sábado, 29 de abril de 2023

Viagem a Portugal. José Saramago. «O Basto, quem é? Dizem que se trata de um guerreiro galaico, de escudo circular na barriga, como era moda do tempo. Data, tem a de 1612, e mais parece um rapazito de bigodes pintados e calções curtos…»

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Os Animais Apaixonados

«(…) Estas coisas merecem a sua coroação. Lá adiante há outro vale, um enorme circo rodeado de montanhas, cultivado, fundo, largo. E logo depois, quando o solo volta a ser bravo, de pinheiral e mato, aparece o arco-íris, o arco do céu, aqui tão perto que o viajante cuida que lhe pode chegar com a mão. Nasce em cima da copa dum pinheiro, vai por aí acima e esconde-se por trás da encosta, e em verdade não é um arco, mas sim um quase invisível segmento de círculo franjado de faixas coloridas, assim como uma cortina de tule finíssimo em frente de um rosto. O viajante cansa-se de comparações e faz uma última e definitiva, junta todos os arco-íris da sua vida, verifica que este é o mais perfeito e completo de todos, agradece à chuva e ao Sol, à sua preciosa sorte que o trouxe aqui nesta preciosa hora, e segue viagem. Quando passa debaixo do arco-íris, vê que lhe caem sobre os ombros tintas de várias cores, mas não se importa, felizmente são tintas que não se apagam e ficam como tatuagens vivas.

O viajante está quase a chegar a Cabeceiras de Basto, mas antes fez um desvio para Alvite, só para a ver, da banda de fora, a Casa da Torre, conjunto de porta, capela e torre, barrocas as primeiras, a torre mais antiga, e o mais singular daqui são os altos pináculos das esquinas, equilíbrio magnífico de formas volumétricas, airosa graça de funambulismo arquitectónico. Em Cabeceiras, o viajante é recebido pelas primeiras gotas do que há de vir a ser, não tarda, uma devastadora bátega. Vai ao convento, que é uma enorme construção setecentista onde já nada se encontra do primitivo mosteiro beneditino. Esta região está bem guardada por S. Miguel. Aqui são logo dois, um sobre o pórtico, e outro, de tamanho maior que o natural, vê-se cá de baixo empoleirado no lanternim do zimbório, mirando toda a paisagem, à procura de almas perdidas. S. Miguel deve ter ganho todas as suas batalhas, ou não estariam os demónios, de língua de fora, pategos e humilhados, suportando os órgãos da igreja, como atlas de plástica monstruosa, sem nenhuma grandeza.

Volta o viajante à praça, de repente lembrado de que não vira o Basto, delito que tão pouco se perdoa como não ver o papa em Roma, estando lá. Habituado a praças de monumento ao meio, o viajante concluiu que o Basto foi roubado, ou não é ali a sua Roma. Foi por isso informar-se, e afinal eram só dois passos, a deslado, entre o chafariz e o rio. O Basto, quem é? Dizem que se trata de um guerreiro galaico, de escudo circular na barriga, como era moda do tempo. Data, tem a de 1612, e mais parece um rapazito de bigodes pintados e calções curtos do que o rústico batalhador de antigas eras. Tem na cabeça uma barretina das invasões francesas, e para não falhar a primeira comparação parece usar umas meias bem puxadinhas por mandado de sua mãe ou avó. Dá vontade de sorrir. O viajante tira-lhe o retrato, e ele apruma-se, olha para a objectiva, quer ficar favorecido, o Basto, com o seu fundo de ramos verdes, como convém a senhor de terras e montanhas, muito mais que o S. Miguel do lanternim, tão distante. O Basto é, por força, uma das mais justificadas estátuas portuguesas, todos lhe querem bem.

O viajante olha o céu, desconfiado. Estão a amontoar-se umas nuvens escuríssimas, netas reforçadas das que fizeram o dilúvio. Pensa no que fará, se fica por ali a beber um cafezinho quente ou se se mete ao caminho, traz na ideia ir à aldeia de Abadim, que fica perto. Como o viajante anda à descoberta do que não sabe, tem de correr seus riscos. Vai portanto a Abadim, e é como se passasse o Rubicão. Não tinha andado um quilómetro desaba uma catarata do céu. Em poucos segundos o espaço ficou branco do contínuo fluxo de água. Uma árvore a vinte metros ficava tão vaga, tão difusa como se estivesse escondida no nevoeiro. Para a estrada, péssima, corriam as cascatas dos montes.

Aí, o viajante temeu. Já se via arrastado pela corrente, de cambulhada com as pedras soltas e as folhas mortas. Atravessou uma pontezinha frágil, e agora vai mais sereno, sobe o monte, o automóvel não dá parte de fraco, e depois de mil voltas aí está Abadim. Não se vê vivalma, toda a gente recolhida, em casa a que em casa está, em abrigos de ocasião os que andam fora. A chuva diminuiu, mas ainda cai com grande violência. O viajante resolve retirar-se, continuar viagem, mais frustrado do que quer confessar. É então que passa uma mulher nova, de guarda-chuva aberto, e o viajante aproveita: Boas tardes. Pode dar-me uma informação? Aqui os gados dos vizinhos ainda vão todos juntos para a serra da Cabreira, ou já não se usa? A mulher há-de estar a perguntar a si própria por que quer o viajante saber tais coisas, mas é simpática, e delicada, se lhe perguntam, responde: É, sim senhor. Do primeiro domingo de Junho até ao dia da Assunção, vai o gado todo para a serra, com os pastores. Ao viajante custam a entender estas transumâncias, mas a mulher explica que na serra da Cabreira há uma pastagem que é de Abadim, sua propriedade mesma, e é para aí que o gado vai aposentar. O viajante lembra-se de Rio de Onor, terras da banda de lá que são nossas, terras da banda de cá que são deles, e mais se lhe enraíza a convicção de quanto é relativo o conceito de propriedade, querendo os homens. Despede-se da mulher, que deseja boa viagem, e quando já vai na estrada, chove quase nada, encontra um pastorzito de quinze anos. Quem é, quem não é: Ando a guardar vacas do meu pai e de uns vizinhos». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

Cortesia de PEditora/JDACT

 

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Viagem a Portugal. José Saramago. «E este vale, como explicar o que ele é? A estrada vai andando às curvas, por entre montes e montanhas, e é a costumada formosura, nem o viajante espera mais do que tem»

                                                        

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Os Animais Apaixonados

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Os Animais Apaixonados

«(…) Felgueiras já ficou para trás, e aí adiante é Pombeiro de Ribavizela, um mosteiro arruinado, triste como só os mosteiros em ruínas conseguem ser. São cinco horas da tarde, o dia vai escurecendo, e o viajante cai em grande melancolia. A igreja, por dentro, é húmida e fria, há manchas nas paredes onde a água das chuvas se infiltrou, e as lajes do chão estão, aí e além, cobertas de limo verde, mesmo as da capela-mor. Ouvir aqui missa deve valer uma indulgência geral com efeitos pretéritos e futuros. Mas o assombro do viajante atinge extremos quando a mulher da chave lhe diz que na missa das sete da manhã é que a afluência é grande, vem gente de todos os lugares próximos. Sob a capa fria e húmida da atmosfera, o viajante arrepia-se: que será isto pelos grandes frios e dilúvios do Inverno? Quando vai a sair, a mulher aponta-lhe as arquetas tumulares que ali estão, de um lado e outro da porta. Um é o Velho, o outro é o Novo», diz. O viajante vai certificar-se. Os túmulos são do século XIII. Um deles representa Gomes de Pombeiro na tampa e deve conter-lhe os ossos. Esse é o Velho. Porém, o Novo, quem será? Não o sabe dizer a mulher da chave. Então, o viajante aceita sem discutir o que a sua própria imaginação lhe propõe: o outro túmulo é também de Gomes de Pombeiro, feito quando, mancebo e vivíssimo rapaz, recebeu grave ferimento em batalha, de que felizmente escapou. Fez-se o túmulo para escarmento e Gomes de Pombeiro esperou pela velhice para ir descansar ao lado da sua própria imagem quando moço. É um imaginado tão bom como qualquer outro, mas o viajante não fez dele confidência à mulher da chave, pois ela merece outro respeito que este brincar com os mortos, tanto mais que não terá túmulo de pedra nem estátua jazente, e se a tivesse haveria de merecer a sua dupla imagem, a Nova que foi, e a Velha que é de amargoso luto e face sucumbida. Fecha a mulher a igreja com a grande chave e retira-se para as ruínas do convento, onde mora. O viajante olha a altíssima fachada, a grande rosácea, compraz-se alguns minutos no híbrido mas formoso portal. A tarde morre mesmo, já não há quem segure este dia.

Quando o viajante entra em Guimarães, os candeeiros estão acesos. Dormirá numa água-furtada com vista para a Praça do Toural. Sonha com o Velho e o Novo, vê-os a caminhar pela estrada que vai de Pombeiro a Telões, ouve o duro pisar dos seus pés de pedra, e está com eles diante do altar das almas, olhando todos os três a bela condenada, aquecendo enfim o corpo gelado naquela fogueirinha que nem S. Miguel pode apagar.

O viajante acorda já de manhã clara. Não gosta do sonho que teve, não é nenhum dom João para assim lhe aparecerem convidados de pedra, e decide cortar cerce nas imaginações para não vir a perder o sono. Toma um café que mais eficazmente cobrirá as suas negruras interiores, e sai à rua a farejar os ares. Tempo instável, sol apenas por metade, mas luminoso quando aparece. Ao viajante não agrada ficar na cidade. Logo tornará a ela, mas neste momento o que lhe apetece é voltar aos grandes horizontes. Por isso decide seguir para as terras de Basto, nome pelos vistos de muito requestamento, pois só Basto há três, duas são as Cabeceiras, e ainda temos Mondim e Celorico, Canedo e Refojos, tudo de Basto, com muita honra. O viajante viu estes casos pelo mapa, não lhe impõe o seu roteiro que por todos aqueles lugares passe, mas, tendo observado a abundância, mal parecia que não registasse. Poucos quilómetros adiante de Guimarães é Arões. Lástima tem o viajante de que uma linha de palavras não seja uma corrente de imagens, de luzes, de sons, de que entre elas não circule o vento, que sobre elas não chova, e de que, por exemplo, seja impossível esperar que nasça uma flor dentro do o da palavra flor. Vem isto tão a propósito de Arões como de qualquer outro lugar, mas como a paisagem é esta beleza, como a igreja matriz é este românico, tem o viajante este desabafo. Mesmo agora sentiu o cheiro das folhas molhadas e não sabe onde está a palavra que devia exprimir esse cheiro, essa folha e essa água. Uma só palavra para dizer tudo isto, já que muitas não o conseguem.

E este vale, como explicar o que ele é? A estrada vai andando às curvas, por entre montes e montanhas, e é a costumada formosura, nem o viajante espera mais do que tem. Então, aqui, num ponto entre Fafe e Cabeceiras de Basto, numa volta da estrada, o viajante tem de parar, e na página mais clara da sua memória vai pôr a grande extensão que os seus olhos vêem, os planos múltiplos, as cortinas das árvores, a atmosfera húmida e luminosa, a neblina que o sol levanta do chão e perto do chão se dissipa, e outra vez árvores, montes que vão baixando e depois tornam a erguer-se, ao fundo, sob um grande céu de nuvens. O viajante está cada vez mais crente de que a felicidade existe». ». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

Cortesia de PEditora/JDACT

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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Viagem a Portugal. José Saramago. «O vale onde foi construído Telões é aberto, amplo, passa aqui um ribeirito qualquer, e quando o viajante vai entrar na igreja são horas de bater o relógio»

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A Cava do Lobo Manso

«(…) O viajante deixa ao lado Marco de Canaveses e vai à procura de Tabuado. Prevê que será outra busca demorada, mas enganou-se. De súbito, aparece-lhe pela direita, como se o segurasse pela manga do casaco, a igreja matriz do século XII, de um românico simples na arquitectura, mas preciosamente decorado de motivos de plantas e animais. Dentro e fora, a igreja justificaria um dia inteiro de apreciação, e o viajante sente grande ciúme de quem esse tempo já aqui gastou ou possa vir a gastar. O que resta dos frescos da capela-mor, obra quatrocentista, retém os olhos, e o viajante fica a pensar nos desvios de gosto que terão feito ocultar, em passados tempos, a beleza rústica destas pinturas, quem sabe se por isso mesmo poupadas a maiores estragos. Quando o viajante sai, conversa um pouco com um homem e uma mulher que ali estão. A igreja, para eles, é só o que sempre ali viram desde que nasceram, mas concordam com o viajante, que sim senhor é bonita.

Entre Marco de Canaveses e Baião, tem o viajante ocasião e tempo para dar a mão à palmatória. Disse ele, quando do Marão falou, que toda a serra era de arredondados montes, com amenas florestas, um vergel. Não retira nada do que disse, que assim é o Marão entre Vila Real e Amarante, mas aqui, Marão é isto também, e contudo não pode haver orografia mais diferente, áspera e dura, com as agudas pedras que mais a norte faltam. Tem esta casa grande, afinal, muitas moradas, e a que o viajante agora vai percorrendo é decerto a casa dos ventos e das cabras monteses, desabitada casa se diga, porque hoje nem uma aragem sopra, e as cabras extinguiram-se há séculos.

Talvez por ser a paisagem assim, o viajante não se sente atraído pelos lugares habitados. Não se detém em Baião, continua para norte, a par do rio Ovil, e num lugar chamado Queimada vê sinal de que há ali perto dólmenes. Sabe o viajante que não faltam no País construções destas, e, se agora não as fosse ver, não perderia ele nem perderia a viagem. Mas já foi dito que, na disposição em que vai, prefere os ermos, e este íngreme caminho que arranca pelo monte acima promete muito silêncio e solidão. Ao princípio há pinhal, sinais de trabalho recente, mas o mato começa logo adiante. O caminho é uma tosca e arruinada carreteira, com profundos sulcos cavados pelas torrentes vindas do alto, e o viajante teme um acidente, uma avaria. Contudo, persevera, e tem a sua recompensa quando a ascensão termina num quase raso planalto. Os dólmenes não estão à vista. Agora é preciso avançar pelo mato dentro, há uns delgados carris que se interrompem, maneiras de negaça que o deixam perplexo. É um quebra-cabeças malicioso, traçado em monte deserto para obscuros fins. O viajante avança pelo mato, tem de encontrar a mina de ouro, a fonte milagrosa, e quando já lança pragas e imprecações (bem está que o faça neste cenário inquietante) vê na sua frente a mamoa, o primeiro dólmen meio soterrado, com o chapéu redondo assente sobre esteios de que só se vêem as pontas, é como uma fortificação abandonada. O viajante dá a volta, aí está o corredor, e lá dentro a câmara espaçosa, mais alto todo o conjunto do que pelo lado de fora parecia, tanto que o viajante nem precisa curvar-se, e de baixo nada tem. Não há limites para o silêncio. Debaixo destas pedras, o viajante retira-se do mundo. Vai ali à Pré-História e volta já, cinco mil anos lá para trás, que homens terão levantado à força de braço esta pesadíssima laje, desbastada e aperfeiçoada como uma calote, e que falas se falaram debaixo dela, que mortos aqui foram deitados. O viajante senta-se no chão arenoso, colhe entre dois dedos um tenro caule que nasceu junto de um esteio, e, curvando a cabeça, ouve enfim o seu próprio coração.

Os Animais Apaixonados

Tornou o viajante a Amarante, pela estrada que segue ao longo do rio Fornelo, e desta vez não pára. Simples cuidado de prudência, que Amarante tem artes de mulher e seria bem capaz de cativar por muitos dias o incauto. Poucos quilómetros andados, é Telões. Há aqui um mosteiro com uma airosa galilé, ainda que restaurada. Quando o viajante sai das estradas principais cobra sempre grandes compensações. O vale onde foi construído Telões é aberto, amplo, passa aqui um ribeirito qualquer, e quando o viajante vai entrar na igreja são horas de bater o relógio. E ele de carrilhão e amplificadores, umas buzinas orientadas aos quatro pontos cardeais que atroam a gravação dos bronzes por todos os espaços infra e supra. O viajante teria preferido o dlim-dlão natural dos sinos a tais electrónicas, mas não será por sua causa que o progresso vai ficar fora destes vales. Vivam pois Telões e o seu carrilhão do último modelo. Lá dentro, na igreja, há um painel das almas que atrai o viajante. Tem S. Miguel da santificada lança, umas labaredas de cor natural, mas os olhos vão cobiçosos para aquela formosíssima condenada, de peitos firmes e apetitosos, que arde voluptuosamente entre as chamas. Não está bem que a igreja castigue as tentações da carne e ao mesmo tempo as provoque desta maneira em Telões. O viajante saiu do templo em pecado mortal». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

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Viagem a Portugal. José Saramago. «Quando o viajante regressa à luz do Sol, é como se tivesse caído doutro planeta. E tão abalado vai que chega a Amarante sem dar por isso, mas aí acorda e indigna-se diante da estátua de Pascoaes…»

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A Cava do Lobo Manso

«(…) Pena leva o viajante de não ter puxado uma cadeira para junto da mesa a que o sacristão trabalhava nas sua eclesiais escriturações e ficar ali na boa conversa, a saber de vidas e de gostos musicais, perde-se muito não falando com as pessoas. Porém, já fora de Amarante, trata-se de descobrir S. João de Gatão, onde é, onde não é, não faltam as indicações, estes homens que fazem a vindima empoleirados em altas escadas: Chegando aí adiante, onde há umas árvores grandes, vire à esquerda, é logo lá. Virar, vira o viajante, ou julga tê-lo feito, porque adiante outros homens dirão: Chegando aí adiante, onde há umas árvores grandes, vire à direita, é logo lá. Enfim, chegou o viajante ao seu procurado destino. A casa é igual a muitas que por estes lados se encontram: um pequeno solar, de corpo central e duas alas, casa às vezes nobre, outras vezes de burguês enobrecido, rurais ambos, dependentes da terra e da renda, e por isso duros no trato negocial. Não será esse o caso. Esta casa é de poeta. Viveu aqui Teixeira de Pascoaes, debaixo daquelas telhas morreu.

O viajante pisa o caminho amolecido pelas chuvas, retarda o momento e vai ali ao lado, a uma adega, certificar-se do que já adivinhou: Se é ali a casa do poeta. Respondem-lhe que sim, com simplicidade, o informador serve outras obrigações, e ainda por cima está habituado à vizinhança, nenhum homem é grande para a adega que lhe estiver perto. O viajante guarda na memória a cautela que teve de usar para passar sobre uns canos de borracha ou de plástico que por ali havia estendidos, e o cheiro da uva pisada, uva de Pascoaes, mosto poético, vai acompanhá-lo durante muitos quilómetros, até se lhe dissipar a embriaguez. Melhor se diria vertigem.

Há um lanço de escadas simples, vasos de flores, beirais marcados de musgo e líquenes. É óbvio que o viajante está intimidado. Bateu à porta, espera que venham abrir: Falha a viagem se não entro. É que esta casa não é museu, não tem horas de abrir e fechar, mas sem dúvida há um deus dos viajantes bem-intencionados, é ele que diz: Entre, e quando se apresenta não é deus nenhum, mas sim o pintor João Teixeira de Vasconcelos, sobrinho de Teixeira de Pascoaes, que abre todas as portas de uma casa toda ela preciosa romã e vai acompanhando o viajante até ao fundo do corredor. O viajante está no limiar da parte da casa onde Teixeira de Pascoaes passou os últimos anos da vida. Olha e mal se atreve a entrar. Casas, lugares onde vive ou viveu gente, tem visto muitas. Mas não a cava de um lobo manso. São três salas dispostas em fiada, o sítio de dormir e trabalhar, a biblioteca, chaminé ao fundo, dizer isto é o mesmo que nada dizer, porque as palavras não podem exprimir a indefinível cor de barro que tudo cobre ou de que tudo é feito, a não ser que a origem da cor ambiente seja a luz da manhã, assim como não dirão que súbita comoção é esta que enche de lágrimas os olhos do viajante. Nestas salas andou um lobo, isto não é casa de gente avulsa e paisana. E o viajante tem de disfarçar e enxugar os olhos sentimentais, assim lhes chamaria quem cá não veio, mas entenderá melhor se se lembrar de que Marão é Casa Grande, e entrar aqui é o mesmo que estar no mais alto monte da serra, recebendo todo o vento na cara e olhando de cima os vales profundos e negros. Teixeira de Pascoaes não é dos mais preferidos poetas do viajante, mas o que comove é esta casa de homem, este leito pequeno como o de S. Francisco em Assis, esta rusticidade de ermitério, a lata das bolachas para a fome das horas mortas, a tosca mesa dos versos. Todos deixamos no mundo o que no mundo criámos. Teixeira de Pascoaes teria merecido levar consigo esta outra criação sua: a casa em que viveu.

Há mais que andar. Quando o viajante regressa à luz do Sol, é como se tivesse caído doutro planeta. E tão abalado vai que chega a Amarante sem dar por isso, mas aí acorda e indigna-se diante da estátua de Pascoaes que lá está, obra peca e pouca. Torna a passar a ponte depois de ter deitado um olhar de despedida à trecentista Nossa Senhora da Piedade que está no nicho, e segue por baixo das grandes frondes da alameda, a tomar a estrada que o levará a Marco de Canaveses. Suave caminho é este ao longo do Tâmega, formoso e brando para éclogas. Em suas reflexões, o viajante vem a concluir ser o lugar bom para pastores arcádicos, pelo menos enquanto não desse a morrinha nas ovelhas e as frieiras nos dedos do zagal». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

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Viagem a Portugal. José Saramago. «Já nada surpreende o viajante, porém quer averiguar por completo até onde vai a subversão, e então pergunta: Dá licença que passe uma vista de olhos? O sacristão levanta a cabeça, olha afavelmente e responde: Ora essa»

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A Cava do Lobo Manso

«(…) Quando o viajante acordou, ainda mal aclarava, percebeu que não fora só o marulhar da corrente do rio que o embalara. Chovia, as goteiras despejavam cataratas sobre os ladrilhos da varanda. Acostumado já a viajar com todo o tempo, encolheu o viajante os ombros debaixo dos cobertores e tornou a adormecer, sem cuidados. Foi o bem que fez. Ao levantar-se, já manhã franca, o céu está descoberto, o Sol anda a fazer arco-íris pequeninos nas gotas penduradas das folhas. É uma festa. O viajante arrepia-se só de pensar no calor que já estaria se fosse Verão. A primeira ida é ao Museu Albano Sardoeira, onde há algumas peças arqueológicas de interesse, umas tábuas quinhentistas que merecem atenção, mas, acima disso e do resto, estão os Amadeus, soberbas telas do período de 1909 a 1918, com um saber de oficina que as mostra no esplendor da última pincelada, como se o pintor, acabada a obra, tivesse saído agora mesmo para a sua casa de Manhufe onde a vindima o estava esperando. Tem mais o museu uns Elóis, uns Dacostas, uns Cargaleiros, mas é o Amadeo de Souza-Cardoso que o viajante devagar contempla, aquela prodigiosa matéria, suculenta pintura que se desforra do exotismo orientalista e medievalizante dos desenhos que, em reprodução reduzida, o viajante veio a comprar, humildemente.

Está visto que a paciência é uma grande virtude. Diga-o S. Gonçalo que no século XIII construiu a ponte antes desta e teve de esperar cinco séculos para lhe arranjarem lugar para um túmulo em que não está, mas onde não faltam as oferendas. O viajante diz isto com ares de gracejo, maneira conhecida de compensar o susto que apanhou quando, ao entrar numa capela de tecto baixíssimo, deu com a grande estátua deitada, colorida como de pessoa viva. Estava o local meio às escuras e o susto foi de estalo. Estão polidos os pés do milagroso santo, de afagos que lhe fazem e de beijos que neles depõem as bocas que vêm implorar mercês. É de acreditar que os pedidos sejam satisfeitos, pois não faltam as oferendas, pernas, braços e cabeças de cera, equilibrados sobre o túmulo, é certo que ocos, os tempos vão maus para a cera maciça, e esta bem se vê que é adulterada. Salva-se a fé que é muita neste S. Gonçalo de Amarante que tem reputação de casar as velhas com a mesma facilidade com que Santo António, por condão das raparigas, passou à história.

O viajante percorre a igreja e o claustro do que foi o convento, e, em seu coração, põe-se a amar Amarante, sabendo já que é um amor para sempre. Nem o afligem os três maus reis portugueses que na varanda estão, e o outro, espanhol, pior que todos: o dom João III, o dom Sebastião e o dom Henrique cardeal, mais o primeiro dos Filipes. Amarante é tão graciosa cidade que se lhe perdoa o perverso gosto histórico. Enfim, estão lá estes reis porque foi durante os reinados deles que a construção se fez. Razão suficiente.

Torna o viajante à igreja mete por uma passagem lateral que vai dar à sacristia. Donde vem esta música rock and roll, é que não adivinha. Talvez da praça, talvez um vizinho amador. Em cidades de província, o menor ruído chega a toda a parte. O viajante dá mais dois passos e espreita. Sentado a uma secretária, um homem, escriturário ou sacristão, isso não veio a saber-se, faz lançamentos num grande livro e tem ao lado um pequeno transístor que é o responsável pela música, ali, enchendo a sacristia venerável de sons maliciosos e convulsivos. Já nada surpreende o viajante, porém quer averiguar por completo até onde vai a subversão, e então pergunta: Dá licença que passe uma vista de olhos? O sacristão levanta a cabeça, olha afavelmente e responde: Ora essa. Veja à vontade. E enquanto o viajante dá a volta à sacristia, examina os tectos pintados, as imagens de boa nota artística, um S. Gonçalo patusco e bem-disposto, vai o transístor chegando ao fim do rock e começa outro, até parece invenção, mas não é, são verdades inteiras, nem aparadas, nem acrescentadas. Agradece o viajante, o sacristão continua a escrever, ninguém lhes perguntou, mas ambos estão de acordo em que está um lindo dia, e a música toca. Talvez daqui a bocado dêem uma valsa». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

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terça-feira, 25 de abril de 2023

A Doçura da Chuva. Deborah Smith. «Mas dói!, soluçou Lily. A sua bata barata, às flores, estava ensopada em fluidos e amarrotada à volta das ancas. Acho que é m-mesmo assim, disse-lhe Mac. T-talvez d-devas levantar-te»

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Kara

O meu nascimento, 1974

«No mundo inocente da minha mãe, baseado nos desenhos animados das manhãs de sábado, os bebés, com faixas a dizerem o respectivo nome, flutuavam por cima de jardins coloridos ao serem entregues por uma cegonha celestial. Lily Akens não tinha motivos para duvidar da obstetrícia dos programas de televisão. O meu pai adolescente, Mac Tolbert, sabia mais do que ela, pois muitas vezes auxiliava no parto dos bezerros e dos potros em River Bluff, a quinta da sua família no Norte da Florida, mas não sabia como explicar o processo à minha mãe. Além disso, não tinha a certeza se os bebés humanos nasciam da mesma maneira que os animais.

Só podia partir do princípio de que o bebé saía pelo mesmo sítio por onde tinha entrado. Lily , L-Lily , não chchores, gaguejou Mac, ajoelhando-se a seu lado, sem saber o que fazer, na escuridão pegajosa, subtropical, enxotando os mosquitos que esvoaçavam no clarão trémulo da sua lanterna. Os pinheiros altos baloiçavam por cima deles sob a brisa do pântano. As rãs coaxavam no fundo dos ribeiros. Algures, fez-se ouvir um aligátor. As florestas escuras da Florida interior respiram e falam durante a noite, arrancando memórias misteriosas ao leito de calcário poroso. Embora longe de ambos os oceanos, o ar traz um leve vestígio de água salgada.

Mas dói!, soluçou Lily. A sua bata barata, às flores, estava ensopada em fluidos e amarrotada à volta das ancas. Acho que é m-mesmo assim, disse-lhe Mac. T-talvez d-devas levantar-te. C-como uma égua. Acho que não consigo! Oh, Mac! Dói tanto! Mac! Há qualquer coisa a querer sair de mim lá por baixo! A tremer, Mac apontou a lanterna para o meio das pernas dela. Os cavalos e os bezerros quando nasciam apresentavam em primeiro lugar as patas da frente, como se estivessem a mergulhar no mundo. Mac olhou com atenção mas não viu mãos de bebé, apenas o crânio ensanguentado de uma cabeça minúscula. A visão aterrorizou-o, mas escondeu as emoções. Tinha de ser forte, por Lily . Eles eram diferentes dos outros adolescentes; tomavam conta um do outro desde a infância. É só o b-bebé.

Parecia mais confiante do que na verdade se sentia. Sabia como dar a volta a um bezerro ou a um potro atravessado, mas não se conseguia imaginar a enfiar a mão enorme dentro de Lily. Mac! Está a mexer-se! Segurou-lhe nas mãos enquanto ela se sentava. Lily baloiçou-se para trás e para a frente. Os calcanhares dos ténis dela rasgaram sulcos no solo macio e húmido. Lily começou a gritar. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, calou-se e deixou-se cair contra Mac. O bebé caiu, gemeu ela. Porque não está a flutuar? Deve ter alguma coisa errada. Oh, Mac... O meu pai apontou de novo a lanterna para o meio das coxas dela. Ele e a minha mãe ficaram a olhar, horrorizados. Nenhum deles tinha alguma vez visto uma criança recém-nascida. Eu não era uma bonequinha engraçada ou um querubim sorridente. Estava quase roxa. Tinha a cabeça amolgada. Um muco sanguinolento colava-me ao crânio uma madeixa fina de cabelo ruivo. Abri a boca e engoli uma grande golfada de ar. Para eles, o meu esforço parecia o arquejar de um moribundo.

Debruçaram-se sobre mim e choraram. Depois a luz de várias lanternas cortou a escuridão da floresta. O irmão mais velho de Mac, Glen, foi quem os encontrou primeiro. Que raio é que vocês fizeram?, perguntou. Mac e Lily soluçaram. Antes que pudessem segurar-me nos braços uma única vez, antes de se aperceberem de que eu estava viva e era normal, fui-lhes retirada. Só depois de adulta viria a saber da existência de Mac e Lily. Só depois de adulta viria a saber que eles me tinham feito vir ao mundo nas florestas da Florida. Só depois de adulta saberia que eles me desejavam. Era já adulta e órfã quando voltei a nascer na vida dos meus pais». In Deborah Smith,  A Doçura da Chuva, Porto Editora, 2007, 2009, ISBN 978-972-004-189-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Deborah Smith, Literatura,

segunda-feira, 24 de abril de 2023

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Enquanto sacudia a areia da túnica, Johann acrescentou: O próprio pai a vendeu à dona da espelunca, apenas a uma semana da nossa chegada ao Porto»

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«(…) Konrad levantou-se de um salto, pousando os olhos esbugalhados no irmão: Ainda és mais pacóvio do que o que eu pensei, pivete! Que queres dizer com isso?, replicou Johann, enquanto se levantava. Não era de esperar uma coisa dessas? Uma rameira sabe muito bem o que tem de fazer para... Não a chames assim!, gritou-lhe o mais novo. Há três meses que ela é a minha noiva. Não me digas! E a criança também é tua? Ignorando o ferimento do irmão, Johann lançou-se a ele, que, apanhado desprevenido, caiu ao chão. Os dois rolaram sobre a areia, mas, embora Konrad não estivesse nas melhores condições, depressa forçou o outro a deitar-se de costas. Sentou-se em cima dele, como se montasse, e segurou-lhe os braços. O moço tentava libertar-se, berrando: Larga-me! Só quando prometeres respeitar o teu irmão mais velho. Onde já se viu, abalroar-me assim, sem mais nem menos? Sem mais nem menos? Não perdes uma oportunidade de insultar a Ausenda. O que tens contra a rapariga? Toda a gente sabe que ela não se meteu com mais ninguém, desde que deixou o maldito bordel. Konrad caiu em si. Ainda há poucas horas ele confirmara esta afirmação. Largou o rapaz e levantou-se, sem uma palavra. Enquanto sacudia a areia da túnica, Johann acrescentou: O próprio pai a vendeu à dona da espelunca, apenas a uma semana da nossa chegada ao Porto. Pelo jeito dela, até pode ser verdade. Mas não te deixes levar pela pena que ela... Não se trata de ter pena dela. Mesmo que não estivesse prenhe, eu ficaria aqui e casaria com ela. Santo Deus, tu és de origem nobre! Quando é que vais meter nessa tua cabeça que não podes casar com uma moça qualquer? Só podes casar com uma fidalga. O que aliás não te impede de assumires a paternidade da criança da Ausenda e sustentá-la... nem tão-pouco de teres a rapariga sempre que te apetecer...

Acaba com isso! Estou cheio de te ouvir falar dos nossos antepassados com pergaminhos. Do que é que isso me adianta? Sou tão miserável quanto a Ausenda. Recuperaremos a nossa honra na Terra Santa! Para te ser sincero, deixei de acreditar nisso. Ora essa! Porquê? Pensas que lá vai ser muito diferente daqui? Continuaremos a batalhar em cercos destes, meros instrumentos nas mãos dos poderosos! E só com muita sorte sobreviveremos à trapalhada. A nossa própria vida é a nossa única e verdadeira riqueza! Konrad respirou fundo e replicou: Eu não desistirei! Regressarei a Colónia como cavaleiro honrado e rico e vingar-me-ei de todos aqueles que nos viraram as costas!

Alimentar desejos de vingança não está de acordo com a nossa religião. Jesus Cristo era avesso a ideias dessas. Disse que nos amássemos uns aos... Não me venhas com o teu latim de convento! Como queiras, suspirou Johann e acrescentou: Faz o que achas que tens de fazer. Mas sem mim». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

 

Cortesia de Ésquilo/JDACT

 

JDACT, Cristina Torrão, História, Cultura e Conhecimento, Lisboa,

domingo, 23 de abril de 2023

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Diz lá, o que se passa? Eu sei que mal podes esperar para seguir viagem... Bem o podes dizer... conquanto sobrevivamos a esta história! Johann respirou fundo e anunciou: Não irei contigo!»

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«(…) Mas não terás febre? Com a fome que tenho?! Os outros riram-se aliviados. Muitas vezes, uma ferida aparentemente inofensiva poderia conduzir à morte, caso infectasse, alastrando o seu veneno a todo o corpo. Ausenda mexia com uma colher de pau o conteúdo de uma panela de ferro de três pernas pousada à beira do lume e Konrad perguntou: O Tomé tornou a mandar-nos sopa? Sim, respondeu a rapariga, com toucinho. Cheira tão bem! Já comiam, quando Konrad comentou: Mais uma mina que falhou. Quem haveria de dizer que os mouros resistiriam tanto tempo?, replicou Gunther. E hoje não deram só cabo do nosso túnel, acrescentou Nadwig. Também neutralizaram um ataque português à alcáçova. É mesmo?, admirou-se Konrad. Os portugueses tornaram a trepar às muralhas? Não, respondeu Johann. Desta vez atacaram a porta perto da torre da cisterna. E o que é que falhou? Ainda não sabemos, respondeu Hadwig. Mas, ou muito me engano, ou os nossos dois amigos nos virão informar, depois da ceia.

Assim aconteceu. Julião, e Tomé vinham agitados, clamando que naquele dia tinha morrido um herói! Contaram uma história curiosa sobre um grupo de portugueses que, ao notarem que os mouros tentavam fazer uma surtida pela porta da alcáçova, os atacaram. Ao verem-se descobertos, os muçulmanos logo regressaram ao seu refúgio. E preparavam-se para fechar a porta, quando um cavaleiro português, de nome Martim Moniz, não se conformando com o desfecho da refrega, se precipitou sozinho para o meio dos infiéis. Ao mesmo tempo que lutava com uma horda deles, assim contavam Julião e Tomé, atravessou-se na porta, impedindo que esta se fechasse e permitindo que alguns dos seus companheiros entrassem na alcáçova...

Acabou por morrer esmagado. E os portugueses que já haviam entrado não tiveram muito melhor sorte. O seu acto, porém, juravam Julião e Tomé, servia de exemplo a todos os guerreiros. Os dois estavam convencidos de que, durante todo o cerco, ainda não tinha havido um herói como Martim Moniz!

A Konrad, que naquele dia também enfrentara perigos, salvando vários companheiros da morte certa, não lhe apetecia continuar a ouvir os elogios com que os dois portugueses enchiam o tal cavaleiro. Sentindo-se com forças, depois de matar a fome, levantou-se, lançou a sua capa pelos ombros e, com o punhal enfiado no cinto, caminhou até à margem do rio. Preparava-se para se sentar na areia, quando olhou para a sua direita. Archotes iluminavam o cimo das muralhas, junto à Porta de al-hammã.

De novo atingido por aquela atracção estranha, foi-se aproximando da cidade. Apercebia-se dos movimentos das sentinelas mouras, mas a escuridão à sua volta impedia que o inimigo o descobrisse. Quando se encontrava a uns cinquenta passos de distância da Porta de al-hammã, sentou-se no chão.

Apesar de, ao contrário dos seus companheiros, não acreditar no tesouro subterrâneo, não se conseguia livrar do pressentimento de que esta cidade tinha algo de importante para lhe oferecer. Tinha quase a certeza de que um dia atravessaria uma das portas de Lusbuna, a fim de encontrar algo que lhe pertenceria! Mas o quê? Esta ideia era tão absurda, porquanto ele considerava este cerco uma perda de tempo que o impedia de alcançar a Terra Santa.

Nesta noite, sentado sozinho no meio da escuridão, estes pressentimentos iam ainda mais longe: algo lhe dizia que ele não mais deixaria Portugal! Os cabelos da nuca arrepiaram-se-lhe, pois só encontrava uma explicação para isso: acabaria no cemitério dos cruzados alemães e flamengos, na colina a leste de Lusbuna!

Ouviu passos atrás de si e pôs-se de pé num salto, enquanto desembainhava o punhal. Mas deparou apenas com Johann. Que estranho o rapaz vir ter com ele! À noite, não se separava nunca da sua amada Ausenda. Preciso de falar contigo, anunciou Johann, de olhos postos no chão. Desconfiado, Konrad tomou a sentar-se, no que foi seguido pelo irmão. Esperava pelas palavras do rapaz, mas este emudeceu, enquanto fazia desenhos na areia com um pauzito. Ausenda ter-se-ia queixado? Konrad amaldiçoou-se por aquele seu momento de fraqueza. A última coisa que pretendia, seria causar um desgosto ao Johann. Mas responderia pelo seu acto e, como o rapaz não se resolvia a falar, ele decidiu encorajá-lo:

Diz lá, o que se passa? Eu sei que mal podes esperar para seguir viagem... Bem o podes dizer... conquanto sobrevivamos a esta história! Johann respirou fundo e anunciou:  Não irei contigo! Que estás para aí a dizer? O rapaz pousou finalmente os olhos castanho-claros nos do irmão e insistiu: Ficarei aqui. Depois de uma curta hesitação, Konrad inquiriu: Mas porquê? Disse ou... fiz alguma coisa que te aborrecesse? Johann olhou-o cheio de espanto: Tu? Não, que ideia. Tem mais a ver com a Ausenda. Pensei em levá-la comigo, mas... A viagem seria perigosa demais para ela...

Perigosa? Ela é magrinha, mas rija. É das poucas pessoas em todo o acampamento que ainda não teve que se ver com uma diarreia das fortes. Não me deixaste acabar. Ela... está prenhe!» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

 

Cortesia de Ésquilo/JDACT

 

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1Q84. Haruki Murakami. «Tengo pensou no que acabara de ouvir. Precisava admitir que de alguma forma Komatsu tinha razão. Afinal, era a intuição de um editor. Mas não seria nada mau dar uma chance a ela, não acha?»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Você me pediu para aguardar com expectativa a próxima obra, disse Komatsu. É claro que eu gostaria de ter essa expectativa. Não há nada mais gratificante para um editor do que criar com carinho um jovem escritor dando-lhe tempo. É emocionante ser o primeiro a descobrir uma estrela nova numa noite de céu límpido. Mas, sinceramente, acho difícil essa garota ter uma segunda chance. Vivo nesse mundo literário há vinte anos. Vi muitos escritores surgindo e desaparecendo. Por isso, posso dizer que aprendi a discernir aqueles que vão vingar daqueles que não. Eu diria que essa garota não terá uma próxima vez. Sinto muito dizer isso, mas não vai ter a próxima nem a próxima da próxima. Para começar, não é uma questão de tempo e estudo o que irá melhorar o texto. Por mais que se espere, a espera será em vão. Sabe porquê? Porque essa pessoa não tem nenhuma gota de vontade de escrever um texto bom, um texto benfeito. Só há duas maneiras de uma pessoa escrever bem: ou ela já nasce com esse talento literário ou ela precisa se empenhar, e muito, para conseguir aprimorar a redacção. E essa garota chamada Fukaeri não se enquadra em nenhuma dessas possibilidades. Como mesmo deve ter notado, ela não tem vocação e, pelo visto, não tem também vontade de se esforçar para tal. Não sei dizer-te o porquê disso. Mas me parece que ela não tem nenhum interesse pela escrita. Só que uma coisa é certa: vontade de contar uma história ela tem. E essa vontade é extremamente forte. Isso eu tenho que reconhecer. E foi essa vontade, expressa de forma espontânea, que te fisgou e igualmente me fez ler a história até ao fim. De certa forma, é realmente admirável. Mas, apesar disso, como escritora, ela não tem futuro. As chances de vingar como escritora são praticamente nulas. Sei que estou decepcionando, mas essa é a minha opinião.

Tengo pensou no que acabara de ouvir. Precisava admitir que de alguma forma Komatsu tinha razão. Afinal, era a intuição de um editor. Mas não seria nada mau dar uma chance a ela, não acha?, perguntou Tengo. Quer dizer, jogá-la na água para ver se ela nada ou afunda? Simplificando, é isso. Até hoje, fui responsável pela morte literária de muita gente. Não quero ver mais gente se afogando. E a minha situação? Você pelo menos está se esforçando, disse Komatsu, escolhendo as palavras. Para mim, é uma qualidade. Você tem uma postura extremamente humilde em relação ao acto de escrever. Sabe porquê? Porque você gosta de escrever. Isso também é algo que valorizo em você. Gostar de escrever é muito importante para quem quer se tornar um escritor, sabia? Mas isso não é tudo.

É claro que não é tudo. É preciso ter algo especial. Eu sou da opinião de que uma obra precisa, no mínimo, ter algo de imprevisível. O que mais valorizo, especialmente num romance, são essas coisas que eu não consigo prever. Quando leio algo que facilmente consigo desvendar, perco totalmente o interesse. Parece óbvio, não parece? Nada mais natural». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-053-4.

Cortesia de CasadasLetras/JDACT

Haruki Murakami, Literatura, JDACT,

sábado, 22 de abril de 2023

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Logo que se distanciaram, o detetive não aguentou: Nenhum ladrão jogaria fora essa bolsa sem pegar o dinheiro. Certas intuições não se traduzem facilmente em palavras»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sua exclamação foi espontânea e demonstrava preocupação: O barrete vermelho! Mas, tecido de cor púrpura!?... O inspector ficou intrigado com aquela reacção. Isso lhe diz alguma coisa? Maurício não respondeu e, com a ponta do cajado, levantou o tecido e o examinou. Material antigo. Trouxe para mais perto do rosto. Cheiro de mofo, corte feito com faca. Não foi tesoura. Os dois o olhavam, intrigados. A senhora tem certeza de que esses objetos não estavam aí quando saiu do carro? Sim, tenho. Nunca tinha visto isso antes. Será que o ladrão estava fugindo e deixou essas coisas?

Não seria muita esperteza da parte dele esconder o resultado de um furto dentro do carro que acabava de assaltar, penso eu. O inspetor deu o seu palpite. De facto, não faz sentido. A dúvida é se ele abriu o vidro para roubar a bolsa e aproveitou para deixar esses objectos ou se, ao contrário, queria desfazer-se deles e aproveitou para levar a bolsa. Nessa hipótese, deve ter cometido outro assalto antes de chegar aqui.

O zelador de Eunate vinha chegando e o inspector pediu um saco plástico para guardar os dois objectos. Ele se comportava como se não tivesse gostado de Maurício ter interrogado a mulher e procurava agora tomar iniciativas. Para Maurício, porém, aquilo não fora um simples roubo. O inspector tentava acalmar a mulher. Assim que a viatura chegar, a senhora poderá formalizar a ocorrência e serão tomadas as providências para encontrar a bolsa com os seus documentos.

Maurício olhou mais uma vez para o saco plástico e depois se aproximou do carro. Uma ideia, que de início achou absurda, começou a tomar vulto e ele se voltou para a comprida alameda que vinha da rodovia até o estacionamento. Esse assassino pode ter feito isso, sim, pode ter feito.

Enquanto o inspector tranquilizava a mulher, ele começou a caminhar pela alameda, examinando os arbustos e as árvores que ladeavam o asfalto. O inspector o observava, inquieto, com receio de ser desprestigiado. A mulher parara de falar e pouco depois eles o viram agachar-se perto de uma árvore e pegar um objecto que de longe parecia uma bolsa.

Lá do outro lado da alameda, despontou uma viatura policial que chegou até o pátio de estacionamento. Maurício começou a voltar, tão devagar quanto tinha ido, e trazia na mão uma bolsa de tamanho médio, de couro, parda, que entregou à mulher. Mas, essa é minha bolsa! Como o senhor sabia que ela estava escondida perto das árvores? O ladrão devia estar de motocicleta. A bolsa é meio grande e seria um estorvo. Imaginei que ele a jogaria em algum lugar próximo daqui. Acredito que não teve tempo para retirar qualquer coisa.

A mulher abriu a bolsa e sorriu aliviada. O dinheiro e os documentos estavam ainda lá. Era uma situação desconcertante para o inspector, que se lembrava do desempenho de Maurício em Roncesvalles e que agora, como num passe de mágica, devolvia os pertences da mulher. Entretanto, ficou agradecido por ele não dizer mais nada na frente dela e dos policiais, que a acompanharam à delegacia, levando o saco plástico contendo os objectos encontrados no carro.

Logo que se distanciaram, o detetive não aguentou: Nenhum ladrão jogaria fora essa bolsa sem pegar o dinheiro. Certas intuições não se traduzem facilmente em palavras. Era preciso cuidado para explicar a esse policial que a mulher tinha razão quando lembrou que aquilo parecia feitiçaria. Um ladrão não deixa no lugar do roubo dois objectos emblemáticos como aquele barrete e o tecido purpúreo.

A lógica não cria um conhecimento novo, como a botânica ou a química. Ela apenas se aproveita de dados já existentes. No caso desse estranho roubo, cheguei à conclusão de que a bolsa não era o objectivo do ladrão, que queria apenas completar o serviço de Roncesvalles. O policial quase caiu ao se virar bruscamente para interrogá-lo». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

 Cortesia de GEditorial/JDACT

 

JDACT, Santiago de Compostela, Cultura, AJ Barros, Literatura, 

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Olhem que coisa mais esquisita! Levaram a minha bolsa e deixaram isso aí. Parece coisa de feitiçaria. A porta estava semi-aberta e o inspector examinou o carro, não dando muita importância às reclamações da mulher…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No românico, o homem fica na escuridão e Deus desce até ele. No gótico, é o homem que se eleva até à presença de Deus, através da luz que inunda o ambiente. O que será que poderia estar por trás dessa pregação?, pensou Maurício, olhando no alto do morro o pequeno vilarejo de Obanos.

Obanos foi palco de um dos mais tristes episódios da história do Caminho. Por coincidência, naquele dia, o vilarejo fazia uma representação teatral do misterioso drama dos irmãos Felícia e Guilherme, filhos do duque de Aquitânia. Eis aí outro mistério inacessível do passado, voltou o inspector, com suas infelizes explicações. A Igreja transformou assassinos em santos e deu a reis poderes para governar os céus, canonizando muitos deles. O assassinato de Felícia pelo seu irmão é outra curiosidade. Se ele fosse um plebeu, seria enforcado, mas Guilherme era o poderoso duque de Aquitânia e, então, virou santo.

Depois de peregrinar a Santiago, Felícia abdicou das riquezas, preferindo ficar em Obanos para se dedicar aos pobres e aos peregrinos. Seu irmão Guilherme tentou convencê-la a voltar para se ocupar do palácio, mas diante da resistência da irmã ficou tão indignado, que a degolou, num gesto impensado do qual se arrependeu. Cheio de remorsos, fez a peregrinação e mandou construir a Ermida de Arnotegui, perto de Obanos, conhecida como Ermida de São Guilherme. Felícia foi santificada e seu túmulo fica na cidade de Labiano, nas imediações de Pamplona. Guilherme passou o resto dos seus dias acudindo peregrinos e ajudando os pobres.

Chegaram ao centro da cidade onde dois enormes bonecos na frente da igreja simbolizavam Felícia e Guilherme. Entraram num bar, tomaram água e café e descansaram um pouco para continuar até a ermida de Nossa Senhora de Eunate. Quem vem de Roncesvalles, precisa andar mais uns três quilómetros até esse misterioso templo cuja visita é obrigatória.

O Caminho tem dois pontos de origem. Um deles é a cidade de Saint-Jean-Pied-de-Port, onde começa o chamado Caminho francês, que passa por Roncesvalles; o outro é o alto de Somport, de onde sai o Caminho aragonês, assim chamado por causa do rio Aragão. Em Puente la Reina, os dois se encontram e o Caminho continua num único trajecto. Na peregrinação anterior, Maurício tinha tomado um táxi em Puente la Reina para voltar a Somport e fazer também esse trajecto a pé, mas agora não estava disposto a tanto.

Já eram duas horas daquela tarde de sol inclemente e sentia-se reconfortado por estar equipado de óculos escuros, mangas compridas e filtro solar nas partes expostas, apesar de as plantas dos pés arderem sobre o solo quente.

A igreja de Eunate, que em euskera significa cem portas, dá aos adeptos do esoterismo razões para longos estudos. Sua arquitectura evoca mistérios do Além. Vestígios de construções anteriores mostram sucessivos elementos octogonais em volta de um ponto central e teria sido construída inicialmente como túmulo para uma misteriosa rainha que ninguém sabe de onde viera.

Sua estrutura é similar à do Santo Sepulcro, com o quadrado indicando a ordem terrestre e o círculo simbolizando a vida eterna, e por isso chamou a atenção dos iniciados em ciências secretas. Era impossível ver aquela construção e não se lembrar dos Cavaleiros Templários e sua lendária existência. O senhor está vendo aquela figura esquisita? Aquele é o bafomet. Figuras de seres estranhos rodeavam o beiral, e o inspector apontava para uma delas.

Veja o senhor que injustiça o papa fez com os templários. Eles foram os criadores do gótico a partir dos estudos que fizeram do Templo de Salomão e introduziram essas gárgulas como canaletas para escoamento de água. Para acusá-los, inventaram que o bafomet era o Diabo e que os templários o adoravam.

Maurício procurava ser cortês e o inspector entendia essa cortesia como uma demonstração de interesse. Ele dava voltas para chegar ao assunto principal, como se quisesse pegar o interlocutor de surpresa, e trouxe do fundo dos séculos um dos temas mais delicados da história do catolicismo. A Igreja não poupava os inocentes, quando eles ameaçavam o seu poder. Veja o que aconteceu com os cátaros. Eles eram considerados hereges apenas porque praticavam um cristianismo puro e por isso o papa lançou contra eles uma Cruzada, a chamada Cruzada Albigense. Sabe qual era o crime dos cátaros? Eles viviam bem no centro da peregrinação, em torno da cidade de Albi.

Acabaram de dar a volta da igreja e estavam diante da entrada principal, admirando a simetria da construção. O senhor vai passar por Estella. Não deixe de notar o erotismo disfarçado que brota da cena em que o Sagitário aponta sua flecha para o umbigo de uma sereia, na igreja de São Pedro de la Rua. Bafomet, umbigo de sereia, cátaros! O que estaria por trás dessas observações extemporâneas?, pensava Maurício, mas nesse momento uma senhora chegou correndo, assustada. Ela estacionara o carro para visitar a igreja e, quando voltou, o vidro à direita do motorista estava aberto e uma bolsa que tinha deixado no banco da frente desaparecera. O inspector se identificou e foram até ao veículo.

Olhem que coisa mais esquisita! Levaram a minha bolsa e deixaram isso aí. Parece coisa de feitiçaria. A porta estava semi-aberta e o inspector examinou o carro, não dando muita importância às reclamações da mulher, que se lamentava por ter ficado sem documentos e dinheiro. Em seguida, ligou pelo telemóvel para o posto policial mais próximo, o de Puente la Reina.

Maurício tinha ficado afastado porque era assunto para o inspector, mas a mulher abriu toda a porta para revistar melhor o carro, na esperança de encontrar a bolsa, e ele pôde ver os objectos que estavam no banco dianteiro do motorista». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT

 

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O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Felizmente, o mundo não acabou com o fim do milénio, mas o poder religioso se consolidara, e igrejas e monumentos continuaram sendo construídos em toda a Europa como prova de devoção…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ao descerem o Monte dei Perdon, o detective fez um comentário enigmático. O Caminho é uma homenagem à morte e ao sofrimento. O senhor já fez o Caminho? É o lugar predilecto das minhas férias. Já fiz o trajecto de Roncesvalles a Santiago onze vezes. Onze vezes!, exclamou Maurício, impressionado. Sim. Onze vezes. Mas não foi só a passeio. Minha mulher é professora de arquitectura e defendeu tese de mestrado sobre a influência muçulmana na construção das igrejas do Caminho. A primeira vez que fiz o Caminho tinha dezoito anos. Éramos um grupo de universitários fazendo pesquisas para trabalho escolar. Naquela época o percurso era mal sinalizado e havia menos peregrinos.

Apoiando-se no cajado para não escorregar no terreno pedregoso da descida, trocavam opiniões sobre a influência que a simples descoberta de um túmulo teve sobre a humanidade. Calcula-se que durante o período que vai do século X ao XIV aproximadamente quinhentos mil pessoas desciam anualmente de todos os cantos da Europa para visitar as relíquias de São Tiago.

Minha mulher diz que o Caminho foi um fenómeno histórico e histérico ao mesmo tempo. Ainda hoje, para quem o faz, o Caminho é uma coisa inexplicável e inesquecível. Dois conceitos interessantes. Gostei. O albergue! O albergue criou o Caminho, marcou o seu trajecto e recebia os peregrinos que passaram a ter onde repousar e se recuperar para enfrentar a jornada seguinte. É bem possível que tenha razão. Deve-se ao albergue a definição do Caminho.

Uma das coisas que mais me impressionam é a importância do Caminho para o progresso da humanidade. Progresso da humanidade?, os pensamentos de Maurício se afastavam para outro raciocínio e a pergunta não saiu com naturalidade.

Mas é claro! Enquanto os cristãos viviam obcecados pelo medo do inferno, os árabes avançaram nos estudos da matemática, da física, da arquitectura, filosofia, literatura, medicina e astronomia. Quando invadiram a Península Ibérica, em 711, textos de Sócrates, Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Hipócrates, Galeno e grandes médicos árabes, como Avicena e Ali Abbas, escritos em árabe e hebreu, vieram para a Espanha. Com a reconquista da cidade de Toledo em 1085, esses textos chamaram a atenção de cristãos e judeus. O bispo da época criou um grupo de tradutores que ficou conhecido como Escola de Tradutores de Toledo.

Como um arauto de toda a sabedoria da Idade Média, ele parou e virou-se para Maurício: Entendeu agora? Ao chegarem à Península Ibérica os peregrinos entravam em contacto com essas traduções e as levavam de volta para Paris, Roma, Amsterdão e outros centros europeus. A cultura clássica havia desaparecido e o Caminho a ressuscitou.

De facto, a Escola de Tradutores provocou uma revolução cultural no continente. Um peregrino levava na mochila uma tradução de Sócrates, outro, de Platão, e assim a Europa recompôs a cultura clássica. Sob esse aspecto, é inegável o mérito da peregrinação. Não podemos esquecer que o cristianismo deteve o progresso da humanidade por mais de mil anos e, se não fosse o Caminho, esse atraso seria maior.

A queda do Império Romano deixara a Europa sem lei e sem ordem. Não havia mais uma força organizada para proteger a ordem pública, e o comércio e a vida urbana enfraqueceram. Consequentemente, escolas e actividades culturais também diminuíram e o que restou girava em torno do cristianismo. Havia a crença de que o mundo desapareceria no fim do primeiro milénio e, então, reis e nobres começaram a construir igrejas, para serem enterrados dentro delas. Acreditavam que, assim, ficavam mais perto de Deus.

Felizmente, o mundo não acabou com o fim do milénio, mas o poder religioso se consolidara, e igrejas e monumentos continuaram sendo construídos em toda a Europa como prova de devoção, levando catedrais e mosteiros a concorrer em grandiosidade para atrair peregrinos e doações.

Até então, as igrejas eram construções menores e os grandes templos foram um desafio novo que levou os construtores a buscarem inspiração nos edifícios de Roma, dando origem ao estilo que passou a chamar-se românico.

Não se aborreça com minhas explicações, pois elas são importantes para se entender o Caminho. A quantidade de monumentos românicos forma uma rica esteira de arte. O estilo românico se aperfeiçoou e surgiu o arco de tensão, em que uma pedra se apoia noutra, possibilitando maior abertura dos vãos e dando origem ao estilo gótico, que permitiu naves mais altas e janelas maiores com vitrais coloridos, trazendo a luminosidade para dentro das igrejas.

Maurício tinha por hábito tentar descobrir o que de mais sério poderia existir dentro de uma conversa simples. Inquietava-o que um policial graduado, envolvido numa investigação de crimes misteriosos, perdesse tempo em tantas divagações. Não simpatizava com aquele homem, não o conhecia e estranhava o diálogo.

Aliás, os dois estilos mostram maneiras diferentes de se ver Deus. Sim, é verdade! No românico, o interior das igrejas tem pouca luz, para que a pessoa medite e sinta a plena força da divindade. Já o gótico é alegre, nele as janelas são maiores, e a claridade mostra o ser humano como parte da divindade». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT

 

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A Herança Messiânica. Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin. «Nem a televisão nem as empresas editoriais ficaram cegas para as possibilidades. Desde 1982, vários novos livros foram lançados. Em 1983, The ilIusionist, um romance de Anita Mason, propôs uma perspectiva controversa…»

Cortesia de wikipedia e jdact

 «(…) Ainda assim, há sinais de que a situação começa a mudar lentamente. Pode ser, é claro, que esses sinais sejam enganosos ou ilusórios, e que o pêndulo volte a oscilar em favor da fé simples, e que os frutos dos estudos históricos continuem a ser ignorados ou silenciados. Nesse aspecto, o contágio do fundamentalismo norte-americano é sem dúvida um mau agouro. Seja como for, há no ar diferentes sinais de melhora, numerosos a ponto de corresponder, em escala modesta, a uma espécie de Zeitaeist, um espírito, ou corrente, ou movimento que se espalha pelo mundo.

Durante os anos em que fizemos nossa pesquisa, muitas outras publicações já estavam em circulação, ajudando a criar um clima favorável. Na década de 1970, pelo menos dois romances, um deles um trabalho literário sério, bem-visto pela crítica, partiram da hipótese da descoberta do corpo mumificado de Jesus. Outro romance popular pôs os Evangelhos em questão, sugerindo a existência de um novo corpus de relatos bíblicos de primeira mão, e este livro foi transformado numa minissérie de televisão. Em sua monumental obra Terra nostra, certamente um dos doze mais importantes romances publicados em qualquer língua desde a Segunda Guerra Mundial, o respeitado romancista mexicano Carlos Fuentes descreve como Jesus escapou da morte por meio de uma crucificação fraudulenta, envolvendo um substituto. Pelo menos um romance, Magdalene, de Carolyn Slaughter, apresenta Madalena como amante de Jesus. E Liz Greene, inspirando-se na nossa própria pesquisa, escreveu sobre uma linhagem que descenderia de Jesus em The Dreamer of the Vine, um romance sobre Nostradamus publicado em 1980.

No que diz respeito a trabalhos mais académicos, os manuscritos de Nag Hammadi foram publicados pela primeira vez em tradução inglesa em 1977 e, em menos de dois anos, inspiraram o best-seller de Elaine Pagel, The Gnostic Gospels. Morton Smith, que havia divulgado seus achados sobre a Igreja primitiva em The Secret Gospel, traçou em seguida um controverso retrato de Jesus em Jesus the Magician. Haim Maccoby voltou sua atenção para o Jesus histórico em Revolution in Judaea e o mesmo fez Geza Vermes em obras como Jesus the Jew. A série de estudos que Hugh Schonfield está desenvolvendo sobre a Palestina do século I foi sendo publicada a intervalos regulares ao longo da década de 1970. Num nível teológico, alguns clérigos anglicanos suscitaram considerável controvérsia ao pôr em questão a divindade de Jesus numa coletânea de ensaios, The Myth of God lncarnate. Por fim, merece menção The Jesus ScroIl, da autoria do australiano Donovan Joyce, um livro curioso, sem respaldo nos factos, mas fascinante.

Assim, em 1982, quando O santo graal e a linhagem sagrada foi publicado, as águas já haviam sido agitadas por uma onda recente de elementos relativos ao Jesus histórico. É verdade que muita gente ainda não sabe sequer em que medida, por exemplo, os Evangelhos se contradizem entre si. Ou que há outros Evangelhos além dos que constam do Novo Testamento, que foram excluídos do cânon de maneira mais ou menos arbitrária por concílios compostos de homens obviamente mortais, obviamente falíveis. Ou que a divindade de Jesus foi decidida pelo voto no Concílio de Nicéia, cerca de três séculos depois da morte do próprio Jesus. É verdade também que o fundamentalismo continua fanático nos Estados Unidos. E, como observamos antes, ainda há na Grã-Bretanha pessoas capazes de atribuir um incêndio provocado por um raio em York à ira de Deus provocada pela nomeação de um bispo um tanto boquirroto, como se, em meio à violência, à animosidade, ao preconceito, à insensibilidade e aos perigos do mundo moderno, Deus não tivesse mais nada com que se preocupar, nada de melhor para fazer com Seus recursos. E quando esse mesmo bispo faz uma declaração tão óbvia, tão corriqueira, como a de que a Ressurreição não pode ser cabalmente provada, ainda há quem grite blasfêmia ou heresia e peça seu afastamento. Seja como for, há alguma coisa no ar, da qual o próprio bispo é uma manifestação.

Seria falso de nossa parte afectar ignorância quanto ao impacto causado por nosso livro, tanto em vendas como em controvérsia. Pela primeira vez, desde Passo ver Plot, de Hugh Schonfield, de 1963, algumas questões relativas ao Novo Testamento, a Jesus e à origem do cristianismo foram levantadas para o público leitor em geral, para o chamado mercado de massa, e não para um punhado de especialistas académicos e teólogos. E ficou patente que o grande público leitor estava não só preparado, mas positivamente ávido por ouvir.

Nem a televisão nem as empresas editoriais ficaram cegas para as possibilidades. Desde 1982, vários novos livros foram lançados. Em 1983, The ilIusionist, um romance de Anita Mason, propôs uma perspectiva controversa mas historicamente válida sobre a consolidação da Igreja primitiva; foi incluído na lista final de indicações para o Booker Prize, o mais prestigioso prêmio literário da Grã-Bretanha. Em 1985, Anthony Burgess, de maneira talvez ainda mais controversa, explorou quase o mesmo território em The Kingdom of the Wicked. Uma tempestade incipiente foi provocada pelo romance de Michele Roberts, The Wild Girl. Inspirando-se, como nós, em dados dos manuscritos de Nag Hammadi, Michele Roberts apresenta Madalena como amante de Jesus e mãe de seu filho. Publicado em brochura em 1985, The Wild Girl provocou medonhas fulminações, não somente de grupos de pressão, como era previsível, mas também de um pretenso Torquemada com assento no Parlamento; até que avaliações bem mais lúcidas tivessem conseguido se impor, o livro ficou sob a ameaça de acção penal nos termos da antediluviana lei britânica da blasfêmia». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN 978-852-008-568-5.

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 JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Crónica,