sábado, 2 de maio de 2015

Poesia. As Fábulas. Três Rostos. Epístolas e Memorandos. Fiama Pais Brandão. «Depois, mundo maior foi a presença e a ausência, a alegria e as dores de outros que não eu. E um dia, no alto da catedral de Gaudí, chorei de horror da queda, como os caídos anjos…»

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Estradas
«Por giestas, tojo e trevo
um dia abandonei-me. A medo,
na giesta roçar a espádua,
e no tojo a pele dos artelhos.
Dor, mágoa nesse caminho,
um dia seco entre montes.

Alcantilado amarelo,
crua miragem, passei
crente do amor e alma
que haviam de jorrar
para os inocentes.
Mas quem me dava
inocência ou magia?

Quem me conduzia
em caminhos de soleiras
de casa a casa vivas,
entre a giesta e o tojo?
Só o trevo me salva
da cega dor. Delíquio
entre flores minhas
que na Primavera
recobrem toda a estrada.

Eu vi, andei, e o meu pacto
de andar caminhos pobres
mais pobre foi no tojo.
Mais belo, alto, na giesta
o corpo consolou-se
e aceitou essa via
ao longo da estrada amarga».
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão, in ‘Cenas Vivas, Relógio d´Água’




Foz do Tejo, um país
«O rio não dialoga senão pela alma
de quem o olha e embebeu a sua alma
de olhares ribeirinhos no passado
ou à flor do pensamento no futuro.

É um país que fala dentro da fronte,
olhando as naus, navios, barcos pesqueiros
e o trilho das famintas aves pintoras
de riscos negros, que perseguem o odor
das redes cheias, as outrossim poéticas
familiares gaivotas. É uma costa inteira
de imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São bocas a pensar razões da vida,
gargantas já caladas pela nascença e morte,
quando entre si se vêem ou juntas olham
o mar dos seus próprios dias. São cabeças
velhas de labutar, entre dentes cerrados,
as palavras mudas de um ofício no mar,
antigas de silêncio, como se no esófago
guardassem há muito a sabedoria de ir
enfrentar o mar, transpor o mar, estar.

Tal como um rio o mar só quer falar
pela dor e alegria de alma com que o chama,
há séculos na orla, um povo mudo,
com as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro de si, tão firmes no palato, articuladas
na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a alma tensa de uma paixão secreta,
escondida atrás da boca, e sempre aberta,
tal como as pálpebras diante desta água.

Só a alma sabe falar com o mar,
depois de chamar a si o rio, no imo
de cada um, recordações, de todos
os que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas por frutos regados pela bruma.
Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam sem som na glote, para nós mesmos dizemos
que o tempo já findou das caravelas outrora
e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.

Também as vacinas, fenícias áfonas no poema
que as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de serem mulheres com peixes à cabeça.
E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua do mar, os nomes com que nos chamam
para o seu modo de levar entre as casas o mar.
Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de poetas, só as pancadas das palavras
no encéfalo parecem ser voz do mar.

É uma nação única de memórias do mar,
que não responde senão em nós. Glórias, misérias,
que guardámos por detrás do olhar lírico
e da língua, a silabar dentro da boca.
Nunca chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma».
Poema de Fiama Hassa Pais Brandão, in ‘Cena Vivas, Relógio d´Água, 1997’

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