domingo, 29 de setembro de 2024

Sermão da Sexagésima. Padre António Vieira. «Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim»

Cortesia de wikipedia

Pregado na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII

«Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci?, disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação:

Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras». In Sermões, padre António Vieira, 1655, Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo, Edameris, 1965, Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, Universidade de São Paulo, Universidade de Santa Catarina, Wikipédia.

Cortesia de USCatarina/Wikipedia/JDACT

 JDACT, Padre António Vieira, Século XVII, Sermões

Sermão da Sexagésima. Padre António Vieira. «Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós»

Cortesia de wikipedia

Pregado na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII

«(…) Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

III

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa» In Sermões, padre António Vieira, 1655, Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo, Edameris, 1965, Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, Universidade de São Paulo, Universidade de Santa Catarina, Wikipédia.

 Cortesia de USCatarina/Wikipedia/JDACT

JDACT, Padre António Vieira, Século XVII, Sermões,

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) O último Cabalista de Lisboa é, em si, um pouco um enigma. Porque terá sido escondido na cave de Ayaz Lugo? Porque será que não é referido pelos manuscritos judaicos seus contemporâneos? Nunca terá sido publicado? Dado o seu objectivo de alertar os cristãos-novos e os judeus para o permanente perigo que corriam na Europa, Berequias devia ter tentado seguramente dar-lhe a maior divulgação possível. Várias explicações me foram propostas por Ruth Pimentel, da Universidade de Paris, que mais tarde foram seguidas pela maior parte dos demais especialistas no campo da literatura sefardita medieval que consultei. Antes de mais nada, a depreciativa caracterização que Berequias faz dos cristãos-novos e o seu declarado apelo aos judeus e aos cristãos-novos para que abandonem a Europa haveria certamente de enfurecer os reis europeus e as autoridades religiosas, em particular os inquisidores de Portugal e de Espanha. Se ele levasse a sua obra para a Europa cristã, as cópias que fossem descobertas haveriam de ser eliminadas e queimadas. É também provável que a sua ardente defesa da imigração judaica haveria de irritar os dirigentes das enfraquecidas comunidades judaicas da região, tanto os agrupamentos secretos sefarditas em Portugal e em Espanha como as comunidades mais abertas dos asquenazins nos países do Norte da Europa. Estes judeus ou cristãos-novos, que tinham um interesse espiritual, emocional ou monetário para permanecer na Europa, poderiam igualmente suprimir os seus escritos. Para mais, o modo como Berequias trata questões como o sexo e o cisma entre cabalistas e autoridades rabínicas poderia ser considerado demasiado directo para que certos leitores o pudessem apreciar. Os seus escritos seriam certamente considerados tabu por muitos dirigentes judaicos conservadores que procuravam resistir à era do judeu secular que se aproximava. Apesar de me suscitar dúvidas, não posso deixar de referir uma outra teoria: é possível que o próprio Berequias tivesse suprimido os seus escritos; não só por não ter querido expor a perseguições os judeus secretos mencionados no texto, como também porque a excomunhão por alegada heresia não era nada de desconhecido. Apesar da veemente necessidade de avisar os judeus da Europa do destino que seu tio pressagiava, pode ter receado ver-se cortado da sua comunidade, como o foi outro judeu de origem portuguesa um século mais tarde, Baruch Espinosa. Talvez tenha feito circular em segredo cópias do seu livro, pedindo aos seus leitores que não revelassem o conteúdo nem mencionassem sequer a sua existência. Será talvez essa a razão por que não tem título. Outra razão, bem mais desencorajante: quem sabe se não o mataram ao tentar reentrar em Portugal e salvar a sua prima Reza? As cópias das suas obras que tivesse escrito e levado para a Ibéria teriam assim certamente perecido com ele. Apenas as que tinham ficado escondidas em Constantinopla teriam sobrevivido. Quanto ao esconderijo, o mais provável é que os manuscritos tivessem sido ocultados para os proteger durante o período nazi; a cobertura de cimento data desse tempo. Lembremo-nos que os cristãos-novos portugueses emigraram em massa ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, sobretudo para a Turquia, Grécia, Norte de África, Holanda e Itália, regiões que mais tarde se veriam ameaçadas ou ocupadas pelo Reich alemão. Por exemplo, nos finais do século XVI, como resultado da emigração dos cristãos-novos, só Constantinopla contava com uma comunidade judaica de 30 000 pessoas e 54 sinagogas, a maior da Europa. Durante a II Guerra Mundial, a maior parte dos judeus ibéricos que viviam na Grécia, Bulgária e Jugoslávia, 200 000 ou mais, foram presos e morreram nas câmaras de gás. Se considerarmos o apelo de Berequias para que os judeus e cristãos-novos deixassem os países cristãos, é interessante notar que a comunidade judaica na Turquia muçulmana contava com a protecção do Governo e escapou inteiramente à destruição. Apesar disso, o proprietário ou proprietários dos manuscritos de Berequias, talvez os pais de Lugo, teriam justamente receado o alastramento das perseguições à Turquia, tal como Berequias temera o alastramento da Inquisição (maldita) de Castela a Portugal quatro séculos antes. A Inquisição (maldita) foi definitivamente estabelecida em Portugal em 1536, cerca de 50 anos depois de ter sido criada em Espanha e apenas seis anos depois de Berequias ter completado o último dos seus manuscritos. Teria Ayaz Lugo sabido da existência dos manuscritos? No seu testamento não lhes faz referência. Possivelmente tinham sido escondidos pelos seus pais, sem que ele o tivesse sabido. Cabe-me agradecer, antes de mais, a Abraham Vital, que me ofereceu generosamente a sua casa e, posteriormente, me permitiu utilizar os textos de Berequias Zarco. Gostaria igualmente de manifestar o meu apreço à sua mulher, Miriam Rosencrantz Vital, que muitas vezes me valeu durante os meus tardios serões com um copo de vinho do Porto e os seus cuscuz caseiros. Este livro é publicado em memória de Berequias Zarco, família e amigos.

 

Nota histórica

Em Dezembro de 1496, quatro anos depois de expulsarem do seu reino todos os judeus, os soberanos de Espanha, Fernando e dona Isabel, convenceram o rei de Portugal, Manuel I, a fazer o mesmo. Em troca, os monarcas espanhóis concediam-lhe em casamento a mão de sua filha. Pouco antes de a ordem de expulsão ser aplicada, Manuel I, que não queria perder tão preciosos súbditos, decidiu converter os judeus portugueses. Em Março de 1497, mandou encerrar todos os portos de embarque e ordenou que se reunissem todos os judeus e os conduzissem à força à pia baptismal. Embora os relatos que chegaram até aos nossos dias refiram judeus que preferiram dar-se à morte e matar os filhos a converterem-se, a maior parte deles acabaram por se ver forçados a aceitar Jesus como o Messias. Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram. Mesmo assim, muitos dos novos cristãos persistiram nas suas crenças. Em segredo e ao preço de riscos enormes, continuaram a recitar as suas orações hebraicas e a praticar os seus rituais, sobretudo os do Sabbat e das festas judaicas. Um desses judeus clandestinos era Berequias Zarco, o narrador d’O último Cabalista de Lisboa. As circunstâncias que rodearam a descoberta do manuscrito de Zarco em Istambul, em 1990, constam de uma Nota do Autor. Dessa mesma nota constam igualmente algumas observações quanto ao estilo adoptado na transcrição do texto original. No entanto, os leitores deverão desde já ter presente que, ao preparar o trabalho para publicação, esforcei-me por preservar o tom extremamente natural e directo do autor». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) Infelizmente, numerosas secções e mesmo simples páginas dos manuscritos de Berequias tinham sido reunidos fora da ordem por alguém manifestamente incapaz de ler o judeu-português. Era de enlouquecer. Levei dois meses para voltar a pôr tudo por ordem. Mas uma vez isso feito, o livro de Berequias Zarco lia-se perfeitamente. Os três manuscritos históricos no seu conjunto formam uma obra única, narrando a odisseia da família de Berequias durante os trágicos acontecimentos de Abril de 1506. Contam, em particular, a perseguição que Berequias moveu ao assassino do seu amado tio Abraão, um famoso cabalista provavelmente responsável por algumas das obras da Escola de Lisboa, até hoje consideradas anónimas, incluindo, por razões que a narrativa torna claras, Batendo às Portas e o Livro do Fruto Divino. São vários os breves relatos da matança que chegaram até nós, incluindo um de Salomão Ben Verga referido por Berequias, e não pode haver dúvidas quanto à veracidade da crónica de Berequias. Todos os principais acontecimentos aí relatados foram confirmados por escritos contemporâneos. Muitas das pessoas mencionadas, como Didi Molcho, João de Mascarenhas e Isaac Ben Farraj são nossos conhecidos através das suas obras assim como através de documentos da Igreja e da Coroa portuguesa. Alguns leitores menos familiarizados com a literatura sefardita e novo-cristã do século XVI poderão estranhar a minha reprodução da história de Berequias sob a forma de um mistério e o uso da linguagem coloquial. Berequias Zarco é, porém, como tantos dos seus contemporâneos, um autor moderno tanto na visão como no estilo. O segundo manuscrito, em especial, manifesta uma técnica directa que se assemelha à da novela picaresca espanhola, que começava a aparecer aproximadamente na mesma época dos manuscritos de Berequias. Curiosamente, muitos dos autores picarescos espanhóis eram também judeus convertidos. Berequias Zarco estava inegavelmente familiarizado com esses contemporâneos castelhanos.

Ao contrário das novelas picarescas, porém, o tom de Berequias quase nunca é irónico e nunca burlesco. Além disso, o seu personagem principal, ele próprio, não é nem um vilão nem um herói. É simplesmente aquilo que Berequias deve ter sido: um jovem inteligente e confuso, que fazia iluminuras, que vendia fruta e era cabalista; um jovem destroçado pela morte de seu tio. A linguagem franca de Berequias recorre a palavrões, afirmações claramente blasfemas e mesmo calão, que tentei manter na íntegra. Parece-me evidente que se a intenção de Berequias tivesse sido a de escrever mais um documento místico ou mesmo um texto histórico mais circunspecto, tê-lo-ia feito. Tinha talento e conhecimentos para tanto. A verdade é que não o fez. Escreveu um mistério em três partes, a última das quais poderia ser considerada pelos críticos contemporâneos como um epílogo. Tendo em atenção o leitor moderno, dividi essas três partes em vinte capítulos. Os capítulos I a VIII correspondem ao primeiro dos manuscritos de Berequias; do IX ao XX, ao segundo manuscrito; e o XXI ao terceiro. Apesar de O último Cabalista de Lisboa ser mais que uma tradução, mantive-me rigorosamente fiel ao conteúdo do escrito de Berequias, a não ser em dois casos: quando ele inclui extensas recitações de orações e de cânticos; e quando faz digressões sobre pontos espirituais associados aos arcanos essenciais relacionados com a Cabala. Apesar de se revestirem de interesse académico, seriam provavelmente dificultosos e aborrecidos para o leitor, e excluí-os por isso da minha transcrição. Do mesmo modo, várias secções foram reordenadas segundo a ordem cronológica, quando antes estavam ligadas segundo a tese espiritual que Berequias procurava demonstrar. Creio que também este facto não altera de modo substancial a obra de Berequias, e a estrutura que adoptei fará certamente mais sentido para o leitor moderno.

De um modo geral, procurei estabelecer um equilíbrio entre a linguagem contemporânea e o uso ocasional de uma ou outra palavra ou frase mais antiga. No seu conjunto, a obra permanece, assim o espero, fiel ao espírito do autor. Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos. Por isso mesmo, as transcrições do português são feitas de acordo com as convenções actuais. Sempre que se transcrevem palavras hebraicas, recorre-se aos caracteres latinos, de modo a poderem ser pronunciados pelos leitores americanos e europeus. Os manuscritos de Berequias levantam algumas questões importantes sobre a história dos livros hebraicos na Ibéria. Será a Tora ilustrada que ele descobre na geniza de seu tio a chamada Bíblia de Kennicott, que hoje pertence à Biblioteca Bodleian da Universidade de Oxford? A referência às letras em forma de animal e a Isaac Bracarense (indubitavelmente Isaac de Braga, por quem o manuscrito foi ilustrado) parece indicar nessa direcção. Nada se sabe da história da Bíblia desde a data do seu acabamento em 1476 até à sua aquisição em 1771 por Oxford, a conselho do bibliotecário, Kennicott. Talvez tenha de facto sido salva por Abraão e Berequias Zarco. Quanto à versão hebraica e árabe da Fonte da Vida detida por frei Carlos: teria sido realmente passada para Salónica? Que lhe terá, então, acontecido? Nunca foi encontrado nenhum original árabe, apenas traduções latinas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,

sábado, 28 de setembro de 2024

Milan Kundera. A Brincadeira. «Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era um ser estranho, simultaneamente de uma moralidade rígida e cu-riosamente inquieto e instável, de quem, pelo que eu sabia, a mulher se tinha divorciado ao fim de vários anos pelo simples facto de ele viver indiscriminadamente em qualquer lado, desde que fosse longe da mulher e dos filhos. Assustava-me a ideia de que ele se pudesse ter voltado a casar, circunstância propícia a complicar a satisfação do meu pedido, e apressei o passo em direcção ao hospital.

O hospital é um conjunto de edifícios e pavilhões semeados aqui e ali sobre um vasto espaço de jardins; entrei na pequena guarita junto ao portão e pedi ao porteiro sentado atrás de uma mesa para me pôr em contacto com a secção de virologia; ele empurrou o telefone para o canto da mesa do meu lado e disse: Zero dois!  Marquei o zero dois e fiquei a saber que o doutor Kostka saíra há alguns segundos e que estaria prestes a chegar à saída. Sentei-me num banco perto da porta principal para me assegurar de que o não perderia, e olhava distraidamente os homens passeando-se em roupão de hospital, de riscas azuis e brancas, quando o vi: vinha pensativo, alto, magro, simpático na sua falta de presença, sim, era mesmo ele. Levantei-me do meu banco e fui direito a ele como se fosse empurrá-lo; deitou-me um olhar de desagrado, mas depressa me reconheceu e me abriu os braços. Senti que a sua surpresa foi de quase felicidade, e a espontaneidade do seu acolhimento deu-me prazer.

Expliquei-lhe que tinha chegado havia uma hora para tratar de um assunto sem importância que me reteria ali perto de dois dias, e ele logo me manifestou a surpresa feliz por a minha primeira visita lhe ter sido dedicada. Foi-me subitamente desagradável não o ter vindo procurar com um espírito desinteressado, por ele só, e a pergunta que lhe fiz (perguntei-lhe jovialmente se voltara a casar) pareceu reflectir uma atenção sincera, quando, no fundo, provinha de um calculismo baixo. Disse-me (para minha satisfação) que continuava só. Declarei que tínhamos muito que contar um ao outro. Ele concordou e lamentou não dispor, infelizmente, de pouco mais de uma hora, visto ter ainda que voltar ao hospital e, no fim da tarde, ter de apanhar um autocarro para fora da cidade. Não mora aqui?, digo, assustado. Assegurou-me que sim, um estúdio num edifício novo, mas que é penoso viver solitário. Soube que Kostka tinha, numa outra cidade a vinte quilómetros, uma noiva professora, possuindo, também ela, um pequeno apartamento de duas assoalhadas. Vai viver com ela futuramente?, perguntei-lhe.

Disse-me que dificilmente encontraria trabalho noutro sítio tão interessante como aquele que lhe arranjara e que, pelo contrário, a sua noiva teria dificuldade em arranjar um lugar aqui. Pus-me a vituperar (de bom coração) as demoras da burocracia, incapaz de facilitar as coisas de maneira a que um homem e uma mulher possam viver juntos. Sossegue, Ludvik, disse-me com uma doce indulgência, que não é assim tão insuportável. A viagem custa-me, é certo, dinheiro e tempo, mas a minha solidão permanece intacta e sou livre. Porque tem um tal desejo de liberdade?, perguntei-lhe. Evocê?, disse ele. Eu ando atrás das raparigas, respondi-lhe. Não é pelas mulheres, é por mim que me faz falta a minha liberdade, disse, e acrescentou: Oiça, venha um momento a minha casa antes de eu me ir embora. Eu não pedia mais que isso.

Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista. Atravessámos uma porta, subimos uma escada demasiado estreita (o elevador estava avariado) e detivemo-nos no terceiro andar, onde reconheci o nome de Kostka no cartão-de-visita. Quando, tendo atravessado a entrada, nos encontrámos na sala, senti-me mais que satisfeito: um grande e confortável divã ocupava um canto; além do divã, havia uma pequena mesa, uma poltrona, uma grande biblioteca, um gira-discos e um aparelho de rádio». In Milan Kundera, A Brincadeira, Publicações Dom Quixote, 1967, 4ª edição 1994, ISBN 972-200-014-4.

 Cortesia de PDQuixote/JDACT

JDACT, Milan Kundera, Literatura, Conhecimento,

A Brincadeira. Milan Kundera. «… percorri cinicamente com os olhos a praça desengraçada antes de lhe voltar costas e tomar a rua do hotel onde tinha um quarto alugado para essa noite. O porteiro estendeu-me uma chave pendurada numa pêra de madeira…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Asssim, depois de tantos anos, voltava de novo a casa. De pé, na praça principal (que, criança, depois rapaz, depois jovem, atravessara mil vezes), não sentia qualquer emoção; pelo contrário, pensava que aquele es-paço onde a torre do sino (parecida com um antigo cavaleiro sob o seu elmo) se vê acima dos telhados, lembrava a vasta parada de um quartel, e que o passado militar daquela cidade da Morávia, outrora muralha contra as incursões dos Magiares e dos Turcos, imprimira nela a marca de uma irrevogável fealdade.

Durante anos, nada me atraíra à minha cidade natal. Dizia-me que ela se me tinha tornado indiferente, e isso parecia-me natural: ao fim de quinze anos vividos fora, só me restam alguns conhecidos, ou mesmo os amigos (que prefiro, de resto, evitar); a minha mãe está enterrada num túmulo estrangeiro, que não visito. No entanto iludia-me: aquilo que eu chamava indiferença era na realidade rancor; escapavam-me as razões, pois tinham-me acontecido coisas boas ou coisas más nesta cidade como em todas as outras, em todo o caso esse rancor existia; percebera-o durante a minha viagem: a missão que aqui me trazia poderia, bem vistas as coisas, cumpri-Ia igualmente bem em Praga, mas tinha sido, num repente, irresistivelmente atraído pela ocasião oferecida de executá-la na minha cidade natal, precisamente por se tratar de uma missão cínica e terra-a-terra que, por ironia, me absolvia da suspeita de aqui voltar sob o efeito de um enternecimento piegas pelo tempo perdido.

Uma vez mais, percorri cinicamente com os olhos a praça desengraçada antes de lhe voltar costas e tomar a rua do hotel onde tinha um quarto alugado para essa noite. O porteiro estendeu-me uma chave pendurada numa pêra de madeira dizendo segundo andar. O quarto não era muito convidativo: uma cama contra a parede. no meio uma mesinha com uma única cadeira, ao lado da cama um pretensioso toucador de mogno com espelho, junto da porta um lavatório lascado absolutamente minúsculo. Pousei a toalha na mesa e abri a janela: a vista dava sobre um pátio e sobre casas com as traseiras nuas e sujas viradas para o hotel. Fechei a janela, corri os cortinados e aproximei-me do lavatório, que tinha duas torneiras, uma com sinal encarnado, outra azul; experimentei-as, a água correu igualmente fria em ambas. Examinei a mesa, que, em rigor, chegava, visto que nela cabiam perfeitamente uma garrafa e dois copos; infelizmente, à falta de uma segunda cadeira no quarto, só uma pessoa se poderia lá instalar. Tendo puxado a mesa para perto da cama, tentei sentar-me nesta, mas era demasiado baixa e a mesa alta de mais; mais ainda, encovava de tal maneira que logo foi evidente que não só constituía um mau assento, corno desempenharia de maneira duvidosa a sua função de cama. Apoiei-me nos punhos; depois estendi-me levantando cuidadosamente os pés calçados para evitar sujar a coberta e o lençol. Com o colchão cavado sob o meu peso, encontrava-me estendido como numa rede ou numa campa estreita: não me era possível imaginar partilhar aquela cama com alguém.

Sentei-me na cadeira, o olhar perdido nas cortinas iluminadas em transparencia, e reflecti. Nesse momento, fizeram-se ouvir passos e vozes no corredor; duas pessoas, um homem e uma mulher, e cada palavra era inteligível: falavam de um certo Petr, que tinha fugido de casa, e de uma tal Mara, que era idiota e estragava o pequeno; depois ouviu-se uma chave a rodar na fechadura, uma porta que se abria e as vozes que continuavam no quarto ao lado; ouvi os suspiros da mulher (sim, até os suspiros me chegavam!) e a decisão do homem de dizer de vez duas palavras à Mara.

Levantei-me, a minha resolução estava tomada; lavei ainda as mãos no lavatório, limpei-as com a toalha, e deixei o hotel sem saber ao certo para onde ia. Sabia simplesmente que, se não quisesse comprometer o bom sucesso de toda a minha viagem (viagem consideralvelmente longa e fatigante) por causa da única imperfeição do meu quarto de hotel, devia, por muito que não me apetecesse, fazer um discreto apelo a qualquer amigo local. Passei rapidamente em revista todas as caras do tempo da minha juventude, para logo as afastar, pois o carácter confidencial do favor solicitado me iria obrigar a construir uma ponte laboriosa sobre os muitos anos em que nos perdêramos de vista, e isto desagradava-me. Depois lembrei-me de que aqui vivia sem dúvida um homem a quem outrora tinha, aqui mesmo, arranjado um emprego e que ficaria, pelo que conheço dele, muito contente por me fazer por sua vez um favor». In Milan Kundera, A Brincadeira, Publicações Dom Quixote, 1967, 4ª edição 1994, ISBN 972-200-014-4.

Cortesia de PDQuixote/JDACT

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sábado, 31 de agosto de 2024

No 31. Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Em Toledo, o seu destino estava traçado. A sua única possibilidade era uma imediata fuga, e fora isso que fizera»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Coimbra, Maio de 1126

«Nesse momento, Fátima olhou para a irmã Zaida, com um sorriso triunfante, mas a outra fez-lhe uma careta. Sem ligar às diatribes silenciosas das filhas, Zulmira prosseguiu: Para mais, Afonso VI nunca ajudou meu avô Al-Mutamid. Tempos depois, chegou a segunda notícia fatal: Sevilha fora também tomada pelos almorávidas de Yusuf, e Al-Mutamid tinha sido levado preso para Marraquexe, onde morreria.

A minha raiva tornou-se gigantesca, confessou Zulmira. Ainda mais enfurecida ficou quando Afonso VI se passou a intitular o «Imperador das Duas Religiões», argumentando que o seu herdeiro legítimo, o príncipe Sancho, era tão cristão como muçulmano. Era o cúmulo da afronta!, exclamou.

Como Zulmira viria a descobrir, não era a única a ter tais sentimentos. Os nobres e os bispos de Castela e Leão abominavam aquela farsa da união das duas religiões, e a hostilidade ao varão do imperador crescia, contaminando Dona Urraca e Dona Teresa, iradas por terem sido ultrapassadas por Sancho na linha sucessória.

Certo dia, quando Zulmira passeava pelas ruas de Toledo, dois homens obrigaram-na a segui-los. Fora levada a uma casa e, num ambiente escuro, tinham-lhe proposto um sinistro acordo. Desafiaram-na a matar o meio-irmão Sancho, coisa que ela podia fazer facilmente, pois circulava à vontade na corte. Em troca, o grupo dos conspiradores garantia-lhe proteção contra a fúria de Afonso VI. Zulmira suspirou e depois disse:

Não posso jurar, pois não lhes vi bem as caras, mas suspeito de que entre aquelas pessoas estavam Dona Urraca e Dona Teresa. Zaida levou a mão à boca, compreendendo o perigo que ainda corria a mãe. Se um dia a reconhecesse, Dona Teresa podia mandar matá-la! Há nove anos, em Coimbra, achei que ela me identificara, mas depois percebi que não, recordou Zulmira. Mas outros podem fazê-lo, por isso não fui a Ricobayo nem a Toledo, e fingi doenças. .

Fascinada pelo intrigante golpe palaciano, Fátima perguntou se a mãe havia tentado matar o seu meio-irmão, mas Zulmira contou que, saída daquela obscura casa, rapidamente chegara à crua conclusão de que, fizesse o que fizesse, morreria. Se matasse Sancho, seria eliminada, ou pelo vingativo imperador, no caso de ser descoberta, ou pelos conspiradores, para garantirem que não os denunciava. Mas, se não matasse Sancho, os conspiradores também não a iam deixar viver. Em Toledo, o seu destino estava traçado. A sua única possibilidade era uma imediata fuga, e fora isso que fizera». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Sacudiu-me um diálogo, preciso e desenvolvido, entre um rapaz de óculos e uma jovem que infelizmente não os tinha. E o pêndulo de Foucault, dizia o moço, Foi primeiro experimentado numa cave em 1851…»

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Keter

«Mas não era este desvio da Lei, que de resto a própria Lei previa, não era esta violação da medida áurea que tornava menos admirável o prodígio. Eu sabia que a Terra estava rodando, e eu com ela, e Saint-Martin-des-Champs e Paris inteira comigo, e juntos rodávamos sob o Pêndulo que na realidade não mudava jamais a direcção do próprio plano, porque lá em cima, de onde pendia, e ao longo do infinito prolongamento ideal do fio, para o alto em direcção às mais remotas galáxias estava, imóvel por toda a eternidade, o Ponto Fixo.

A Terra girava, mas o lugar onde o fio estava ancorado era o único ponto fixo do universo. Por isso, não era propriamente à Terra que o meu olhar se dirigia, mas ao alto, lá onde se celebrava o mistério da imobilidade absoluta. O Pêndulo dizia-me que, embora tudo se movesse, o globo, o sistema solar, as nebulosas, os buracos negros e todos os filhos da grande emanação cósmica, desde os éons primitivos à matéria mais viscosa, um único ponto permanecia, eixo, cavilha, engate ideal, deixando que o universo se movesse em torno dele. E eu participava agora daquela experiência suprema, eu que embora me movesse com tudo e com o todo, eu podia ver o Quid, o Não-Movente, a Rocha, a Garantia, a caligem luminosíssima que não é corpo, não tem figura forma peso quantidade ou qualidade, e não vê, não sente, não é apreendido pela sensibilidade, não é um lugar, nem um tempo ou um espaço, não é alma, inteligência, imaginação, opinião, número, ordem, medida, substância, eternidade, não é treva nem luz, não é erro nem verdade.

Sacudiu-me um diálogo, preciso e desenvolvido, entre um rapaz de óculos e uma jovem que infelizmente não os tinha. E o pêndulo de Foucault, dizia o moço, Foi primeiro experimentado numa cave em 1851, depois no Observatoire, e em seguida sob a cúpula do Panthéon, com um fio de sessenta e sete metros e uma esfera de vinte e oito quilos. Finalmente, desde 1855 está aqui, em formato reduzido, e pende daquele furo, na travessa da abóbada.

E para que serve, só para ficar balançando? Serve para demonstrar a rotação da Terra. Se considerarmos que o ponto de suspensão permanece fixo... Mas por que permanece fixo? Porque um ponto... como direi... no seu ponto central, quer dizer todo ponto que esteja no meio dos pontos que você vê, bem, aquele ponto, o ponto geométrico, você não vê, não tem dimensão, e portanto não tendo dimensão não pode mover-se nem à esquerda nem à direita, nem para baixo nem para cima. Consequentemente, não gira. Entendeu? Se um ponto não tem dimensão, não pode sequer girar em torno de si mesmo. Nem mesmo este si mesmo existe... Nem com a Terra girando? A Terra gira, mas o ponto não. Se lhe agrada, é assim, se não, dane-se. Está bem? Problema dele.

Miserável. Tinha sobre a cabeça o único lugar estável do cosmo, o único ponto resgatado da danação do ponta rei, e pensava que fosse problema Dele, e não dela. Mas logo em seguida o casal se afastou, ele, tendo estudado nesses manuais que lhe obnubilaram as possibilidades de maravilhar-se, ela inerte, inacessível ao arrepio do infinito, ambos sem terem registado na memória a experiência terrificante daquele seu encontro, primeiro e último, com o Uno, o En-sof, o indizível. Como não cair de joelhos diante do altar daquela certeza?

Quanto a mim, fitava-o com reverência e espanto. Naquele momento, estava convencido de que Jacopo Belbo tinha razão. Quando me falava do Pêndulo, eu atribuía sua emoção a um devaneio estético, àquele câncer que estava tomando forma, informe, em sua alma, transformando, passo a passo, sem que ele se desse conta, o seu jogo em realidade. Mas se tinha razão quanto ao Pêndulo, talvez fosse verdade todo o resto, o Plano, a Conspiração Universal, e era justo que tivesse vindo ali na vigília do solstício de verão. Jacopo Belbo não era louco, simplesmente havia descoberto por jogo, através do Jogo, a suma verdade». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Difel, 2004, Editora Gradiva, ISBN 978-989-616-717-2.

 Cortesia de Difel/ Editora Gradiva/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Conhecumento, Ciência, O Saber,

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Sabia também que na vertical do ponto de suspensão, na base, um dispositivo magnético, transmitindo sua atracção a um cilindro oculto no cerne da esfera, garantia a permanência do movimento…»

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Keter

«Foi então que vi o Pêndulo. A esfera, móvel na extremidade de um longo fio fixado à abóbada do coro, descrevia suas amplas oscilações em isócrona majestade.

Eu sabia, mas quem quer que o tivesse advertido no encanto daquele plácido respirar, que o período era regulado pela correlação entre a raiz quadrada do comprimento do fio e a do número PI, o qual, embora irracional para as mentes sublunares, relaciona, por alguma razão divina, a circunferência ao diâmetro de todos os círculos possíveis, de modo que o oscilar de uma esfera de um pólo a outro decorre de uma arcana conspiração entre a mais intemporal das medidas, a unidade do ponto de suspensão, a dualidade de uma dimensão abstrata, a natureza terciária do PI, o tetrágono secreto da raiz e a perfeição do círculo.

Sabia também que na vertical do ponto de suspensão, na base, um dispositivo magnético, transmitindo sua atracção a um cilindro oculto no cerne da esfera, garantia a permanência do movimento, artifício disposto para contrabalançar as resistências da matéria, mas que não se opunha às leis do Pêndulo, antes lhes permitia manifestarem-se, porque no vácuo qualquer ponto material pesado, suspenso da extremidade de um fio inextensível e sem peso, que não sofresse a resistência do ar nem o atrito com seu ponto de apoio, teria oscilado de modo regular por toda a eternidade.

A esfera de cobre emitia pálidos reflexos cambiantes sob a incidência dos últimos raios de sol que penetravam pelos vitrais. Se, como outrora, sua ponta estivesse roçando uma camada de areia húmida espalhada sobre o pavimento do coro, teria desenhado a cada oscilação um leve sulco no solo, e o sulco, mudando infinitesimalmente de direcção a cada instante, ter-se-ia alargado sempre em forma de brecha, de vala, deixando adivinhar uma simetria radiada, como um esqueleto de mandala, a estrutura invisível de um pentáculo, de uma estela, de uma rosa mística. Não melhor talvez a peripécia, registada na extensão do deserto, dos traços que deixaram caravanas infinitas e erráticas. Uma história de lentas e milenárias migrações, talvez da mesma forma como se deslocaram os atlântidas do continente Mu, numa peregrinação obstinada e possessiva, da Tasmânia à Groenlândia, do Capricórnio ao Câncer, da Ilha do Príncipe Eduardo ao Svalbard.

A ponta repetia, narrava novamente num tempo bastante compacto, o que eles haviam feito entre uma e outra glaciação, ou que talvez ainda fizessem, agora mensageiros dos Senhores, quem sabe no percurso entre Samoa e Zemlia, a ponta, na sua posição de equilíbrio, aflorasse Agarttha, o Centro do Mundo. E intuí que um plano único unia Avalon, a hiperbórea, ao deserto austral que abriga o enigma de Ayers Rock.

Naquele momento, às quatro da tarde de 23 de Junho, o Pêndulo amortecia a própria velocidade numa extremidade do plano de oscilação, para recair indolente em direcção ao centro, readquirir velocidade a meio do percurso e desferir seus golpes de sabre confidentes no quadrado oculto das forças que o destino lhe apontava.

Se eu permanecesse muito tempo, resistente ao passar das horas, a fixar aquela cabeça de pássaro, aquele ápice de lança, aquele elmo emborcado, enquanto desenhava no vazio as suas diagonais, aflorando os pontos opostos de sua astigmática circunferência, teria sido vítima de uma ilusão fabulatória, pois o Pêndulo me levaria a crer que o plano de oscilação teria realizado uma rotação completa, tornando ao ponto de partida, em trinta e duas horas, descrevendo uma elipse achatada, elipse que girasse em torno de seu próprio centro com uma velocidade angular uniforme, proporcional ao seno da latitude.

Como teria girado se o ponto fosse fixado ao alto da cúpula do Templo de Salomão? Talvez os Cavaleiros tivessem experimentado também lá. Talvez o cálculo, o significado final, não houvesse modificado. Talvez a igreja abacial de Saint-Martin-des-Champs fosse o verdadeiro Templo. Contudo, a experiência só teria sido perfeita no Pólo, único lugar em que o ponto de suspensão incide sobre o prolongamento do eixo de rotação da Terra, no qual o Pêndulo realizaria seu círculo aparente em vinte e quatro horas» . In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Difel, 2004, Editora Gradiva, ISBN 978-989-616-717-2.

 Cortesia de Difel/ Editora Gradiva/JDACT

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sexta-feira, 12 de julho de 2024

Fernando Campos. Psiché. «Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

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A memória do esquecimento

«Levanto‑me. Vou comprar qualquer coisa e depois venho olhando de frente, digo, deixando António a puxar de um cigarro. Caminho até ao bar. Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão, os ombros e a cabeça recortados na superfície polida do grande espelho que corre a todo o comprimento da parede. Procuro nos retalhos de imagens, entre prateleiras de garrafas, reconstituir o cenário atrás de mim, enquanto pago os fósforos. No embaciamento daqueles estilhaços de prata velha a custo reconheço António sentado à mesa e, três filas além, a mancha de um vestido claro, uma vaga sombra de mulher que se ergueu e se afasta. Volto‑me para regressar. E este voltar‑me... Como o virar de página do tempo! Trinta anos transcorridos!... Aquele meu voltar‑me para não encontrar ninguém! Apenas uma mesa vazia. No pires, junto à chávena, um guardanapo de papel amarrotado, uma ponta de cigarro esmagada... Perdi para sempre a ocasião de alguma vez me encontrar com ela? De saber quem era?... Os anos desataram a transformar em húmus e a diluir em éter, numa vertigem, aqueles que foram protagonistas ou meras testemunhas desses insólitos acontecimentos. Caíram na voragem novos e velhos: Silva Lisboa, Albertina, outros... Os que ficaram, ainda quando aqui e ali roçaram por eles vestígios vivos desse passado, fecharam‑se numa cómoda ausência de curiosidade ou uma estudada distanciação e apatia. Como que acabaram por esquecer.

Nem esquecer‑me nem lembrar‑me podia eu. Factos que mal conhecera fragmentariamente esbateram‑se em nebuloso fundo de outras preocupações que vieram relevar‑se longos anos, em nitidez e luz, na ribalta da vida. Andanças de errante saltimbanco do ofício de professor... Terras distantes escondidas nas voltas das estradas, no tramontar das serras.... Muralhas tisnadas dos séculos e dos sonhos, vigiando a veiga expectante e úbere do vale imenso... Perfumes e cores exalando‑se do seio do oceano na ilha perdida como nenúfar que floriu no cume de um vulcão extinto... Banho de brancura luminosa, olhos magoados da claridade do céu e da cal de paredes e açoteias mouriscas... Maresia ribeirinha de gaivotas e traineiras ondulando no porto fenício... Até vir aproar na cidade de Ulisses a lustrar‑me de rosa... Que me chamou então de novo, decorrido tanto tempo, a atenção para o mistério?...

Toma!‑ disse‑me Fernanda um dia ajoelhada no chão à boca da antiga mala abaulada, enquanto me ia entregando livros, embrulhos, velhas fotografias. "Esta mala! Viajou connosco tantos anos por todo o lado!...E parava, cansada, com as mãos no regaço, o olhar tresmalhado no passado. De súbito acordava e tornava a mexer na papelada. Estes são os álbuns dele. Que canseira miúda e aturada! As mãos dele! Estou a vê‑las, habilidosas, a recortar, a colar... Que paciência! Coligidos quase dia a dia, recortes de jornais, postais ilustrados, recordações dos teatros em que actuou, de amigos, artistas, personalidades que conheceu... O desnovelar da vida!... Tudo passou!» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

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A memória do esquecimento

«Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer. Foi por isso que não desci esse Natal ao Porto. Tampouco pela Páscoa me fiz à estrada. Tinha, entretanto, tirado a carta e comprara um carro, motorizando‑me, fazendo preito ao progresso. Só lá para os fins dos exames, em Julho, princípios desse outro Agosto, de cinquenta e seis, cheguei do nordeste, nos olhos ainda a longa negra fita de alcatrão ou paralelipípedos a enrolar‑se no galgar dos quilómetros, nos rins o cansaço das intermináveis horas sentado ao volante do Volkswagen, que vinha todo vomitado das voltinhas do Marão. Foi António o primeiro que falou. Não porque sentisse necessidade de abordar o assunto. Aliás, posteriormente, quando eu já me encontrava senhor dos acontecimentos, compreendi aquele como que preconceituoso pudor da família em rodear o caso de um espesso mutismo. O que o fez falar foram as circunstâncias... Aí estava ela! Não, não olhasse ainda, para não dar nas vistas!... A mesa da terceira fila, atrás de mim...

Animava‑se o café àquela hora, onze e meia da manhã, acabada a missa. Homens fumando, chávena vazia à frente ou por instantes aflorada aos lábios, jornal aberto, folheado, saboreado. Fatos cuidados, na ausência de nódoa ou enxovalho, no vinco recente da calça. Barba escanhoada, camisa lavada. Catarro matinal, tabacal. Aos pés de um deles, cabelo ralo todo lambido de brilhantina, para trás, cara chupada, o macaco coçado, os tornozelos escanzelados a saírem das peúgas lassas e do calçado cambado, faz o engraxador chiar e estalar a tira de pano lustroso ao polir do sapato. Dá‑se um casal ao luxo da fofa loira torrada com manteiga, em palitos, lambuzando os dedos. Os dela são papudos e brilham de jóias. Por detrás do tinir das xícaras, pires e talheres, das vozes dos empregados de mesa a comunicarem ao bufete os pedidos dos clientes (Sai um galão! Três pingos e um copo de leite com canela!...), por entre a névoa que paira no ar, misto de fumo e de vapor que embacia as vidraças, vêm de fora as vibrações do tanger dos sinos. Coisa concreta, que quase se corta à faca, a respiração e o perfume domingueiro. Que semelhança!, continuava António. Enquanto o escutava, eu ia esperando a oportunidade de me voltar para trás. Aparecia por ali muitas vezes, no Amial, dizia a voz dele. Morava talvez perto ou então andava a espiá‑lo, a persegui‑lo. Isto pelo menos era o que insinuava sua mulher, a Catalina, desconfiada... Cruzava com a desconhecida na rua, nos lugares mais diversos e imprevisíveis da cidade, na Cordoaria, na Avenida dos Aliados, na Lapa. Olá, sobrinho!, palavras dela no ar quando passava... As feições um pouco menos amaciadas mas muito parecidas com as de Fernanda e com um retrato antigo que ele vira da avó Ana... Teria aí uns vinte e dois anos. Parece que aquilo fora caso acontecido aquando da morte de Raquel... Estranha coincidência! O nascimento e a morte! Para Silva Lisboa tornara‑se motivo de funda meditação. Albertina, porém, não podia admitir a junção dos dois factos, das duas dores a lancear‑lhe a alma. Em cima da perda da filha, aquilo!... Olá, sobrinho! Que queria tudo isso dizer?...» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer»

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A memória do esquecimento

«O telefone tocara no meio da barafunda do início do ano lectivo e das preocupações. Não se deve expor a uma tal viagem agora, foi a proibição do Mário Carneiro. Nem pensar! Ela concordava, virava‑se para mim: tu... Também não podes ir. Não há ninguém para te substituir no colégio. Foi assim que não estive presente no funeral de Silva Lisboa. Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade possíveis e desfazer a natural emoção. Silva Lisboa e Albertina, Raquel e Alberto Tavares, Fernanda e Alberto Campos..., e Mário..., e Ana de Jesus..., e Maria José..., e João..., e Josué..., e a desconhecida... Pessoas, personagens de romance. Lembro a última imagem que dele me ficou. Chegara o fim de Agosto e partíamos, eu e Maria Olga, com as duas filhas, acabadas as férias grandes, para o nosso castelo roqueiro, por causa da abertura do colégio. Fomos ao quarto dele despedirmo‑nos. Olhou‑nos com um sorriso a disfarçar o ar triste, sentado na borda da cama, seu pijama de flanela azul às riscas. Mostre‑me as suas mãos!, recordo‑lhe a voz dirigindo‑se à Maria Olga. Pegou‑lhas vivamente quando ela as estendeu de costas para cima. Gostava de falar com ela, que tinha muita paciência para o escutar, lhe fazia atenciosa companhia quando lá passávamos uns dias. Deixava‑a arrancar‑lhe pormenores da sua vida que a mais ninguém confidenciara. Talvez porque mais ninguém lhe fazia ou ousava fazer perguntas ou se sentia à vontade para lhas fazer.

Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer». In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade…»

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A memória do esquecimento

«Lembrava‑se apenas de que se esquecera... ou esquecera‑se de se lembrar. Que queria? Fraca memória a sua!, suspirava. Os anos!... Fernanda tinha muitas vezes comigo este desabafo e eu tomava‑lhe a preocupação, procurava colar‑lhe os restos das lembranças, reconstituía‑as em mantas de retalhos, a tentar conservar o calor das veias, a cor das faces, o brilho de um olhar, o tom de uma voz, o latejar dos corações atingidos pelo gelo do tempo que chegou ao seu limite... Procurar trabalhar a matéria perpetuável, no limiar do eterno... e transpô‑lo! Tomar o esquecimento e recolocá‑lo na memória! Repor a memória no pedestal do esquecimento, na cidade indiferente e distraída..., nas cidades, vilas, aldeias e lugares distraídos e indiferentes por onde Silva Lisboa espalhou a rodos a fantasia e o riso!... Antes que o verme pontual e infalível roa com suas mandíbulas tenazes os últimos músculos putrefactíveis, ainda vivos, que o sal do artista fez contrair num sorriso, vibrar e estalar numa gargalhada. Fixar as recordações para ao menos essas se não transformarem em cinza!... Descuidados que somos até da única certeza indesmentível! Dir‑se‑á não querermos acreditar que nascemos mortais. Surpreende‑nos sempre desprevenidos a notícia da morte. A carta, o telegrama que nos bate à porta quando se está longe. O telefone que toca como tantas vezes rotineiras... Está? Fernando?, Sim. É para te dizer que o avô...

O gesto lento, interiorizado, de pousar no descanso o telefone. Então aquele foi mesmo o último suspiro?... E aquele corpo vai arrefecer?... Do espantoso lance teatral inesperadamente surgido no cemitério junto ao corpo exânime do actor, ao fechar do caixão, quando o padre pronunciava as últimas encomendações, lançava as derradeiras aspersões de água‑benta, traçava no ar a cruz do requiem e um coveiro avançava com a pá de cal viva, far‑me‑iam relato mais tarde os parentes que assistiram. Estranha realidade: nenhuma das versões é coincidente! Eu encontrava‑me no norte, para lá das montanhas, desmaiava Setembro. Grande a azáfama do abrir das aulas. A mulher, pesadona, a três meses do fim do tempo. Eu não possuía ainda carta nem carro nesse tempo e a única possibilidade de me deslocar para ir assistir ao enterro era aquele comboiinho de brincar que levava meio dia a chegar, depois de fumegar e resfolegar as voltinhas gaiatamente apitadas, trepando a montes de vento e lobos, espreitando telhados isolados, adormecidos em vales perdidos, bordejando pegos e córregos de vertigem. Apareciam os pais a trazerem os filhos para o internato, os professores vinham pelos horários e as cadernetas. Tudo eu fazia ali, naquele colégio que era de brincar como o comboio. A única coisa bonita que tinha era estar alcandorado nas velhas muralhas medievais bordadas de lírios a olhar o rio largo e lento sob a ponte de Trajano. De resto achava‑me praticamente só num barco a naufragar. Trinta alunos que mal davam para as despesas, um sócio que fugira mal cheirara o descalabro, deixando‑me com as suas dívidas. Director, prefeito, administrador, professor de tudo e mais alguma coisa, português, francês, inglês, desenho, treinador de jogos, para evitar ter de pagar a outros aquilo que eu não recebia. Vinte e seis anos de idade..., a construção do meu futuro!».. In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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terça-feira, 2 de julho de 2024

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «… algumas mulheres preparam comida. A chegada dos fugitivos com os turcos no seu encalço espalha o terror. Alguns, que tentaram atingir os bosques vizinhos, são rapidamente alcançados»

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A Invasão. 1096-1100

«(…) É verdade que os franj perderam cerca de seis mil homens, mas os que restam são seis vezes mais numerosos, e esta é a única oportunidade para se livrarem deles. Para tanto, ele preferiu destacar dois espiões, gregos, para o acampamento de Citivot, afim de anunciar que os homens de Renaud estão em excelente condição, que conseguiram apoderar-se da própria Nicéia, e que estão firmemente decididos a não permitir que seus correligionários lhes disputem as riquezas. Enquanto isso, o exército turco preparará uma gigantesca emboscada. De facto, os rumores cuidadosamente propagados suscitam no acampamento de Citivot a confusão prevista. Formam-se grupos, injuria-se Renaud e seus homens. Logo tomam a decisão de pôr-se a caminho para participar do saque de Nicéia.

Mas eis que, subitamente, não se sabe muito bem como, um homem que conseguiu escapar da expedição de Xerigordon chega, revelando a verdade quanto à sorte de seus companheiros. Os espiões de Kilij Arslan pensam ter fracassado em sua missão, já que os mais sábios entre os franj pregam a calma. Mas, passado o primeiro momento de consternação, a exaltação volta.

A multidão se agita e brada, quer partir imediatamente e não mais para participar de meros saques, e sim vingar os mártires. Aqueles que hesitam são tratados de covardes. Finalmente, os mais enfurecidos obtêm ganho de causa, e a partida é fixada para o dia seguinte.

Tendo seu artifício descoberto, ainda que o objectivo houvesse sido previamente atingido, os espiões do sultão triunfam e mandam dizer ao seu senhor que se prepare para o combate. Na madrugada de 21 de Outubro de 1096, os ocidentais deixam seu acampamento. Kilij Arslan não está longe. Ele passou a noite nas colinas próximas a Citivot. Seus homens estão nos seus lugares, bem escondidos. Ele mesmo, de onde está, pode avistar ao longe a coluna dos franj levantar uma nuvem de poeira.

Algumas centenas de cavaleiros, a maioria sem armadura, andam na frente, seguidos por uma multidão de infantes em desordem. Estão andando há menos de uma hora quando o sultão ouve o clamor que se aproxima. O sol que se ergue atrás dele golpeia-os em pleno rosto. Prendendo a respiração, ele faz sinal aos seus emires comandados para que se mantenham alertas.

O instante fatídico é chegado. Um gesto apenas perceptível, algumas ordens sussurradas aqui e ali, e eis os arqueiros retesando lentamente seus arcos. De repente, mil flechas jorram num único e longo assobio. A maioria dos cavaleiros desaba nos primeiros minutos. Depois, os infantes são dizimados por sua vez. Quando se travou o combate corpo-a-corpo, os franj já estavam derrotados.

Aqueles que se encontravam na rectaguarda voltaram correndo para o acampamento, onde os que repousavam eram despertados. Um velho sacerdote celebra um ofício religioso, algumas mulheres preparam comida. A chegada dos fugitivos com os turcos no seu encalço espalha o terror. Alguns, que tentaram atingir os bosques vizinhos, são rapidamente alcançados». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Cruzadas, Árabes,

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «Podem ser vistos, nesses primeiros dias de Outubro, olhando desesperadamente para o céu, mendigando algumas gotas de chuva. Em vão. Após uma semana um cavaleiro chamado Renaud…»

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Invasão. 1096-1100

«Kilij Arslan é apanhado de surpresa. Quando lhe chegam as primeiras noticias, os atacantes já estão sob os muros de sua capital; e o Sol ainda não atingia o horizonte quando os cidadãos veem subir a fumaça dos incêndios. Imediatamente, o sultão manda uma patrulha de cavaleiros, que se choca com os franj. Esmagados pelo número, os turcos são massacrados. Apenas raros sobreviventes voltam, ensanguentados, para Niceia. Vendo seu prestígio ameaçado, Kilij Arslan resolve começar a batalha imediatamente, mas os emires de seus exércitos o desaconselham. A noite já vai cair e os franj retiram-se às pressas para seu acampamento.

A vingança terá que esperar. Contudo não por muito tempo. Aparentemente animados com seu sucesso, os ocidentais repetem a façanha duas semanas mais tarde. Dessa vez, o filho de Suleiman, avisado a tempo, segue passo a passo sua progressão. Uma tropa franca, compreendendo alguns cavaleiros, mas sobretudo milhares de saqueadores esfarrapados, pega a estrada de Niceia, depois, contornando a aglomeração, dirige-se para o leste e toma de surpresa a fortaleza de Xerigordon. O jovem sultão se decide.

À frente de seus homens, cavalga rapidamente em direcção à pequena praça-forte onde, para comemorar sua vitória, os franj embebedam-se, incapazes de imaginar que seu destino já esteja selado. Pois Xerigordon apresenta uma armadilha que os soldados de Kilij Arslan conhecem bem, mas que esses estrangeiros inexperientes não foram capazes de descobrir: o abastecimento de água que se situava fora, bastante longe das muralhas. Então os turcos não precisam de muito tempo para interditar seu acesso. Basta-lhes tomar posição ao redor da fortaleza e não se mover mais. A sede luta por eles.

Para os sitiados, começa um suplício atroz: eles chegam a beber o sangue de suas montarias e sua própria urina. Podem ser vistos, nesses primeiros dias de Outubro, olhando desesperadamente para o céu, mendigando algumas gotas de chuva. Em vão. Após uma semana um cavaleiro chamado Renaud, chefe da expedição, aceita a capitulação com a condição de que lhe seja poupada a vida. Kilij Arslan, que exigiu que os franj denunciem publicamente a sua religião, não fica pouco surpreso quando Renaud se diz pronto não só a converter-se ao islamismo, mas também a combater ao lado dos turcos contra seus próprios companheiros. Vários de seus amigos, que se prestaram às mesmas exigências, são enviados como prisioneiros para as cidades da Síria ou da Ásia Central. Os outros são mortos pela espada. O jovem sultão está orgulhoso de sua proeza, mantém-se ponderado. Após ter concedido a seus homens um prazo para a tradicional partilha dos bens restados da guerra, ele os coloca em alerta a partir do dia seguinte». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

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