sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Príncipe com Orelhas de Burro José Régio. «Por essas razões os pobres reis estéreis sentiam-se responsáveis, perante o seu povo, tanto do temível choque de interesses entre quais seria um dia baldeado, como da escravidão final a que o povo poderia ser reduzido»

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De Algumas Circunstâncias que Precederam o Nascimento do Príncipe Leonel, Presumível Herói desta Verídica História
«Era uma vez, no reino de Traslândia, um casal que não tinha filhos. Grande mágoa, suponho, deve ser não ter filhos um casal que se entende bem e assim era com esse casal. O marido começara precocemente a envelhecer, entretendo o ócio a aprender jogos chineses, a coleccionar pássaros e armas brancas, a estudar dialectos ou outras futilidades idênticas…, e a mulher tornara-se rabugenta, caprichosa, avarenta, fanática, (tendo sido noutra época a própria imagem da alegria!) como se não tivesse casado e antes do devido tempo, começara a envelhecer de inutilidade e amargura. Esse casal que antes se adorava começava agora até a não poder tolerar-se, como quase todos os infelizes ligados a uma desgraça comum e odiada, em que cada um via no outro o espelho do seu infortúnio. Acrescentemos que, no presente caso, cada um tendia a ver no outro o próprio causador desse infortúnio. Este mútuo ressentimento ia a ponto de já nem poder o triste casal escondê-lo da corte. Ora, dito isto, ia-me esquecendo um pormenor importante: Ele era o próprio rei, ela a própria rainha de Traslândia e a ausência de filhos nesse matrimónio representava uma desgraça pública. Assim a mágoa dos dois míseros esposos acrescentava-se com a inquietação dos reinantes. A cupidez dos povos vizinhos também espreitava o seu trono sem herdeiros. Tanto mais sendo alguns desses povos governados por parentes seus que, embora vagos, reivindicavam direitos ao trono. Mas não eram só parentes. Muitos havia que forjavam teorias, invocavam necessidades, inventavam doutrinas, alegavam conveniências, chegavam a idear questões de ordem metafísica ou religiosa que lhes permitissem, depois de mortos os pobres reis estéreis, cair sobre o reino sem leme. Quem não sabe como sempre se arrearam de razões a ambição e a violência?
Por essas razões os pobres reis estéreis sentiam-se responsáveis, perante o seu povo, tanto do temível choque de interesses entre quais seria um dia baldeado, como da escravidão final a que o povo poderia ser reduzido. E parecia-lhes a esterilidade uma grande injustiça para com eles próprios, uma praga dos deuses, se não mesmo dos demónios. Uma anomalia, essa, de não dar fruto um casal que fora belo, jovem, e possuíra-se, primeiro com apaixonado e total abandono, depois com esperança e violência, mais tarde com ciência ou cálculo, por fim com desesperada insistência e um misto de compaixão e raiva na infelicidade comum... É inútil dizer que tudo mais se tentara para arredar tal maldição das pobres cabeças régias: os conselhos dos médicos e as malas-artes das bruxas; os palpites pessoais e os segredinhos das comadres; as influições da hora ou da estação; as preces públicas e a própria interferência, aos pés de Deus e do santo papa. Só um conselho chegara a ser insinuado, que o bom rei Rodrigo repelira com indignação: o repúdio da esposa infecunda. Chegara-se a aventar-se que o rei tomasse outra mulher legítima. A primeira resignar-se-ia a um convento com todas as honras da sua condição, e todo o azedume do seu destino, caso fosse mais bem sucedido o segundo ensaio matrimonial da sua majestade. Mas nem tão alta razão de estado conseguira demover El-Rei! Tão-pouco demovera a rainha, se é que aos ouvidos da infeliz rainha viera ter este alvitre que a punha de lado como uma árvore seca...
Se viera ter?... Mas viera! Alguém tivera a crueldade ou o heroísmo de lhe dizer (como, não sei) que o povo ameaçado acusava de egoísta esse amor que não cumpria o seu dever. Pois o amor dos reis tem deveres a cumprir..., e a rainha sabia-o! A rainha sabia qual o seu dever, se fosse provada a sua esterilidade. Mas sabendo-o, escasseavam-lhe forças para o cumprir e por isso tornara-se rabugenta e caprichosa, avarenta e fanática, histérica e até invejosa... Invejosa, em especial, da vulgar felicidade que Deus dava a tantas, para lha recusar a ela. A pobre mulher já não podia ver um baptizado! Nem nenhuma que andasse de esperanças ousaria apresentar-se aos seus olhos o ventre abençoado por Deus. Certa manhã, a rainha ergueu-se muito cedo e meteu-se a caminho em direcção ao imenso bosque para lá do parque do palácio. Apesar de a guarda a ter querido acompanhar, desistiram perante as ameaças de um desses ataques em que a espuma lhe borbulhava na boca, os olhos lhe pasmavam em branco, as palavras e os gestos se descompunham, e ela jazia depois, aniquilada, como uma coisa inerte, durante vários dias. Para além disso, sua majestade el-rei partira ao lusco-fusco de madrugada, para caçar na tapada de um dos seus mais nobres vassalos. Só pela tarde voltaria. Quem se atreveria a contrariar a vontade da rainha sem o rei presente? O perigo de algum encontro com um caçador furtivo, qualquer bandido, algum mendigo perverso ou guarda florestal rebelde (pois já dentro dos próprios domínios reais existiam rebeldes), nem de raspão tocara o seu ânimo decidido. De igual modo a deixara impávida a lenda de monstros e fantasmas que habitavam essas matas virgens, ou a certeza de as povoarem bestas e feras. Dir-se-ia que um Arcanjo lhe aparecera, em sonhos, a mandá-la ir, prometendo-lhe guardá-la, portanto foi.
Lá, andou toda a manhã, toda a tarde, todo o dia, embrenhando-se por cavernas de verdura e sombra, passando curvada sob rendilhados tectos oscilantes de trepadeiras, deslizando entre penhascos e velhos troncos gigantes, mais grossos que pilares dos antigos templos lendários... Os homens que, da torre maior do palácio, ainda pretenderam segui-la com os seus óculos de grande alcance, rapidamente desistiram. Mais tarde se veio a saber, por conversa das mulheres dos guardas florestais, que ela entrara nas suas modestas choupanas, sentara-se nos seus bancos, beijara os louros cabelos sujos ou as caras lambuzadas, bochechudas, dos seus filhos, e quisera saber das suas vidas com tão insinuante insistência, tanta simplicidade nos modos e palavras que as pobres mulheres, por momento esquecidas da imensa distância das suas condições, tinham chegado, talvez, a falar de mais... Até onde entrara na parte verdadeiramente selvática da floresta, nunca ninguém soube. Um ou outro guarda que a vira voltar, já pelo arrefecer da tarde, e, atrapalhado, se perfilara mal fiado nos seus próprios olhos, também disse depois que ela vinha a trejeitar e a falar alto, com os olhos postos nos galhos extremos das árvores, como se tivesse a conversar elevadamente com elas e os pássaros; talvez com os angélicos espíritos que nenhum guarda via, mas que por certo a guiaram nesse passeio inspirado, sugeriu mais tarde um poeta palaciano.
O facto é que já se espraiava o luar quando a rainha voltou. Já do palácio alvoroçado se preparavam para sair em sua busca bandos de guardas com lampiões e archotes e já El-Rei, seu marido e senhor, a esperava, dando grandes passadas frenéticas no salão dos lustres, com o sobrolho carregado e as mãos torcidas atrás das costas, como nos dias de muitíssimo mau humor. A rainha vinha cheia de pó, rotos os seus sapatinhos verdes e amarrotada toda a seda da saia. Até trazia rubis de sangue na cara. No seu sorriso e nos seus olhos, porém, raiava um clarão que poucos viram porque a grande maioria dos homens são cegos, porém, depois, todos asseguraram tê-lo visto. Viu-o, de verdade, El-Rei, que não era cego de todo e as palavras de exprobração que se iam soltar dos seus lábios, gelaram-se num misterioso respeito. A rainha arrastou o seu marido para a câmara régia e aninhando-se aos seus pés, disse-lhe: Pensei muito durante este passeio... Não mo censureis, porque decidiu a nossa vida. Estou resolvida a afastar-me para que outra vos dê o filho que eu vos não posso dar... Nunca!, interrompeu o rei com violência. Ainda não acabei, meu senhor. Também eu vos quero muito, apesar da nossa desgraça quase nos ter tornado inimigos!... Estou resolvida a afastar-me, e nem vós me podereis deter, se, dentro de meses, não se cumprir o nosso grande desejo... Quantas vezes já temos esperado em vão, querida! O melhor será conformarmo-nos com a determinação de Deus.  Nunca tive tanta fé, meu senhor. Por amor de vós, ousei consultar o Espírito da Floresta. Ir até onde me não julgara capaz... Sois louca!, disse ele passando-lhe amorosamente os braços por cima dos ombros». In José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 1942, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-271-090-9.

Cortesia de LLivros/JDACT