domingo, 31 de maio de 2015

Académico de Número no 31. Estudos de História da Cultura Portuguesa. Linguística e Paleo-Etnologia. Justino Mendes Almeida. «Gil Vicente é, assim, o único autor dramático português do século XVI cuja obra apresenta reais afinidades com a arte sua contemporânea»

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Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) Ainda relacionado com esta intervenção do Anjo, recorda-se o dito de Joam d'Acenha, extasiado com a angélica beleza:
 
Que nam teves[s]e nem ceitil
com minha filha ho casaria,

para o relacionar com estoutro do pastor ao Anjo, no final do Auto da Mofina Mendes:

Dizey senhor sois casado
ou quando embora casaes?

e com o passo do segundo Auto das Barcas:

Anjos ajudade me ora
que vos veja eu bem casados,

para se concluir que se trata de uma diversão tipicamente gil-vicentina. Ainda no prólogo, poderão os estudiosos comprovar a existência de arremedos de dança, tão ao gosto de Gil Vicente, como neste caso e em referência a Joam d'Acenha.

Baila ao som que / faz com a boca.
Tu/ru/lu/ru/ly.
Tu/ru/lu/ru/lã.
Huufaa.

Révah assinala ainda que neste auto se dão indicações precisas quanto ao vestuário da maioria das personagens, o que é habitual nos autos de Gil Vicente de que se conhecem edições melhores do que o texto contido na Copilacam de 1562. Ao estudar o tema dos quatro Doutores e a Santa Madre Igreja, Révah acentua que, de uma leitura, mesmo superficial, da Obra da Geraçã humana ressalta a profunda afinidade com o Auto da Alma, o que já em 1898 Teófilo Braga pusera em relevo. A conclusão vai mais longe ainda: é a Obra da Geraçã humana de 1520, ou de 1521, que explica o Auto da Alma de 1518. É inaceitável a hipótese, continua, de que o misterioso desconhecido, autor famoso da Obra da Geraçã humana, poeta de largos recursos e original, representando um auto perante a Corte, não se houvesse pejado de plagiar um tema de Gil Vicente de forma tão despudorada que toda a assistência se daria conta disso. É, porém, mais razoável admitir que Gil Vicente, autor da Obra da Geraçã humana, utilizasse neste auto um motivo que tinha criado e com ele obtivera grande êxito quando da representação do Auto da Alma. Ao analisar, por último, os argumentos de ordem artística, escreve Révah que a Custódia de Belém não é obra de um ourives qualquer; uma simples observação permite distinguir imediatamente na Custódia a preocupação de agrupar imagens numa ordem arquitectónica simbólica, cujo conjunto reproduz com exactidão o portal da Batalha. Gil Vicente, tornado poeta dramático, adopta desde Dezembro de 1514, data proposta para o Auto da Sibila Cassandra, o novo simbolismo introduzido na arte portuguesa por João Castilho. Gil Vicente é, assim, o único autor dramático português do século XVI cuja obra apresenta reais afinidades com a arte sua contemporânea. Mas deixámos para o fim a objecção de Costa Pimpão que consideramos mais poderosa, digamos, demolidora. Reduz-se a umas simples frases que até hoje não obtiveram resposta ou esclarecimento satisfatório:
  • Se os Autos (Obra da Geraçã humana e Auto de Deos Padre, Justiça e Misericordia) pertencem a Gil Vicente, pertencem, pelo estilo, a um Gil Vicente de segunda ou terceira ordem [...] A linguagem daqueles Autos, sem ser absolutamente inferior (antes aceitável em partes) não tem a dedada de Gil Vicente: falta-lhe geralmente a força, a naturalidade, a vida, o rapto lírico. É demasiado regular e fria, e a regularidade e a frieza não são características vicentinas.
De facto, assim é. Se o tema é digno de Gil Vicente, o estilo, a linguagem nem sempre favorece essa autoria, isto sem embargo de reconhecermos que o importantíssimo conjunto de argumentos apresentados por Révah lhe concede grande força, se bem que sejam desiguais em valor, ao pugnar pela autoria gil-vicentina da Obra da Geraçã humana, sem que, contudo, lhe fosse legítimo concluir, abertamente, pela restituição da obra a Gil Vicente». In Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis, Lisboa, 1996.

Cortesia da APHistória/JDACT

Uma Pausa para a Luz no 31. O Sentimento do Si. António Damásio. «… a sobrevivência depende de encontrarmos e incorporarmos fontes de energia e de evitarmos toda a espécie de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Desprovidos de capacidade de acção…»

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Em busca do Si
«(…) Se, nesta altura, começarem a ficar preocupados, pensando que estou prestes a cair na armadilha do homúnculo, deixem-me dizer imediata e veementemente que nada devem recear. O modelo-do-corpo-no-cérebro a que me refiro em nada se parece com o rígido homúnculo, essa criatura problemática que habita os antiquados manuais de neurologia. Nada neste modelo se assemelha a uma pequena pessoa escondida dentro de uma grande. O modelo nada percebe e nada conhece. Não fala nem produz consciência. Em vez disso, o modelo é um conjunto de dispositivos cerebrais cuja principal tarefa é a gestão automatizada da vida do organismo. Como veremos mais adiante, a gestão da vida é conseguida através de uma variedade de acções reguladoras, predeterminadas de forma inata: secreção de substâncias químicas, tais como as hormonas, bem como movimentos eficazes nas vísceras e nos sectores musculo-esqueléticos do corpo. O desenrolar destas acções depende da informação fornecida pelos mapas neurais que assinalam, a cada momento, o estado dos diversos departamentos do organismo. Acima de tudo, nem os dispositivos de regulação vital nem os seus mapas corporais são os geradores de consciência, embora a sua presença seja indispensável para os mecanismos que produzem a consciência nuclear. Esta é a questão-chave, no jogo da consciência, o organismo é representado no cérebro, de forma abundante e com diversas facetas, e essa representação está ligada à manutenção da vida. Se esta minha ideia estiver correcta, a vida e a consciência estão indelevelmente entrelaçadas.

Para que serve a Consciência?
Para os leitores que por acaso se surpreendam com a ligação entre vida e consciência, gostaria de acrescentar o seguinte: a sobrevivência depende de encontrarmos e incorporarmos fontes de energia e de evitarmos toda a espécie de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Desprovidos de capacidade de acção, organismos como os nossos não sobreviveriam, uma vez que não encontrariam as fontes de energia necessárias à renovação da estrutura do organismo e à manutenção da vida e não poderiam evitar os perigos presentes no ambiente. Porém, as acções não nos levariam muito longe se não fossem orientadas por imagens. As boas acções precisam da companhia de boas imagens. As imagens permitem-nos escolher entre repertórios de acção anteriormente disponíveis e optimizar a execução da acção escolhida. De forma mais ou menos deliberada ou mais ou menos automática, conseguimos rever mentalmente as imagens que representam as diferentes opções de acção, os diferentes cenários e os diferentes resultados da acção. Podemos seleccionar as acções mais adequadas e rejeitar as que o não são. As imagens também nos permitem inventar novas acções aplicáveis a novas situações e conceber planos para acções futuras.
A capacidade de transformar e combinar imagens de acções e cenários é a fonte de toda a criatividade. Se as acções estão na origem da sobrevivência e se o seu poder está ligado à disponibilidade de imagens orientadoras, é bem plausível que um dispositivo capaz de maximizar a manipulação efectiva de imagens ao serviço dos interesses de um determinado organismo tivesse conferido uma enorme vantagem aos organismos que o possuíssem e tivesse provavelmente prevalecido na evolução. A consciência é, precisamente, esse dispositivo. A novidade pioneira trazida pela consciência foi a possibilidade de ligar o santuário íntimo da regulação da vida à capacidade de manipular imagens. Dito por outras palavras, foi a possibilidade de o sistema de regulação vital, que se encontra situado nas profundezas do cérebro, em regiões como o tronco cerebral e o hipotálamo, se relacionar com o processamento de imagens que representam as coisas e os acontecimentos que existem dentro e fora do organismo. Esta novidade tornou-se numa vantagem porque a sobrevivência num meio ambiente complexo, isto é, a gestão eficiente da regulação da vida, depende de um curso de acção correcto que pode ser melhorado através de previsão e planeamento duas funções que, por seu turno, dependem da manipulação de imagens na mente. A consciência permitiu a ligação entre a regulação da vida interior e a manipulação das imagens». In António Damásio, O Sentimento de Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.

Cortesia de PEA/JDACT

Os Românticos no 31. Crimes Imperfeitos. Álvaro Guerra. «Espero alguns meses para prolongar o adeus. E começo a aprender que não se esgota nunca o passado de que nos separamos onde, como dizia Pascoaes, se pressente o infinito constelado de lágrimas»

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«Os românticos não viajam realmente para o passado, trazem o passado para o presente». In Eduardo Lourenço

«(…) Testemunha silenciosa e comovida, ela acompanhou-me quando fui despedir-me do mar, quando transportei até à beira das areias salgadas a incerteza de reencontrar o passado liquefeito e tormentoso que talvez se parecesse com o dos portugueses antigos, uma sempre incompleta pesquisa. Ia partir das minhas praias no sentido inverso das caravelas, na direcção do mundo a quem uma vez tínhamos dado outros mundos. Era essa, dizia-se, a direcção do futuro e eu avançava para lá, embora soubesse que é no futuro que a morte espreita na sua infinita paciência. No jardimargem da minha despedida, afaguei com o olhar esse inverno de barcos varados nas ruas que desembocavam no mar, proas respeitosamente apontadas a perigos conhecidos. Homens e gaivotas em terra, sabendo de temporais e peixes. Mulheres de negro, presságios, vigílias em olhos antigos. E um risco de areia ameaçada. E a vida, de costas viradas para a terra, deitando contas ao mar. O sal curtira todas as mãos e todo o saber estava temperado de ansiedade e esperança. No mar de cada um, a ideia da última onda e a memória de todas as outras. Despedia-me do etemo regresso, sem nada conhecer desse gesto definitivo, sempre haverá quem venha varar o bote e deixar-lhe a proa apontada à viagem.
Espero alguns meses para prolongar o adeus. E começo a aprender que não se esgota nunca o passado de que nos separamos onde, como dizia Pascoaes, se pressente o infinito constelado de lágrimas. Marília partilha este limbo, desde que saímos da revolução, ela pela porta do coração, eu pela porta da razão, ambos órfãos das nossas ilusões, as minhas de morte natural, as dela de morte violenta. Mas ela acredita na ressurreição e eu não. Assim nos dilaceramos semanas a fio, sob o mesmo tecto provisório da Avenida de Roma, eu fazendo lentamente as malas, perante os olhos acusadores e inquietos, rodeados de rugazinhas, de Marília mimando conspirações e solidariedades internacionalistas, na pele da actiz Vera Rios ensaiando uma Mãe Coragem que não chegará à cena. Cinicamente não quero abusar da minha boa acção. Se nos enfrentamos, também na cama onde embalamos uma espécie de amor furioso, é porque o futuro nos dá a dimensão comum de uma deixa de Cirano de Bergerac, mourir n'est rien. Ce n'est qu'achever de naître. Portanto: para cada um sua vida. Isto é, seu nascimento inacabado. Também eu queria fugir, se... Isto não é bem uma fuga. Parto antes que me façam entender que não tenho lugar na nova ordem. Foges da ordem que ajudaste a instaurar, protesta ela. Foste um inimigo da revolução. Agora, é a tua ordem. Não é minha. Mas é a menos má para quem assistiu aos incontáveis funerais da esperança». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos, Edições o Jornal, colecção Dias de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.

Cortesia OJornal/JDACT

Vila Velha (1914-1945) no 31. Café República. Álvaro Guerra. «… e semeava o seu apocalipse: não calcula, Mariana. Aquilo, volta não vira, rebentam os tiros e as bombas. E muda-se de ministro como de camisa. A propósito, o seu cunhado Aníbal sempre vem agora de férias?»

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«(…) Assim intuíam vagamente os palestrantes do Café República, o Teófilo, notário, o farmacêutico Soares e o único industrial da vila àquela data, Josué Silva Castro, herdeiro do velho Saul, a quem se juntava, condicionada pelas solicitações do serviço, a aquiescência apaziguadora e amiúde contraditória do galego Manuel Maria, dono do café e o mais moderno dos cidadãos adoptivos de Vila Velha. Já no ano passado, quando fui à Suíça ver o meu falecido irmão David, me pareceu que essa Europa anda meio maluca..., interveio Josué Castro, o único vila-velhense verdadeiramente viajado, com excepção de António Lencastre, frequentador certo da Feira de Sevilha. Em Bordéus, tomaram-me por um anarquista italiano autor de um atentado em Marselha e passei um mau bocado na gendarmaria para conseguir explicar que era o Castro de Vila Velha. E, afinal, como é que você viu o imperador Francisco José, ó Castro?, indagou o farmacêutico, fascinado. Passou de carruagem, escoltado pelos granadeiros. Estava eu diante do Parlamento admirando a estátua de Palas, e vinha ele dos lados do Castelo de Schönbrunn. Usa suíças iguaizinhas às do António Lencastre. Talvez mais brancas... Uma sombra de despeito gelou o olhar do Teófilo, que jamais conseguira dominar o complexo de inferioridade causado pela longa peregrinação do Josué por Paris, Genebra, Viena, Berlim, o mundo. E o Luís Soares, respeitado proprietário da Pharmácia Asclepius, contemplando gravemente o enlutado Castro: coitado do David. Um rapaz tão inteligente e brilhante... Infelizmente ainda não se inventou o remédio radical para a tísica. Galopante, amigo Soares, galopante. Nem os especialistas, nem as montanhas suíças lhe valeram. E olhe que não poupámos nos contos de réis para lhe salvar a vida. Ofegante, o Fonseca estafeta, melena desgrenhada, carregado de embrulhos, gritou à porta do café: temos outra bernarda para breve, com tropa na rua! No Rossio, ferviam os boatos e em cada esquina havia uma conspiração. E o Teófilo, dobrando o jornal: vê-se logo que já chegou o comboio de Lisboa. E alisou as guias do bigode frisado.
Ermelinda Pacheco, viúva rotunda do juiz Laurentino Pacheco, avançou a alentada figura pela álea do roseiral da Casa Grande, acenando com o lenço de renda a Mariana Castro, que a esperava na soleira; ao lado, a criada de peitilho e crista, na mão, o regador de zinco. Mal terminados os cumprimentos e as queixas pelos tormentos do calor, ainda não perfeitamente acomodadas banhas e refegos no canapé de palhinha da sala de estar, Ermelinda desabafou: devia haver uma lei contra as revoluções!
Chegara na véspera de Lisboa onde fora visitar uma filha casada com um tenente da Guarda Republicana. Vira cair dois ministérios, e o genro, de equipamento completo, a pendurar o sabre à cinta, partindo à conquista da ordem da pátria em perigo. Vinha assustada. Levava a mão ao cimo do espartilho de barbas de baleia a sobrar ligeiramente do vestido preto e branco, luto aliviado, suspirava e semeava o seu apocalipse: não calcula, Mariana. Aquilo, volta não vira, rebentam os tiros e as bombas. E muda-se de ministro como de camisa. A propósito, o seu cunhado Aníbal sempre vem agora de férias?
Mariana fez-se desentendida. A chegada do cunhado de mais uma missão nas colónias interessava, pelas mais diversas razões, numerosos cidadãos de Vila Velha. Ao toque da campainha de prata acorreu a criada. Jacinta, serve-nos o chá. E não te esqueças daqueles bolinhos de noz que fiz hoje de manhã. Ora, dizia a Ermelinda que por Lisboa vai o diabo à solta... Enquanto Ermelinda Pacheco, contradizendo a sua pesada silhueta de matrona, passava ligeira e habilmente à moda das capelines com flores da Casa Silveira da Rua do Carmo, Mariana pensava nas voltas que a vida dá sem que as criaturas precisem de sair do mesmo lugar. Referia-se o pensamento a si própria, sem poder explicar porque lhe ocorria, a não ser pela defesa instintiva da tagarelice de Ermelinda, uma chata. Ali sentada entre a mobília arte nova da sala de estar de um casarão de vinte quartos, cave, sótão e jardim, obra mandada construir pelo falecido Saul Castro, seu sogro, no ano da graça de 1902,a menos de duzentos metros da Pensão Pereira, casa no fundo da qual nascera e se criara, filha única de Francisco Pereira e de Matilde, que ela perdera ainda em menina, no tempo das olhadelas furtivas ao balcão do café-restaurante de onde o pai a queria longe mas que sempre a atraía, sobretudo depois de vislumbrar o bigode preto do mais velho dos meninos Castro, de seu nome Josué, esguio como um vime, o longo pescoço emergindo do colarinho de goma fechado com botão de ouro e plastron, como o caule de uma flor saindo de um vaso». In Álvaro Guerra, Café República, folhetim do mundo vivido em Vila Velha (1914-1945), Edições O Jornal, Lisboa, 1982/1984, Depósito Legal 5036.

Cortesia de O Jornal/JDACT

Bombeiros no 31. Um Olhar sobre as Antigas Viaturas dos Bombeiros Privativos da Fábrica Robinson. Portalegre. Armando Quintas. «O segundo incêndio deu-se a 28 de Novembro, na fábrica pequena; nessa mesma noite, teve lugar uma reunião extraordinária na Câmara Municipal…»

Bomba braçal 
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«Aos Robinson, proprietários da fábrica de cortiça de Portalegre se deve, entre outras iniciativas, a criação de dois corpos de bombeiros na cidade, um deles voluntário e um outro privativo da própria fábrica, sendo a este último, constituído em 1908, que pertenciam as viaturas que ainda hoje permanecem no espaço da antiga fábrica. Estas viaturas, datam do último quartel do século XIX, época na qual em Portugal já tinha tomado consciência da necessidade de um serviço permanente de combate aos fogos, que actuasse na nova realidade urbana marcada por uma maior concentração de pessoas e actividades industriais. Em 1868, surge em Lisboa a primeira Companhia de Bombeiros e, em 1874 é criada a Companhia de Bombeiros do Porto. No Alentejo, a primeira Companhia de Bombeiros foi a de Montemor-o-Novo, criada em 1875, a que se seguiram a de Évora em 1883, a de Beja em 1889 e a de Portalegre em 1898. Em finais de oitocentos existiam no país cerca de 82 corpos de Bombeiros.

A Corporação dos Bombeiros Voluntários de Portalegre
A primeira tentativa de criar a Corporação data de 1887, mas apesar do entusiasmo inicial, estreando-se num fogo com uma bomba de extinção e algum material angariado, nunca se conseguiram institucionalizar. O projecto só seria reanimado após o deflagrar de dois grandes incêndios nas fábricas de George Robinson. O primeiro teve lugar na Fábrica Robinson, a 28 de Julho de 1898, onde o fogo alastrou rapidamente apesar de equipada com os modernos sistemas de válvulas anti-fogo Grinnell. Lavrando numa extensão até meia légua, queimou os olivais próximos e levou à evacuação do quartel de Infantaria 22 situado junto à fábrica, bem como parte desta. Neste incêndio perdeu parte da cortiça armazenada na fábrica, ascendendo os prejuízos a cerca de 30 contos de réis e colocando em risco 600 postos de trabalho, caso não tivesse havido um rápido retorno à laboração. No combate ao fogo, foram utilizadas seis bombas de extinção, pertencendo duas à própria fábrica, duas à Câmara Municipal e outras duas à fábrica Costa & Irmão, tendo sido utilizada a água de todas as fontes da cidade, o que obrigou a cortar o abastecimento público e a recorrer à água de alguns poços particulares. Colaboraram os operários destas fábricas, da empresa Pina Carvalho e Esperança, bem como a guarda-fiscal, soldados de Infantaria 22 e muito povo.
O segundo incêndio deu-se a 28 de Novembro, na fábrica pequena e, apesar de ter mobilizado todos os meios da cidade e centenas de populares, destruiu parte das instalações e causou muitos prejuízos. Nessa mesma noite, perante a situação de destruição, teve lugar uma reunião extraordinária na Câmara Municipal com o objectivo de promover a criação de uma Corporação de Bombeiros, prometendo o seu vice-presidente, João Maria Mourato, uma verba de 500$000 réis para a aquisição do material necessário.
A 4 de Dezembro de 1898 numa nova reunião no Teatro Portalegrense foi aprovada a redacção final dos estatutos da Corporação, recebendo a mesma, a verba prometida, bem como outras doações: 50$000 réis do visconde de Cidrais e os seus serviços como clínico, 4$500 réis da redacção do jornal A Plebe,100$000 réis de Pedro Castro Silveira, 500 réis de Júlio Baptista e 60$000 réis de Francisco Barahona, tendo ainda recebido de George Wheelhouse Robinson, uma bomba e respectivas mangueiras. A corporação recebeu o alvará de funcionamento a 28 de Fevereiro do ano seguinte. George Wheelhouse Robinson foi eleito para a presidência da 1.ª direcção da Corporação, mantendo-se no cargo até 14 de Fevereiro de 1903. Para equipar a Corporação George Wheelhouse Robinson, ofereceu uma bomba de extinção de incêndios, que chegou à cidade em 16 de Agosto de 1899 vinda directamente de Inglaterra em Março de 1900 cedeu parte da Fábrica Real para os bombeiros ai instalarem a direcção, a secretaria e uma casa escola, ajudando ainda na aquisição do fardamento». In Armando Quintas, Um Olhar sobre as Antigas Viaturas dos Bombeiros Privativos da Fábrica Robinson, Portalegre, Publicações da Fundação Robinson, Portalegre, nº 28, p.22-33, 2014, ISSN 1646-7116.

Cortesia da FRobinson/JDACT

sábado, 30 de maio de 2015

O Tempo e os Homens. Colecção Universitária. António Borges Coelho. «… a chamada ‘Reconquista’ acabou por definir duas grandes Estremaduras, “a portuguesa”, que seguia a linha da costa entre o Douro e o Tejo, e a Estremadura “castelhana” que corre em Castela-a-Nova junto à fronteira portuguesa»

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Textos e Sociedade no Garbe Al-Andaluz
«(…) Os restos, desvelados pelos arqueólogos, permitem reencontrar as estruturas, o duradoiro, o que mais permanece. Os próprios actos individuais ficam reduzidos ao osso dos gestos necessários do quotidiano. Mas, pelo seu lado, os textos assinalam a mudança, entreabrem a porta ao acto individual e gratuito, ao pensamento pessoal e também ao tumulto. Na prática do arqueólogo, de certo modo o movimento pára, o som emudece. Os textos, ao contrário, aquecem e chocam o ovo da vida. Por certo, os escritos dos autores muçulmanos medievais olham a vida de cima, dos palácios, e raramente vão além do pórtico das mesquitas. De qualquer modo, a partir dos textos é possível desfiar um rosário breve de ideias gerais, muitas pacíficas, outras talvez não tanto.

Estremaduras e árabes peninsulares
O domínio e a cultura muçulmana radicaram-se mais profundamente no chamado Portugal mediterrânico mas os textos indicam que os fluxos e refluxos da maré vão bem além dessa fronteira natural. Poucos anos antes da conquista de Lisboa (1147), oitenta e três anos decorridos sobre a reconquista de Coimbra, o geógrafo Edrici situava o limite de Portugal e de algum modo do Garbe na corda do rio Vouga. A dança das fronteiras, estremas ou Estremaduras pode ser mais bem acompanhada pelos documentos dos arquivos cristãos. Num documento do ano 909 afirma-se: reinando na Galiza e na estrema do Minho e na estrema do Douro, Ordonho, filho de Afonso. As estremas situavam-se então, a ocidente, na região do Minho e na região do Douro. Século e meio mais tarde, nos forais de São Martinho de Mouros e outras vilas situadas na linha do Douro transmontano, Fernando Magno diz pretender ampliar as Estremaduras que, pelos vistos, galgavam então o Douro para a outra margem. Os exemplos podiam multiplicar-se. E afinal a chamada Reconquista acabou por definir duas grandes Estremaduras, a portuguesa, que seguia a linha da costa entre o Douro e o Tejo, e a Estremadura castelhana que corre em Castela-a-Nova junto à fronteira portuguesa.
Os textos provam, igualmente, que houve árabes na Península Ibérica. Esta afirmação pode parecer redundante. Mas não têm faltado vozes que minimizam ou afirmam até que os árabes na Península Ibérica nunca existiram. E como há sempre boas almas, dispostas a entregar-se às novidades e ao absurdo, é necessário reafirmar que, no Andaluz e também no Garbe, se estabeleceram árabes, designadamente iemenitas. Nos exércitos da conquista, no exército dito sírio que sufocou a revolta berbere, no estabelecimento do emirato omíada. Ao longo do tempo não faltaram depois emigrantes oriundos do Oriente. Os textos muçulmanos conservam também a descrição de ferozes lutas tribais que prolongavam na Península Ibérica velhas lutas travadas na Arábia e na Síria.

Fome de homens e transformações sociais
Os cavaleiros e peões da Reconquista não pretendiam apenas alargar o seu espaço, cercar novas terras mas, usando palavras antigas, ferrar o gado humano que as adubava e rompia. E na caça ao homem não importava ao caçador se eram muçulmanos ou cristãos, hispanos, árabes ou berberes. Não se nega a guerra cruel e o extermínio, não se ocultam tão-pouco do lado muçulmano as almenaras erguidas com as cabeças dos vencidos para chamar os crentes à oração, não se subestima a fuga, por vezes maciça, e a deslocação de populações. Mas não afirmava o próprio Afonso VI, rei de Leão e de Castela, que era impossível degolar todos os muçulmanos? O que se afirma é que a vida continuou, certamente mais difícil nos primeiros tempos, sob a espada dos novos senhores. Sesnando de Coimbra segurou os vencidos da cidade e da região do Mondego e aplacou os muçulmanos e moçárabes da reconquistada Toledo. Só numa razia, Afonso Henriques trouxe para Coimbra mais de mil moçárabes. Por que haveriam os senhores cristãos de rejeitar e expulsar os braços que lhes fariam frutificar as terras? Não foram apenas as novidades técnicas da guerra ou o choque frontal dos exércitos que, por si sós, trouxeram a vitória aos Estados cristãos. Só quando Fernando Magno e seu filho Afonso VI se propõem aceitar a originalidade social e até religiosa do Islão é que as conquistas se tornaram irreversíveis. Basta ler os forais dos concelhos reconhecidos no território do Portugal mediterrânico e compará-los com os direitos das populações dependentes do Portugal atlântico tais como aparecem consignados nas cartas de foral». In António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História III, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.

Cortesia Caminho/JDACT

Sancho I. O Filho do Fundador. Maria Violante Branco. «O futuro monarca de Castela nasceu, curiosamente, no mesmo dia em que Sancho I nascera, a 11 de Novembro, embora um ano mais tarde. Votado a um destino bem diferente do do filho de Afonso Henriques»

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A Longa Espera pelo Trono. O mundo que viu Sancho nascer e crescer
«(…) Na Normandia, na Aquitânia, na Flandres e na Borgonha, para dar apenas alguns dos exemplos mais importantes, ainda não tinham cessado as reorganizações, alianças e matrimónios cujo único interesse parece ter sido garantir a autonomia e/ou a independência de grandes nobres e potentados que tentavam não ser absorvidos por nenhum dos dois reis ou então influenciar o decurso dos acontecimentos de forma a preservarem o seu estatuto neste mundo em reestruturação. Nesse contexto, os reinados de Filipe Augusto e de Henrique II de Inglaterra seriam exemplares, no que demonstram de capacidade de domínio e de utilização de novas estruturas e poderes para controlar e influenciar a mudança a favor da sua administração e poder soberano cada vez mais centralizado e forte. Mas os conflitos que mantiveram entre si e com grandes senhores como os condes da Flandres e da Borgonha, também eles interessados em afirmar a sua autonomia, quer como rivais quer como aliados, assim como as múltiplas alianças matrimoniais em que se aventuram para garantir apoios e defesas, revelam um ambiente onde tudo parece ainda estar em perpétua mudança. Só nos finais do século XII e inícios do XIII se conseguirá estabilizar uma situação que envolveria todos os poderes circundantes e para cuja resolução qualquer um dos dois reis não hesitou em envolver o papado, o império e os reinos hispânicos.
Os acontecimentos que marcaram os vinte anos durante os quais Sancho I se tornou adulto prepararam o resto do século XII. A Universidade de Bolonha começava a despontar com toda a força, depois da reanimação conferida pelo Decreto de Graciano e na sequência da popularidade do também renascido estudo do direito civil como fonte preciosa de legitimidade para o poder imperial e suas ambições. Um novo tipo de eclesiásticos e juristas vai começar a povoar quase obrigatoriamente as cortes de quase todos os monarcas da cristandade, suplementando as políticas régias com o necessário e em breve imprescindível apoio da teoria política às suas ambições, mas sobretudo com a mestria das normas do Direito que permitiam aos príncipes o reanimar da sua soberania antiga, agora revivescida por normas inovadoras e adaptadas às realidades presentes. Ora os homens que, desde as duas últimas décadas do século XII, quando o infante já assumira a regência do reino, começaram a povoar a corte de Coimbra, eram também oriundos desse novo mundo em construção e vão saber preparar as políticas régias de forma a adaptá-las as novas necessidades e as novas realidades. Quais eram essas novas realidades na Península Ibérica que viu nascer e crescer Sancho? Muito à semelhança do que acontecia na restante cristandade, no momento preciso em que Sancho veio ao mundo, quando parecia estar-se numa hora de beatífica paz antes da tormenta, também na Hispânia ainda não estavam activos os germes das questões que em breve dividiriam todos os reinos hispânicos. Em 1154, a Península ainda estava unificada sob o ceptro de Afonso VII, que se autodenominava Imperador de todas as Hispânias, como toda a sua documentação confirma, e os seus dois filhos, Sancho (nascido em 1133) e Fernando (nascido em 1137), ainda estavam vivos e de boa saúde. Sancho III, o primogénito, acabava de ter um filho de Branca de Navarra, sua mulher, a quem chamou Afonso, e que viria a ser o futuro Afonso VIII de Castela, que dentro de relativamente poucos anos seria o actor principal no quadro do xadrez político ibérico. O futuro monarca de Castela nasceu, curiosamente, no mesmo dia em que Sancho I nascera, a 11 de Novembro, embora um ano mais tarde. Votado a um destino bem diferente do do filho de Afonso Henriques, os caminhos dos dois haveriam de cruzar-se ainda muitas vezes no futuro, em anos-chave para qualquer um dos dois. Os seus destinos também parecem tocar-se de vez em quando, não só na curiosa coincidência de ambos terem nascido precisamente no mesmo dia de São Martinho, mas também mais tarde, quando, em 1169, ambos acediam ao governo dos respectivos reinos no mesmo ano, muito embora de formas bem distintas. Finalmente, em 1211, quando um se preparava para a Batalha das Navas de Tolosa, que o havia de tornar famoso e inesquecível para a Cristandade, Sancho I falecia, mas não sem antes ter desenhado uma política de alianças matrimoniais que em mui[o se assemelhara à que o próprio rei castelhano levara a cabo, chegando mesmo a consorciar seu próprio herdeiro do trono, Afonso II, com Urraca, uma das filhas de Afonso VIII de Castela». In Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.

Cortesia de Bertrand/JDACT

A Voiturette de José Barahona. Alexandre Ramos. «… desde a fábrica até à sua chegada a Portalegre. Também determinar o valor patrimonial da ‘Voiturette’ na esfera da historiografia da cidade e do pioneirismo da utilização deste tipo de transporte em Portugal»

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«Este estudo tem como objecto o automóvel que se encontra no Museu Municipal de Portalegre. Segundo a tradição teria sido a primeira viatura do género a circular na cidade, contudo, a escassez de informações dificultou apurar a veracidade das fontes orais. A fim de colmatar esta carência de informação, levámos a cabo uma pesquisa que nos aproximasse da origem deste tipo de viaturas e do percurso da Voiturette de José Barahona, desde a fábrica até à sua chegada a Portalegre. Procurámos também determinar o valor patrimonial da Voiturette na esfera da historiografia da cidade e do pioneirismo da utilização deste tipo de transporte em Portugal.

A afirmação do automóvel na viragem do século
Pierre Souvestre na sua Histoire de l’Automobile de 1907, inicia a obra com uma frase emblemática de Roger Bacon: poderemos um dia construir carros que poderão ser postos em movimento sem o emprego da força ou da tracção de um cavalo ou qualquer outro animal. Esta frase demonstra um pensamento, que não é mais, que o ponto de partida que originou a procura do ser humano pela sua progressiva autonomia face à força animal de modo facilitar a sua mobilidade. A comercialização em grande escala do automóvel para fins particulares, começa em França no ano de 1891 através da marca Panhard-et-Levassor, que inaugura a primeira fábrica de produção automóvel do mundo, sendo construtores de carroçarias equipadas com motores alemães Daimler. Apesar desta indústria conhecer uma produção em grande escala em França, o automóvel nos moldes em como hoje o conhecemos deve a sua concepção ao engenho de três inventores alemães Gottileb Daimler (1834-1890), Wilhelm Maybach (1846-1929) e Karl Benz (1844-1929), sendo que este último foi o único dos três a patentear o modelo. Por esta altura, estes motores eram ainda incomparavelmente mais fracos que os das viaturas a vapor e eléctricas e, devido ao seu elevado preço e à sua manutenção complexa, apenas podiam ser adquiridos por membros da elite ou por sportsman. No entanto, o rápido desenvolvimento da indústria e as exigências do mercado, vão contribuir para o surgimento de motores de explosão cada vez mais potentes que permitirão a entrada destes no mercado das viaturas de transporte público e de mercadorias. A sua explosão comercial dá-se nos anos pós Exposição Universal de Paris de 1900, na qual o automóvel surgiu como uma das principais atracções do evento e como símbolo do progresso da ciência. Nos anos posteriores, os automóveis e os motociclos vão-se afirmando também como um símbolo de mobilidade individual, de afirmação social e de progresso técnico. É a conjugação destes elementos que explica que os pioneiros da utilização do automóvel em Portugal fossem invariavelmente grandes latifundiários, industriais, profissionais liberais e membros da nobreza. Estes últimos vão ter uma importância preponderante na introdução e desenvolvimento do seu uso.

O automóvel em Portugal na viragem do século
Nos anos que se seguiram à importação do primeiro automóvel regista-se um aumento anual considerável de importação de automóveis, que se difundem um pouco por todo o país. Veja-se o exemplo de Tavares Mello, residente em Coimbra, que em 1896 adquire um Peugeot equipado com um motor Panhard, licenciado pela Daimler. Também no Porto, deve-se salientar o papel da casa João Garrido, que se vai afirmar como uma das primeiras casas importadoras de automóveis, e que, como tal, é uma referência obrigatória para o estudo dos transportes motorizados em Portugal. Em 1900 o número de automóveis importados ascendia a 13 e quatro anos depois elevava-se já para 109.
A atestar também a crescente importância que o automóvel atinge no país, verifica-se a criação do Real Automóvel Club de Portugal a 15 de Abril de 1903, impulsionada pela organização, em 1902, da primeira corrida automóvel na Península Ibérica, a prova Figueira da Foz-Lisboa, ganha pelo monarca Carlos I num Fiat conduzido por um piloto francês. O ano de 1903 marca também o fim da produção dos automóveis que se inscrevem a categoria dos pioneiros segundo a FIVA. A introdução deste novo tipo de transporte acarretou consigo um impulsionador económico, pois permitiu a abertura de novos estabelecimentos e a criação de uma nova indústria, bem como a entrada de novas fontes de rendimentos para o Estado, não só através dos impostos alfandegários, mas também através da cobrança de novos impostos, tais como, registo de propriedade sobre a viatura e os alvarás, utilização e circulação, que as novas legislações vão estabelecer. Podemos afirmar que em Portugal, entre 1895 e 1904, o automóvel rapidamente se popularizou e exerceu um crescente papel no sector económico». In Alexandre Ramos, A Voiturette de José Barahona, Publicações da Fundação Robinson, Portalegre, nº 28, p.8-21, 2014, ISSN 1646-7116.

Cortesia da FRobinson/JDACT

Mulher de Ferro. Dona Beatriz (1429-1506). «… não foi recusado o governo da Ordem de Cristo a Diogo, governo aliás delegado a sua mãe, dada a menoridade do titular, pela bula Nuper carisimo, de Sisto IV datada de 19 de Junho de 1475»

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«(…) É então na sequência da viuvez, e liberta de preocupações quanto ao futuro das suas meninas, que dona Brites emerge desse quase anonimato, revelando as qualidades e aptidões que detinha, até aí ocultas- Ora, se as filhas trilhavam já caminhos que lhes haviam sido destinados e não exigiam, de momento, particulares desvelos, havia que velar pelos varões, ainda de menor idade, que iriam herdar a casa e dona Brites não iria delegar essa competência a outrem. Também assim o entendeu Afonso V que, por carta dada a l0 de Outubro desse mesmo ano de 1470, lhe concederia a curadoria e tutoria dos filhos, considerando nom aver hii pessoa que tamta rrazom amor e afeiçam deua nem posse teer carreguo delles e dos feitos e cousas a elles tocamtes, autorizando-a a gouernar e aministrar a elles seus beens e cousas e pessoas e que lhe pertencerem como milhor ouuer e lhe perecer (...) sem embarguo de quaasquer lex canónicas ciuees groses e openiõoes de doutores hordenaçõoes façanhas ou costumes de nossos regnos, ou seja, o monarca assinava a possibilidade de dona Brites se tornar a verdadeira gestora da casa senhorial: do património e de uma corte que já se divisava como alternativa.
O seu primogénito, João, herdou a casa e os títulos do pai. Foi, portanto, 2.ºduque de Beja e 3.º duque de Viseu, fronteiro de Entre Tejo e Guadiana e reino do Algarve, mestre das ordens de Cristo e de Santiago, condestável de Portugal, senhor da Covilhã, de Moura e das ilhas atlânticas. O rei iria ainda fazer-lhe mercê da cidade de Anafé, com toda a jurisdição e senhorios, apenes com ressalva das alçadas.
Mas, prudentemente, dona Brites, prevenindo um qualquer desaire que roubasse a vida ao jovem duque, obteve de Afonso V uma carta dada em Lisboa, a 14 de Agosto de 1471, que, com dispensa da Lei Mental, permitia a sucessão na pessoa do filho seguinte, caso João falecesse sem deixar descendência. Não se contentou a duquesa com a mercê régia e de novo solicitou, e foi-lhe deferida, por carta dada no Porto, a 7 de Agosto de 1476, a extensão da sucessão aos restantes filhos, considerada a ordem cronológica dos seus nascimentos.
Tivera razão a duquesa, nas suas preocupações! João iria, de facto, ter uma curta vida. Tal como o diploma obtido previa, seguiu-se-lhe Diogo, como 4.º duque de Viseu e 3.º duque de Beja. Porém, não seria contemplado como o irmão. O cargo de condestável seria então outorgado a seu primo, João, marquês de Montemor, cargo de há muito ambicionado pela Casa de Bragança, que se reclamava herdeira directa de Nuno Álvares Pereira. Perderia também o mestrado de Santiago que Afonso V entregou a seu filho, o príncipe João, adentro de uma política de concentração do poder, determinação que não teria agradado a dona Brites, que tentou, desta vez sem êxito, obter o mestrado de Avis, detido também por João, para seu filho Manuel. Argumentou a duquesa que a concessão do mestrado a João, agora João II, ocorrera num tempo em que ereasomente príncipe, pelo que não seria curial continuar a detê-lo. Mas estava-se já noutra era e a dona Brites foi-lhe negada mais esta pretensão, escusando-se, habilmente, o monarca com o depauperamento do reino.
Todavia, não foi recusado o governo da Ordem de Cristo a Diogo, governo aliás delegado a sua mãe, dada a menoridade do titular, pela bula Nuper carisimo, de Sisto IV datada de 19 de Junho de 1475. Dona Brites não se limitou então a aguardar a maturidade do filho, empenhando-se directamente na governação da Ordem, como aliás o havia feito, em relação à Ordem de Santiago, ao tempo detida por seu filho João, que contaria apenas cerca de 13 anos. Assim, considerando que no cartório faltava documentação que convinha deter, nomeadamente quanto a constituições, enviou a Badajoz frei Pedro Abreu, vigário da ordem de Cristo, a fim de obter cópias das directrizes em vigor no reino vizinho». In Maria Odete Sequeira Martins, D. Brites (Beatriz). 1429-1506, Mulher de Ferro, Quidnovi, 2011, Via do Conde, ISBN 978-989-554-789-0.

Cortesia de Quidnovi/JDACT

O Homem Pintado. Peter Brett. «… com uma promessa de morte aos que forem suficientemente tolos para enfrentar a escuridão crescente. Quando o sol se põe, não resta alternativa senão abrigarem-se atrás de guardas mágicas…»

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Um rescaldo, 319 DR
«(…) Arlen foi buscar as preciosas ferramentas às traseiras da carroça. O metal era escasso no Ribeiro e o seu pai orgulhava-se das duas pás, da picareta e da serra. Teriam grande uso naquele dia. Quantos se perderam?, perguntou Jeph, apesar de parecer não querer saber realmente. Vinte e sete, respondeu Selia. Silvy engasgou-se e cobriu a boca, com os olhos marejados de lágrimas. Jeph tornou a cuspir. Há sobreviventes? Perguntou. Alguns, disse Selia. Manie, apontou com o cajado um rapaz de pé, olhando a pira funerária. Correu até minha casa na escuridão. O espanto de Silvy foi sonoro. Nunca ninguém conseguira fugir para tão longe e sobreviver. As guardas na casa de Brine Lenhador resistiram durante a maior parte da noite, prosseguiu seria. Ele e a família assistiram a tudo. Alguns dos outros fugiram aos nuclitas e refugiaram-se junto dele até o fogo alastrar e incendiar o telhado. Aguardaram na casa em chamas até as traves começarem a estalar e, depois, arriscaram-se no exterior durante os minutos que antecederam o nascer do sol. Os nuclitas mataram Meena, a mulher de Brine, e Poul, o seu filho, mas os outros salvaram-se. As queimaduras irão sarar e as crianças ficarão bem com o tempo, mas os outros... Não precisou de terminar a frase. 0s sobreviventes de um ataque de demónios acabavam por morrer pouco depois. Nem todos. Nem sequer a maioria. Mas os suficientes. Alguns acabavam com a própria vida e outros limitavam-se a olhar o vazio, recusando comer ou beber enquanto definhavam. Dizia-se que só se podia considerar ter sobrevivido a um ataque depois de passado um ano e um dia. Resta uma dúzia de desaparecidos, disse Selia, com pouca esperança na voz. Vamos desenterrá-los afirmou Jeph, olhando as casas desabadas, muitas ainda envoltas em chamas ocasionais. Os lenhadores construíam as casas sobretudo com pedra, para se protegerem do fogo, mas até a pedra ardia se as guardas falhassem e se um número suficiente de demónios flamejantes se reunisse no mesmo local.
Jeph juntou-se aos outros homens e a algumas das mulheres mais fortes na remoção do entulho e no transporte dos mortos até à pira. Os corpos precisavam de ser incinerados, claro. Ninguém quer ser enterrado no chão de onde demónios se erguiam todas as noites. O Protector Harral, com as mangas da túnica enroladas e os braços grossos expostos, erguia pessoalmente cada um e lançava-o ao fogo, murmurando orações e traçando guardas no ar enquanto as chamas os envolviam. Silvy juntou-se às mulheres que reuniam as crianças mais pequenas e cuidavam dos feridos sob o olhar atento da Herbanaria do Ribeiro, Coline Trigg. Mas não havia erva capaz de apaziguar a dor dos sobreviventes. Brine Lenhador, também chamado Brine Ombros Largos, era um homem grande com porte de urso e uma gargalhada trovejante, que costumava atirar Arlen ao ar quando vinham trocar alimentos por madeira. Agora, sentava-se sobre as cinzas junto à sua casa arruinada, embatendo lentamente com a cabeça contra a parede negra. Murmurava para si próprio e passava as mãos pelos braços, como se tivesse frio. Arlen e as outras crianças foram encarregues de trazer água e de procurar madeira utilizável nas pilhas. Restavam alguns meses quentes no ano, mas não haveria tempo para cortar madeira suficiente para aguentar todo o Inverno. Voltariam a queimar estrume e a casa tresandaria. Novamente, Arlen sentiu-se dominar pelo remorso. Não estava na pira, nem a bater com a cabeça pelo choque de ter perdido tudo. Havia sinas piores do que uma casa a cheirar a estrume. Mais e mais aldeãos foram chegando com o avançar da manhã. Trazendo as famílias e os mantimentos que pudessem dispensar, vinham do Charco da Pesca e da Praça Central. Vinham da Colina da Charneca e do Pântano Encharcado. Alguns vinham mesmo de Vigia-Sul. E, um a um, Selia recebeu-os com as más notícias e distribuiu-lhes tarefas». In Peter Brett, O Homem Pintado, tradução de Renato Carreira, Edições Gailivro, 1001 Mundos, 2009, ISBN 978-989-557-677-7.

Cortesia de Gailivro/JDACT

As Obras do Diabinho da Mão Furada. António José Silva. «O Diabinho, depois de dar à bruxa o referido castigo e de lhe ordenar que durante quinze dias não fizesse signos salomónicos (de Salomão, um dos reis de Israel. signos salomónicos era uma forma preconceituosa de dizer que os rituais judaicos da cabala eram bruxarias)…»

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«(…) Eu vos agradeço, amigas minhas, respondeu o Diabinho, esse trato e adoração que me fazeis. Podeis relatar as maldades que tendes executado em virtude do favor que vos dou. Levantando-se então uma das bruxas com humilde submissão, disse ao Diabinho: eu, comissário de lúcifer, venho esta noite de chupar o sangue de um menino que não tinha mais que dois dias desde que foi baptizado, e deixei-o sem vida. Ao que respondeu o Diabinho dando um formidável e horrendo grito, dizendo: oh monstro indigno do meu favor e do título de bruxa, merecias, por tal obra que fizestes, que te sepultasse nas profundezas do inferno, em corpo e alma, para não veres mais a luz do sol! Não era mais lícito tirasses a vida a esse menino, antes que se baptizasse? Os inocentes que em protecção divina matas, feminino Herodes, vão gozar da eterna glória! Para isso seria melhor que esse inocente vivesse até à idade em que pecasse, para que tivéssemos parte nele. Muito eu tentei, oh indignado senhor, respondeu a bruxa, por executar a minha maldade antes de ele se baptizar, mas, semeando os seus pais mostarda pelas casas, levantando os ferrolhos das portas e pondo espadas nuas nas entradas delas, mo impediram, que não sei que antipatia tem connosco a virtude destas coisas, que nos encontram com grande violência os nossos intentos. E quanto ao que me dizes que mais justo seria que vivesse aquele inocente até a idade em que pecasse, para nele teres parte, contenta-te pensando que se vivesse, poderia vir a ser um grande santo e, para além de se poder tornar alguém capaz de grande glória, poderia acontecer que com o seu exemplo reduzisse muitas almas a Deus e tirava-te das mãos as presas delas. Mas tu também tens a culpa da minha hidropisia de sangue humano, pois me fizeste ser uma insaciável sanguexuga dele. Oh inferno abreviado, respondeu o Diabinho. O feminino Herodes! Oh diabo dos diabos! Pois se aumentas com sangue que chupas aos inocentes baptizados, não te irás daqui, oh indigna da minha presença e dos meus favores, sem o merecido castigo!  E sem dizer mais nada, tomou um pau dos que o nosso soldado tinha posto no lume e moendo a bruxa a pancadas, torceu-lhe uma perna até esta ficar manca.
Admirado estava o soldado e perdido dos seus sentidos por ver aquele espectáculo e por haver gente baptizada que, para gozar dos favores do demónio, para sua eterna condenação, sofresse tal ignomínia. E maldizia no seu coração a sorte que ali o trouxera, onde se julgava em tanto perigo, vendo, segundo o seu parecer, o inferno em vida. Mas fiava no seu ânimo e coração que, encomendando-se interiormente a Deus, e mediante o Seu divino favor, iria escapar de tudo. O Diabinho, depois de dar à bruxa o referido castigo e de lhe ordenar que durante quinze dias não fizesse signos salomónicos (de Salomão, um dos reis de Israel. signos salomónicos era uma forma preconceituosa de dizer que os rituais judaicos da cabala eram bruxarias) nem o invocasse, sob pena de lhe tirar logo a vida e de lhe antecipar o inferno, onde eternamente beberia chumbo derretido, pelo sangue baptizado que chupara, mandou às companheiras que referissem o que tinham feito; ao que elas logo obedeceram, relatando tais enormidades e torpezas que o soldado, por lhe parecerem indignas de serem escritas, não fez delas lembranças. Depois de ouvi-las disse-lhes o Diabinho: vitória, minhas amigas! Vós, sim, sois merecedoras dos meus favores. Eu vos agradeço e graduo por superlativas bruxas; e, porque tenho o hóspede que ali vedes e é já tarde, podeis restituir-vos às vossas habitações. E elas, que até então não tinham reparado no soldado por se dirigirem somente ao Diabinho e por o soldado estar muito quieto, a um canto da casa, sem dizer nenhuma palavra, assim que o viram, transfiguram-se em gatos negros e saltaram por uma janela com horrendos miados. Assombrado estava o soldado e sem gota de sangue no corpo, porque todo lhe tinha acudido ao coração com o temor do que tinha visto e ouvido, parecendo-lhe ilusão do demónio o que julgava por realidade. Quando, desaparecendo as bruxas, disse-lhe o Diabinho: que te parecem aquelas minhas súbditas? O soldado respondeu-lhe: estou admirado, atónito e fora de mim por ver que há gente tão bruta, tão cega e tão irracional que, conhecendo-te a ti e aos teus enganos, seja capaz de executar maldades contra seu próximo e viver quatro dias licenciosamente à custa do desprezo com que as tratas, mais o inferno, aonde sabem que hão de penar certamente. Oh, miséria grande! Oh, execrável maldade! Eu confesso-te que vivia enganado, porque, por mais que ouvia dizer que havia bruxas, não o podia crer e, que com o teu favor faziam grandes malefícios e para isso te comunicavam, não me podia persuadir a que assim fosse, imaginando que não passava de superstições embusteiras. Mas agora que vi com os meus olhos o contrário do que imaginava, se não foi ilusão do teu engano, fico desenganado, que coração sem arte não pensa em maldade.
Quantos desses enganos há no mundo!, replicou o Diabinho. Mal sabes o que corre nele e quantos passam na praça pública por aprimorados e virtuosos, que a mim estão entregues. Con su pan se lo coman, (que comam o seu próprio pão), respondeu o soldado, que eu não lhes tenho inveja e espero que o seu S. Martinho lhes venha a tempo do arrependimento pois quem tempo tem e tempo espera, tempo é que o demo lhe leva, e que quem mal vive, mal morre! Mais pareces pregador que soldado, replicou o Diabinho, contra o hábito da tua profissão, porque a maioria dos soldados, se não são diabos, são a pele do diabo na blasfémia e liberdade de consciência com que executam os seus vícios». In António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN 978-989-817-496-3.

Cortesia de LLivros/JDACT

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Poesia no Final do Dia. O Nosso Destino. Fado. «O amor é uma estação perigosa: rosa ocultando o espinho, espinho disfarçado de rosa, a enganosa euforia do vinho. O amor a ninguém serve, e todavia a ele regressamos, dia após dia cegos por seu fulgor; tontos de sede nos damos sem pudor em sua rede»

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Não me dou longe de ti
«Não me dou longe de ti
nem em sonhos eu consigo
ter alguém no meio de nós
só Deus sabe o que pedi
para tu ficares comigo
e ouvires a sua voz.

Só eu sei o que sofri
quando sonhava contigo
e abria os olhos a sós.

Sabes da minha fraqueza
onde a faca tem dois gumes
onde me mato por ti
e da tua natureza
corar-me o peito em ciúmes
e eu finjo que não morri.

Mas é da minha tristeza
esconder no fado os queixumes
e a cantar entristeci.

Á noite voltas de chita
com duas flores no regaço
e tudo o que a Deus pedi
és tão minha, tão bonita
és a primeira que abraço
aquela em que me perdi.

Nem a minha alma acredita,
que me perco no teu passo
não me dou longe de ti.

Assim te quero guardar
como se mais nada houvesse
nem futuro, nem passado
de tanto, tano te amar
pedi a Deus que trouxesse
o teu corpo no meu fado».
Poema de João Monge



Barroco Tropical
«O amor é inútil: luz das estrelas
a ninguém aquece ou ilumina
e se nos chama, a chama delas
logo no céu lasso declina.

O amor é sem préstimo: clarão
na tempestade, depressa se apaga
e é maior depois a escuridão,
noite sem fim, vaga após vaga.

O amor a ninguém serve, e todavia
a ele regressamos, dia após dia
cegos por seu fulgor; tontos de sede
nos damos sem pudor em sua rede.

O amor é uma estação perigosa:
rosa ocultando o espinho,
espinho disfarçado de rosa,
a enganosa euforia do vinho.»
Poema de José Eduardo Agualusa

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