mex no le sería tan fácil ponerse un tigre en el motor. Es la Esso, dice Ludmilla, que tiene un Citroen de dos caballos al parecer paralisados de terror por el tigre puesto que se paran en cada esquina y el que te dije o yo o cualquiera tiene que empujar a las puteadas. Al que te dije le gusta Ludmilla por esa manera loca de ver cualquier cosa, y a lo mejor por eso de entrada Ludmilla parece tener como un derecho a violar toda cronología; si es cierto que ha podido dialogar conmigo (Andrés, tengo una impresión al nivel del estómago...), en cambio el que te dije mezcla quizá deliberadamente sus papeles cuando hace hablar a Ludmilla en presencia de Marcos, ya que Marcos y Lonstein están todavía en el metro que los trae, es cierto, a mi departamento, mientras Ludmilla está haciendo su papel en el tercer acto de una comedia dramática en el Teatro del Vieux Colombier. Al que te dije esto no le importa en absoluto, puesto que dos horas después las personas nombradas habrán de reunirse en mi casa; pienso incluso que lo decide ex profeso para que nadie nosotros incluidos y sobre todo los eventuales destinatarios de sus loables esfuerzos, se haga ilusiones sobre su manera de tratar el tiempo y el espacio; al que te dije le gustaría disponer de la simultaneidad, mostrar cómo Patricio y Susana bañan a su hijo en el mismo momento en que Gómez el panameño completa con visible satisfacción una serie correlativa de estampillas de Bélgica, y un tal Oscar en Buenos Aires telefonea a su amiga Gladis para enterarla de un asunto grave. En cuanto a Marcos y Lonstein, acaban de aflorar a la superficie en el decimoquinto distrito de París, y encienden los cigarrillos con el mismo fósforo, Susana ha envuelto a su hijo en una toalla azul, Patricio ceba un mate, la gente lee los diarios de la noche, y dale que va». In Júlio Cortázar, El Libro de Manuel, 1973,Editorial Alfaguara, Castellano, Biblioteca Cortázar, Narrativa hispano-americana, ISBN 978-950-511-209-8.

Cortesia de Alfaguara/JDACT