terça-feira, 31 de maio de 2022

No 31. A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… cadeiras de couro, tapeçarias ricas, panejamentos de seda e ouro..., como para rei, dizia a rir Carlo e Vittorio fazia vénia solene: ... além de que, dizia, Vossa Senhoria está a dois passos do Vaticano e de Sua Santidade...»

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O Sósia

«(…) Que me quereis falar recebia-o o sacerdote na sacristia da Annunziata dei Catalani, enquanto, de costas, se desparamentava. Sou português disse-lhe. Venho do Sinai, onde estive muitos anos em penitência e desejava enviar um mensageiro ao meu país. Disseram-me que vós... Estranha coisa essa!, virou-se para mim. Há muito tempo que ninguém tem vindo reclamar os meus serviços. A última vez foi há bons anos, recado de um nobre português que andava incógnito pela Europa e na sua terra todos julgavam morto naquela batalha do Norte de África...

Era um franciscano baixo, gordo, o semblante invulgarmente agradável, com perpétuo sorriso nos olhos e na boca, mesmo quando acrescentava que tinha tanto ódio aos Espanhóis, que ocupavam a sua pátria... também a minha. ... basta seres português para eu me pôr ao teu serviço. És capaz de guardar um segredo? Darei a vida pelos segredos que guardo. Mas sou homem prático. Ajoelha-te aqui... e, sentando-se num cadeiral iluminado pelo vitral da janela, dispôs-se a ouvir-me em confissão. Daí a meia hora, o frade, a pé, guiava pela toa o jumento em que eu ia montado, pelas ruas da cidade, por entre rebanhos de cabras, mulheres que subiam do porto com canastras de peixe à cabeça e filhos agarrados às saias, ladeando pomares de fruto de espinho, à vista do mar muito azul ponteado de ilhotas, lá em baixo a costa rochosa recortada de abras acolhedoras e, da outra banda do estreito, as terras da Calábria dominadas pelo Aspromonte.

Aqui vai nos lombos de um asno, pendurado no sorriso de um franciscano e nos sonhos do desarrependimento, olhando o fuminho anilado e distante de Lo Stromboli como se fora o seu pensamento, o rei de Portugal. É longe? Aí já adiante. Parámos à porta de uma casa de um só piso, na sombra de um limoeiro. O frade bateu: Túlio! Paola! Não tardou que assomasse à entrada uma mulher muito formosa e não me puderam os olhos desafeiçoados e o sentimento desafeito deixar de atentar-lhe na cintura delgada a relevar-lhe o redondo das ancas e na tumescência do peito moldada no corpete encarnado sob a camisa branca. Ah! Fra Raimundo! Entrai. Meu marido anda lá atrás com a filha a colher laranjas. Entrai. E, como me fitasse curiosa de saber quem eu fosse, Um amigo português, disse o frade. A senhora Paola Galardetta. Entrámos na peugada da anfitriã e atravessámos a sala e a cozinha para as traseiras. Marco Túlio Catizone, ia explicando Frei Raimundo, é um dos meus mensageiros. Calabrês de nação, casado com Paola Gallardeta. O homem que procurais, o mais apto e indicado para o que pretendeis.

Marco, chama a mulher, anda cá. Tens visitas. Ele surgiu do fundo da cortinha acompanhado de uma moça de seus dezoito anos, muito esbelta, com uma cesta cheia de laranjas e tangerinas: Fra Raimondo, a que devo a honra...? Marco Túlio era um homem da minha idade, da minha estatura, da minha compleição. Os cabelos negros e a tez morena contrastavam com a minha pele branca e cabeleira loira. Todavia as feições, não fora a cara rapada, incrivelmente semelhantes às minhas..., a expressão dos olhos, a testa alta, a arcada do queixo..., se ele deixasse crescer a barba, talhada como a minha, pensei, bem poderia ter eu ali um sósia... Não sei porque me veio isso à ideia, mas dei-me conta, não sem algum rebate, de que, a um certo ponto a esta parte, desde que abandonei a Terra Santa, me andava a imaginação perigosamente insofreada. Resolvi haver sobre mim o necessário açaimo, tanta dolorosa desconfiança tinha, depois dos últimos vinte anos de amargas e mortificadas experiências, do meu pendor.

Levantava-se do mar uma aragem que nos arrepiava a pele. Marco Túlio levou-nos para dentro, assentámo-nos os três a uma mesa e, enquanto comíamos do pão e bebíamos do vinho que Paola e a filha nos serviram, falámos do que ali me trouxera. Eu tinha a intenção de ir a Roma falar com o papa Clemente, mas necessitava, antes, de dois serviços dos amigos: que Túlio partisse para Portugal com cartas minhas endereçadas a certos senhores, a anunciar o meu regresso, e Frei Raimundo diligenciasse contratar-me dois criados convenientes a meu estado. Se eu não tivesse de ajudar-vos no primeiro serviço disse o calabrês, bem gostava de vos ser prestimoso no segundo. O franciscano não demorou a encontrar-me os dois pajens, que reputava pessoas da máxima discrição, e, levados a cabo todos os preparativos, Marco Túlio abalou para Portugal e eu, com Carlo e Vittorio, embarquei para Roma. A pensar na audiência de Sua Santidade, procurei dar dignidade à minha reduzida comitiva, mas Carlo, de espírito faceto, para ele tudo era riso, como eu agora também ia compreendendo a comédia humana!, e Vittorio, dissimulado, pelo excesso de cerimónia tornava-se ridículo. Como não tinha mordomo a quem incumbisse da tarefa de os moldar, não sabia que havia de fazer, mas os sucessos futuros encarregaram-se de me dar a conhecer quem tinha a meu serviço. Mal chegámos, tomámos aposentadoria na Ostaria dell'Orso, próximo da ponte de Santo Angelo. Bons cómodos em quadra com quatro câmaras, sala de estar, sala de refeições, cozinha com cozinheiro às ordens, mobiliário a preceito, cadeiras de couro, tapeçarias ricas, panejamentos de seda e ouro..., como para rei, dizia a rir Carlo e Vittorio fazia vénia solene: ... além de que, dizia, Vossa Senhoria está a dois passos do Vaticano e de Sua Santidade...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

No 31. La Puta de Babilonia. Fernando Vallejo. «Muy bien puesto el nombre: como dedo en culo, como anillo en dedo de cardenal. Pero no únicamente para ese período. Para toda la Historia de la Puta!»

Cortesia de wiukipedia e jdact

«(…) El Tribunal de la Historia, que juzga pero no castiga, registó sus primeras palabras como papa, dirigidas en ese instante a su primo, alborozado: Ahora sí que voy a gozar. Las noventa y cinco iracundas tesis de Lutero no le hicieron mella. Era un espíritu feliz, en las antípodas del agriado Pablo IV de nuestros días, y sólo mató a un cardenal: al pérfido Alfonso Petrucci de Siena, quien en un complot con otros cuatro purpurados lo quería envenenar contra natura, haciendo de una salida entrada: le habían dado al médico toscano Battista de Vercelli la consigna de aplicarle a Su Santidad, con el pretexto de tratarle la úlcera, un tósigo maquiavélico, florentino, por el antifonario. No se les hizo. El papa descubrió la conjuración, ejecutó a Petrucci, puso a pudrirse en la cárcel a los otros cuatro cardenales y vivió varios años más, feliz, con la conciencia tranquila y disfrutando de lo que Juan Pablo II llamaba hace poco, en pleno epicentro del sida en África Central, el banquete de la vida, hasta que lo llamó doña Muerte a su banquete de gusanos: como a tantos otros papas que lo precedieron o siguieron, le mandó en el verano sofocante de Roma una cattiva zanzara que le inoculó la malaria. Pero para terminar con Inocencio VIII, fue este otro maestro de la simonía el del acierto de llamar Reyes Católicos a Fernando e Isabel, los de España. Qué menos para un matrimonio que persiguió a moros y judíos, que fundó la Inquisición (maldita) española y que patrocinó a Torquemada! De los miles y miles de inocentes que este dominico vesánico torturó y quemó, ellos en última instancia son los responsables, por ellos se fueron derechito al cielo.

Tras Beziers cayó Carcasona, donde Amalrico hizo conde de la ciudad a un veterano de la Cuarta Cruzada, Simón de Montfort, entregándole de paso el mando del heterogéneo ejército con la recomendación de que tratara a toda la Occitania como tierra de herejes y se sintiera libre de exterminar a cuantos quisiera sin tomar prisioneros. Consejo que en un principio el flamante conde no siguió: en Bram no mató ni uno, a todos los cegó. O mejor dicho a todos menos a uno que dejó tuerto para que con su único ojo pudiera guiar hasta Cabaret al resto, la columna de ciegos que avanzaba así: el ciego de atrás con las manos puestas sobre los hombros del ciego de delante, y delante de todos el tuerto, de suerte que a la vista del ciempiés alucinante les acometiera a los enemigos de Inocencio el saludable temor a Dios. Cuarenta y ocho años tenía entonces este pontífice que había sido elegido a los 37, a la misma edad de Giovanni de Médicis: pocos comparados con los 78 a que se encaramó al trono de Pedro nuestro actual Benedicto XVI, pero muchos frente a los 20 a que fue elegido Juan XI, o los 16 a que fue elegido Juan XII, y ni se diga los 11 a que fue elegido Benedicto IX, el Mozart o Rimbaud de los papas. Qué precocidad! Y dejen la religiosa, la sexual! Todavía con su aguda voz infantil con que entonaba latines, su impúber Santidad ya andaba detrás de las damas. No haber vivido yo en su Roma para acogerlo con el precepto evangélico Dejad que los niños vengan a mí! Qué íntimas cuerdecitas no le habría pulsado a ese laúd!

Benedicto IX (nombre de pila Teofilacto) era sobrino de Juan XIX (nombre de pila Romarlo), quien había sucedido a su hermano Benedicto VIII (otro Teofilacto), quien a su vez era sobrino de Juan XII (nombre de pila Octaviano), quien era hijo del príncipe romano Aberico II, quien era hijo de puta y nieto de puta: hijo de Marozia y nieto de Teodora, el par de putas, madre e hija, que fundaron la dinastía de los Teofilactos que le dio seis papas a la cristiandad, a saber los cuatro enumerados más Juan XI, hijo ilegítimo de Marozia y del papa Sergio III y elevado al pontificado a los señalados 20 años por intrigas de su mamá, y Juan XIII, hijo de Teodora la joven (hermana de Marozia) y un obispo. Seis papas que se dicen rápido, salidos en última instancia de una sola vagina papal multípara, la de Teodora la vieja o Teodora la puta! Según el obispo de Cremona Liutprando, el gran cronista del papado de esta época, Juan XIII solía sacarles los ojos a sus enemigos y pasó por la espada a la mitad de la población de Roma. Y según el mismo cronista, Juan XII era gran cazador y jugador de dado, tenía pacto con el Diablo, ordenó obispo a un niño de diez años en un establo, hizo castrar a un cardenal causándole la muerte, le sacó los ojos a su director espiritual y en una fuga apurada de Roma desvalijó a San Pedro y huyó con lo que pudo cargar de su tesoro. Cohabitó con la viuda de su vasallo Rainier a la que le regaló cálices de oro y ciudades, y con la concubina de su padre Stefana y con la hermana de Stefana y hasta con sus propias hermanas. Violó peregrinas, casadas, viudas, doncellas, y convirtió el palacio Laterano en un burdel. Claro, como era nieto y bisnieto de puta! Un marido celoso lo sorprendió en la cama con su mujer y lo mató de un martillazo en la cabeza. Alcanzaría a eyacular? Tenía 24 añitos. Otro que murió en pleno adulterio a manos de un marido burlado fue Benedicto VII, sucesor de Benedicto VI. Pero no nos desviemos de la pornocracia, que es como un historiador de la Iglesia, el cardenal Baronio, bautizó a este período del papado del que el cronista-obispo Liut-prando fue testigo presencial. Muy bien puesto el nombre: como dedo en culo, como anillo en dedo de cardenal. Pero no únicamente para ese período. Para toda la Historia de la Puta!» In Fernando Vallejo, La Puta de Babilonia, 2007, Debolsillo, 2016, ISBN 978-846-633-562-1.

Cortesia de Debolsillo/JDACT

JDACT, Fernando Vallejo, Literatura, Religião, 

No 31. Maria Madalena. Michael Haag. «… angariando convertidos na Palestina desde o século I, mas a sua associação com a casa de Maria Madalena foi uma invenção religiosa em consonância com a substituição de Magadan por Magdala»

Cortesia de wikipedia e jdact

Um lugar chamado Magdala

«(…) Apesar das escavações modernas em Magdala e das alegações de que ela está associada a Maria Madalena, e apesar da bênção do papa Francisco em 2014, não há lugar chamado Magdala na Bíblia, excepto numa frase corrompida no Evangelho de Mateus, onde, depois de alimentar a multidão com pães e peixes, Jesus entrou no barco e foi para as costas de Magdala, que é o texto da versão do rei Jaime. A fonte grega que foi seguida neste caso, no entanto, data apenas do século V, mas fontes gregas mais antigas e mais confiáveis, tais como os manuscritos do início do século IV, conhecidos como o Códice Sinaítico e o Códice Vaticano, não mencionam Magdala de forma alguma. O Códice Vaticano, por exemplo, diz que Jesus entrou no barco e foi para as costas de Magadan, exactamente o que aparece em edições escolares modernas, como Bíblia Inglesa Revista, bem como em bíblias católicas e ortodoxas. Isto é apoiado pela evidência dos Pais da Igreja, Eusébio e Jerónimo, o primeiro escrevendo no início do século IV, o segundo no final do século IV, que não fazem nenhuma menção a qualquer lugar chamado Migdal ou Magdala; eles falam apenas de Magadan.

No que foi, aparentemente, um acto de edição criativa, um copista bizantino transformou Magadan em Magdala. Embora semelhantes, os nomes Magadan e Magdala significam duas coisas diferentes. Magadan deriva da palavra aramaica magad, que significa mercadoria preciosa, enquanto Magdala deriva do aramaico magdal e do hebraico migdal, significando torre. Mas a identificação de Magdala com Magadan começou a produzir seu efeito. Antes da alteração bizantina do texto no Evangelho de Mateus, os peregrinos que viajavam pela Terra Santa nada diziam sobre qualquer lugar chamado Magdala. No início do século VI, no entanto, um peregrino chamado Teodósio deparou-se com Magadan, na margem ocidental do mar da Galileia, e, influenciado pelo texto inventado, declarou que ele tinha vindo para Magdala; Magdale, ubi domna Maria nata est, ele escreveu em latim: Magdala, onde a senhora Maria nasceu. Peregrinos viajando para a Terra Santa vicejaram em associações com os evangelhos, e aqueles que seguiam na esteira de Teodósio tinham o prazer de concordar que Magadan era o local de nascimento de Maria Madalena. Por volta do século IX peregrinos mencionavam uma igreja em Magdala, que supostamente compreendia a própria casa de Maria Madalena, de onde os sete demónios tinham sido expulsos e na qual podiam entrar. A igreja, eles foram informados, tinha sido construída pela temível imperatriz Helena, mãe de Constantino, o Grande, que em 326-328, com idade aproximada de oitenta anos, visitou a Terra Santa e fez construir igrejas no local do nascimento de Jesus em Belém e de sua ascensão no topo do monte das Oliveiras. Seu filho, o imperador Constantino, construiu a igreja do Santo Sepulcro, no ponto em Jerusalém onde Helena disse ter descoberto a tumba de Jesus. Mas, embora as visitas de Helena a Belém e Jerusalém tenham sido registadas quando ela as fez, não há nenhum registo contemporâneo de uma visita sua à Galileia; e caso ela tivesse construído uma igreja que declarava compreender à casa de Maria Madalena, certamente teria sido uma característica famosa na rota de peregrinação já no século IV, em vez disso, nem um único peregrino é conhecido por ter mencionado o nome de Magdala. A igreja vista pelos peregrinos do século IX pode ter sido velha, o cristianismo vinha angariando convertidos na Palestina desde o século I, mas a sua associação com a casa de Maria Madalena foi uma invenção religiosa em consonância com a substituição de Magadan por Magdala». In Michael Haag, Maria Madalena, Zahar, 2018, ISBN 978-853-781-739-1.

Cortesia de Zahar/JDACT

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segunda-feira, 30 de maio de 2022

La Puta de Babilonia. Fernando Vallejo. «… la simoníaca, la inquisidora, la torturadora, la falsificadora, la asesina, la fea, la loca, la mala; la del Santo Oficio (maldito) y el Índice de Libros Prohibidos…»

Cortesia de wiukipedia e jdact

«La puta, la gran puta, la grandísima puta, la santurrona, la simoníaca, la inquisidora, la torturadora, la falsificadora, la asesina, la fea, la loca, la mala; la del Santo Oficio (maldito) y el Índice de Libros Prohibidos; la de las Cruzadas y la noche de San Bartolomé; la que saqueó a Constantinopla y bañó de sangre a Jerusalén; la que exterminó a los albi-genses y a los veinte mil habitantes de Beziers; la que arrasó con las culturas indígenas de América; la que quemó a Segarelli en Parma, a Juan Hus en Constanza y a Giordano Bruno en Roma; la detractora de la ciencia, la enemiga de la verdad, la adulteradora de la Historia; la perseguidora de judíos, la encendedora de hogueras, la quemadora de herejes y brujas; la estafadora de viudas, la cazadora de herencias, la vendedora de indulgencias; la que inventó a Cristo loco el rabioso y a Pedro-piedra el estulto; la que promete el reino soso de los cielos y amenaza con el fuego eterno del infierno; la que amordaza la palabra y aherroja la libertad del alma; la que reprime a las demás religiones donde manda y exige libertad de culto donde no manda; la que nunca ha querido a los animales ni les ha tenido compasión; la oscurantista, la impostora, la embaucadora, la difamadora, la calumniadora, la reprimida, la represora, la mirona, la fisgona, la contumaz, la relapsa, la corrupta, la hipócrita, la parásita, la zángana; la antisemita, la esclavista, la homofóbica, la misógina; la carnívora, la carnicera, la limosnera, la tartufa, la mentirosa, la insidiosa, la traidora, la despojadora, la ladrona, la manipuladora, la depredadora, la opresora; la pérfida, la falaz, la rapaz, la felona; la aberrante, la inconsecuente, la incoherente, la absurda; la cretina, la estulta, la imbécil, la estúpida; la travestida, la mamarracha, la maricona; la autocrática, la despótica, la tiránica; la católica, la apostólica, la romana; la jesuítica, la dominica, la del Opus Dei; la concubina de Constantino, de Justiniano, de Carlomagno; la solapadora de Mussolini y de Hitler; la ramera de las rameras, la meretriz de las meretrices, la puta de Babilonia, la impune bimilenaria tiene cuentas pendientes conmigo desde mi infancia y aquí se las voy a cobrar.

A mediados de 1209 y al mando de un ejército de asesinos, el legado papal Amoldo Amalrico le puso sitio a Beziers, baluarte de los albigenses occitanos, con la exigencia de que le entregaran a doscientos de los más conocidos de esos herejes que allí se refugiaban, a cambio de perdonar la ciudad. Amalrico era un monje cisterciense al servicio de Inocencio III; su ejército era una turba de mercenarios, duques, condes, criados, burgueses, campesinos, obispos feudales y caballeros desocupados; y los albigenses eran los más devotos continuadores de Cristo, o mejor dicho, de lo que los ingenuos creen que fue Cristo: el hombre más noble y justo que haya producido la humanidad, nuestra última esperanza. Así les fue, colgados de la cruz de esa esperanza terminaron masacrados. Los ciudadanos de Beziers decidieron resistir y no entregar a sus protegidos, pero por una imprudencia de unos jóvenes atolondrados la ciudad cayó en manos de los sitiadores y éstos, con católico celo, se entregaron a la rapiña y al exterminio. Pero cómo distinguir a los ortodoxos de los albigenses? La orden de Amalrico fue: Mátenlos a todos que ya después el Señor verá cuáles son los suyos. Y así, sin distingos, herejes y católicos por igual iban cayendo todos degollados. En medio de la confusión y el terror muchos se refugiaron en las iglesias, cuyas puertas los invasores fueron tumbando a hachazos: pasaban al interior cantando el Veni Sancte Spiritus y emprendían el deguello. En la sola iglesia de Santa María Magdalena masacraron a siete mil sin perdonar mujeres, niños ni viejos. Hoy, Su Santidad le escribía esa noche Amalrico a Inocencia III, veinte mil ciudadanos fueron pasados por la espada sin importar el sexo ni la edad. Albigenses o no, los veinte mil eran todos cristianos. Y así ese papa criminal que llevaba el nombre burlón de Inocencia lograba matar en un solo día y en una sola ciudad diez o veinte veces más correligionarios que los que mataron los emperadores romanos cuando la llamada era de los mártires a lo largo y ancho del Imperio. Los hubieran matado a todos y no habríamos tenido Amalricos, ni Inocencias, ni Edad Media! Qué feliz sería hoy el mundo sin la sombra ominosa de Cristo! Pero no, el Espíritu Santo, que caga lenguas de fuego, había dispuesto otra cosa.

El siguiente en la lista de los Inocencias, el cuarto, quien en el clímax de su delirio se designaba a sí mismo praesentia corporalis Christi, fue el que azuzó a la Inquisición (maldita), con su bula Ad extirpanda, a usar la tortura para sacarles a sus víctimas la confesión de herejía. Y otro Inocencia, el octavo, no bien fue elegido papa (en un cónclave presidido por el soborno y la intriga), promulgó la bula Summis desiderantes affectibus que desató la más feroz persecución contra las brujas; a su hijo Franceschetto lo casó con una Médicis, y para refrendar el trato nombró cardenal a un hijo de Lorenzo el Magnífico, Giovanni, que entonces tenía sólo 13 años. A los 37 este Médicis habría de ascender al papado, que se parrandeó de banquete en banquete en una sola y continua fiesta. Se puso León X, aunque del feroz animal sólo tenía el nombre: gordo, miope, de ojos saltones, cabalgaba de lado como mujer a causa de una úlcera en el trasero adquirida tal vez en sus devaneos homosexuales y que le amargaba, aunque no mucho, la fiesta. Los burdeles de la Ciudad Eterna (que contaba entonces, entre sus cincuenta mil habitantes, con siete mil prostitutas registadas) le pagaban diezmos. Vendió en subasta dos mil ciento cincuenta puestos eclesiásticos, entre los cuales varios cardenalatos a treinta mil ducados el capelo, si bien a su primo bastardo Giulio de Médicis (el futuro Clemente VII) le dio el capelo gratis: el suyo propio durante la ceremonia de su coronación, tras quitárselo él mismo para chantarse la tiara pontifícia». In Fernando Vallejo, La Puta de Babilonia, 2007, Debolsillo, 2016, ISBN 978-846-633-562-1.

Cortesia de Bolsillo/JDACT

JDACT, Fernando Vallejo, Literatura, Religião, 

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «O padre Besian chegara à parte do sermão em que exortava a congregação a ser vigilante e a informar a ele e a seus agentes da Inquisição (maldita) qualquer delito que precisassem»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491

Zarita

«(…) O padre Besian levantou-se, e percebi subitamente que ele era mais alto do que o pai e, embora muito mais magro, sua presença pareceu fazer meu pai encolher. A Santa Inquisição (maldita) foi instituída pela rainha Isabel de Castela e pelo rei Fernando de Aragão como parte da sua gloriosa missão de estabelecer o reino cristão de Espanha. Esses dois monarcas de reinos separados dentro do território espanhol estão unidos, tanto em casamento quanto em mente, para guiar todas as outras províncias e distritos sob seu domínio. Mesmo agora lutam para tomar Granada dos infiéis e substituir a bandeira da lua crescente pela da cruz. Eu, como agente da Inquisição (maldita), possuo total autoridade sobre a Igreja e o Estado. Você não deve tentar impedir de nenhuma maneira o meu trabalho. Frequentemente, tenho verificado que quem costuma fazer isso tem algo errado ou..., inconsistente..., dentro da própria família para esconder. O padre olhou para meu pai e então abruptamente girou a cabeça para abarcar Lorena e a mim no seu olhar. O efeito dessas palavras no pai foi impressionante. A cor sumiu do seu rosto como acontece com a luz no céu quando uma nuvem passa pelo sol. Ele cambaleou e agarrou o encosto de uma cadeira próxima para se apoiar. Além de pregar avisos pela cidade, prosseguiu o padre Besian, informo-lhe agora que pretendo proclamar, para todos, a mesma mensagem do púlpito durante meu sermão na missa de amanhã. Espero ver você, sua família e todos os membros de sua casa no branco da frente da igreja. Uma pessoa importante como o magistrado deve dar o exemplo para o resto da comunidade.

E, assim, estávamos lá no dia seguinte, eu, pai e Lorena, apropriada e sobriamente vestidos. Antes de a cerimónia começar, minha tia Beatriz juntou-se a nós. Um véu drapejava até abaixo do seu nariz, e o capuz do seu traje cobria a cabeça e as laterais do rosto, como era costume das Irmãs de Compaixão sempre que saíam em público. O pai tinha-se distanciado da sua cunhada ao se casar com Lorena. Embora minha tia nunca tivesse revelado seus sentimentos por ele ter tomado uma nova esposa tão pouco tempo após a morte da irmã, eu acreditava que essa era a causa do afastamento entre eles. Agora ele lhe concedeu um olhar de gratidão pela presença naquela manhã. Enquanto o padre Besian insultava hereges, judeus, muçulmanos e todos aqueles que ele afirmava que ameaçavam a igreja e a segurança da Espanha, nós nos forçávamos a ficar calmos e atentos.

Os nossos monarcas, a virtuosa rainha Isabel de Castela, unida em matrimónio com o igualmente honrado rei Fernando de Aragão, tiveram por propósito juntar os reinos e províncias visando a tornar a Espanha um país unificado. Este será um país católico, unido. Para isso, eles têm empreendido uma guerra santa, uma cruzada contra todos os incrédulos. Mesmo agora eles se encontram em batalha contra os infiéis que mantêm o Reino de Granada e que não cedem à ordem cristã de suas majestades. Por muito tempo os muçulmanos têm maculado o solo espanhol, mas eles serão expulsos. Há, porém, em nosso meio, aqui, dentro de nossos corações e de nossos lares, a quem também devemos expulsar. E esses são os que conseguem ser mais traiçoeiros. Os tais que precisamos desenraizar como se faria com uma hera que sufoca plantas boas e frutíferas. O padre Besian chegara à parte do sermão em que exortava a congregação a ser vigilante e a informar a ele e a seus agentes da Inquisição (maldita) qualquer delito que precisassem». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,  

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Devo lembrar-lhe, dom Vicente, a voz do padre tornou-se gelada, que, como o magistrado local, está obrigado por lei a me auxiliar de qualquer modo que eu julgue necessário»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491

Zarita

«(…) Na manhã seguinte, Lorena e eu estávamos tranquilamente fazendo o desjejum na companhia do padre Besian quando o pai entrou a passos largos na sala. Quero falar com você! Ele se dirigiu rispidamente ao padre. Em particular, acrescentou. O padre Besian olhou-o atentamente e disse: Não há nada que não possa ser falado na frente de sua esposa e de sua filha. Você ordenou que estes panfletos fossem distribuídos e pregados por toda a minha cidade? Meu pai abriu um pedaço de papel que trazia amassado na mão e o entregou ao sacerdote. O padre Besian pegou o papel, colocou-o sobre a mesa e alisou-o calmamente. Sim, ordenei, disse ele. Inclinei a cabeça para tentar ler as palavras que estavam escritas no papel. Você não tem o direito de convocar as pessoas desta cidade para dar informações umas das outras dessa maneira. A voz do pai tremia de raiva. Pelo contrário, retrucou o padre Besian, o Chefe Inquisidor, Tomás de Torquemada, garante a mim, como agente da Santa Inquisição (maldita), o direito de fazer isso.

É vital que erradiquemos a heresia e descubramos se algum dos proclamados convertidos do judaísmo ainda mantém suas antigas práticas religiosas. Descobri que há judeus e muçulmanos vivendo nesta cidade. Suas influências são potencialmente corruptoras. Pela minha experiência, bons resultados são obtidos quando apelamos à população para ficar vigilante e servir como testemunhas. Há meia dúzia de famílias judias confinadas na parte mais pobre da cidade, perto das docas, e alguns poucos pescadores muçulmanos que amarram seus sambucos no píer mais distante. Eles nunca nos causaram problemas. Eu sou o magistrado desta cidade, de forma que você deveria ter falado primeiro comigo antes de divulgar proclamações que podem incitar agitação. O padre Besian deu um gole na sua xícara de leite morno e então a pousou diante de si. A única agitação que se seguirá às minhas instruções será nos corações dos incrédulos.

O que pretende fazer quando esses informantes aparecerem, exigiu saber o meu pai. Vai descobrir que haverá quem aproveite a oportunidade para se vingar de uma antiga dívida ou contar mentiras sobre um vizinho contra quem têm uma rixa. Eu os interrogarei muito cuidadosamente. Isso será uma dificuldade para aqueles que não têm um motivo verdadeiro para as suas denúncias. Pretende iniciar uma Inquisição (maldita) na cidade? Pretendo. Ontem à noite, me disse que estava apenas de passagem e me pediu que providenciasse acomodações enquanto esperava transporte num navio que o levará a Almería. Mudei de ideia, disse o padre Besian. E onde pretende realizar seus interrogatórios e julgamentos? Meu pai deu uma risada. Esta não é uma cidade grande. A cadeia é o subsolo de um prédio de um andar, e a minha assim chamada corte dos magistrados é esse pequeno andar acima. O padre Besian reclinou-se na cadeira. Olhou pela janela para os edifícios da nossa fazenda e depois à sua volta, pela sala. Sorriu. Tem uma casa muito bem equipada, dom Alonso. Usarei suas instalações para executar essa obra de Deus. Minha casa! Meu lar! O pai recuou, chocado. Não! Isso é impossível! Não permitirei. Devo lembrar-lhe, dom Vicente, a voz do padre tornou-se gelada, que, como o magistrado local, está obrigado por lei a me auxiliar de qualquer modo que eu julgue necessário». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Chamoa sorriu, depois beijou-o na boca, levemente, e pediu: Abraçai-me, meu príncipe. Beijaram-se e Afonso Henriques passou-lhe as mãos pelo corpo…»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(… ) Não como nas cantigas. E vós, tendes alguma amiga? O príncipe negou mas adiantou que já conhecera mulheres. Soldadeiras?, inquiriu Chamoa. A rapariga galega quis saber se haviam sido muitas, mas Afonso Henriques ignorou-a e declarou: O Ramiro está enamorado de vós. Raimunda viu à distância o visado fechar os olhos, como se por o fazer conseguisse impedir que outros falassem dele. É meigo, apreciou Chamoa. Desconfiado, o príncipe perguntou se eles eram amigos, coisa que Chamoa refutou, provocando um franzir de testa a Afonso Henriques. Alguma coisa lhe haveis feito. A filha de Gomes Nunes Pombeiro e Elvira Peres Trava endireitou-se, fingindo-se ofendida. Vejo que não acreditais nas minhas palavras ou me julgais uma tola! Parecia magoada e, preocupado por a ter atingido, o príncipe emendou a mão: Sendo vós tão bela, é natural que vos cortejem! Chamoa agradou-se com o elogio, mas manteve um prudente fingimento de agravo, como se o punisse por a ter acusado. Paio Soares anda de olho em vós, acrescentou o príncipe. Fazendo uma careta de desagrado, Chamoa exclamou: Credo, é muito mais velho do que eu, tem já os cabelos cinzentos! Mais uns anos morre e fico viúva! Foi a vez de Afonso Henriques se fingir surpreso. Não vos agradam homens mais velhos? Ela piscou-lhe o olho, marota:

Uns anos mais velhos sim, mas não muitos! E que tenham sido salvos por milagre... O príncipe, embora no íntimo apreciasse o atrevimento dela, interrogou-a com ar severo: Estais a escarnecer de mim, bela galega? Ela ajeitou o cabelo cor de mel com um gesto gracioso e retorquiu: É para ver se vos ris, sois sempre tão sério! Afonso Henriques franziu o sobrolho, nunca lhe tinham dito tal coisa, mas rapidamente se recompôs. A que desejais brincar? Chamoa, divertida, lançou a sua sugestão: Ao sério! O primeiro a rir, perde! Os dois forçaram o rosto à quietude e mantiveram-se calados, usando pequenos truques para forçar o outro a sorrir. De súbito, Chamoa enfiou o dedo no nariz, limpando-o e depois levou-o à boca, o que fez o príncipe esboçar uma expressão enojada. A empenhada rapariga colocou então os dedos das mãos nas bochechas e contorceu-as, deformando o rosto, imitando uma criatura malsã, de olhar esgazeado, o que mudou o jogo a seu favor, pois Afonso Henriques teve de baixar os olhos, para não se desmanchar a rir.

Determinada, Chamoa desatou a uivar baixinho, com a cara entortada pelas mãos, como se fosse uma doente desesperada, ou talvez um animal ferido. Depois, num gesto rápido, retirou as mãos da cara, mantendo o rosto e a boca retorcidos, e ergueu-as ao cabelo, que rapidamente desgrenhou. Parecia uma perfeita desvairada, e voltou a uivar, agora um pouco mais alto, levando Afonso Henriques a morder os lábios, para resistir à fortíssima vontade de gargalhar. Para os espectadores Raimunda e Ramiro, era evidente qual o mais hábil naquele jogo, e o resultado teria sido óbvio não fosse Afonso Henriques ter dito, entredentes: Sois uma bruxinha, bela galega! Chamoa, ainda desfigurada e despenteada, acenou com o indicador direito, recordando que falar era proibido naquele jogo, mas ele deslocou o braço para o lado e apanhou um pau, que levantou no ar. Haveis perdido a vassoura? Chamoa fez um ar amuado, mas de repente murmurou: Tendes um pau tão pequenino... Este comentário foi tão inesperado que Afonso Henriques se riu, momentaneamente distraído do jogo, o que gerou um grito entusiasmado da rapariga: Ganhei!

Apanhado em falso, o príncipe atirou com o pau para o rio, resmungando: Maldita galega! Orgulhosa, Chamoa declarou, com pompa: Ninguém me vence no jogo do sério! Ainda com dificuldade de aceitar a desfeita, Afonso Henriques acusou-a de ter recorrido a uma ousada falsidade: Sois uma atrevida, falais do que não sabeis! Ela, provocadora, olhou-o em desafio: Pelos vistos, acertei! Amuado, o príncipe olhou para o rio da Loba. Então, Chamoa aproximou-se dele e disse-lhe, numa voz melosa: Eu também faço milagres. O príncipe pareceu desorientado, como se não esperasse tanta folga. A rapariga estava agora muito próxima. Sentia o seu cheiro inebriá-lo, via o peito dela arfar, reparava nas sardas que lhe cobriam a cara e o nascer dos seios, e apreciou-a: Sois a mulher mais bela do mundo. Chamoa sorriu, depois beijou-o na boca, levemente, e pediu: Abraçai-me, meu príncipe. Beijaram-se e Afonso Henriques passou-lhe as mãos pelo corpo e tocou-lhe no peito, enquanto ela gemia. Vendo-a tão desejosa, o príncipe quis possuí-la, mas a rapariga disse-lhe que era virgem e que assim teria de permanecer até ao casamento. Então, ele lançou-lhe uma proposta: Casai-vos comigo». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Afonso Henriques mirou-a, mas ela desviou o olhar para o rio. Sois amigos?, perguntou ele. Chamoa, incomodada com a insinuação, continuou a admirar as plácidas águas»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(…) Sorrateira, minha prima Raimunda seguiu o jovem bastardo. Como a cavalo atrairia as atenções dos passeantes, decidiu ir a pé e saiu da estrada, cruzando os campos a correr, para encurtar distâncias, vendo que Ramiro fazia o mesmo, trinta metros à sua frente. Algum tempo depois, já afastados do castelo mais de uma légua, verificou que o príncipe e a donzela galega se dirigiam a um pequeno curso de água, a que os locais chamavam rio da Loba. Aproximou-se, com infinita cautela, e quando eles desmontaram e Afonso Henriques deu a mão à galega, para a ajudar, Raimunda percebeu que Ramiro não iria cumprir as ordens do pai. Atrás de uma árvore, o rapaz limitava-se a observar o par de encantados que se sentara na erva, à borda de água. Uma grande desgraça estava prestes a acontecer, e nem Ramiro, nem minha prima Raimunda a evitaram, como podiam. Se o tivessem feito, talvez Portugal não tivesse nascido com um filho em guerra com a mãe.

Deitada no chão entre as ervas, protegida por uns pedregulhos e observando o seu amado, minha prima Raimunda estava a transbordar de indignação com meu pai e meu tio. Porque não haviam eles impedido o príncipe de cortejar Chamoa, se a sabiam destinada a Paio Soares? E porque não o impedira ela, perguntei eu, no dia em que me contou o que se passou? Porque não o impedira Ramiro? Minha prima não me soube responder. Mesmo estando ambos transtornados de ciúmes, ele porque amava Chamoa, ela porque se apaixonara por Afonso Henriques, nenhum foi capaz de estragar aquele primeiro encontro amoroso. Os seres humanos, por vezes, são tão tortos que parecem leais e tão manhosos que parecem inteligentes. À beira do rio da Loba, Afonso Henriques recordou a Chamoa as suas imperfeições de nascença. Viera ao mundo com as pernas curtas e tortas, e a deficiência fora vista como mau presságio, chegando dona Teresa a considera-la uma prova inexorável de que nunca haveria de parir um varão de jeito, razão por que se recusava a pegar nele. Por isso, foi entregue a terceiros, e o escolhido foi meu pai, Egas Moniz de Ribadouro, e minha mãe, Dordia Viegas. Perto do local onde a nossa família vivia, corria um riacho, à beira do qual existiam as ruínas de uma igreja. Um dia, Nossa Senhora apareceu em sonhos a meu pai, benzeu aquelas águas e aconselhou a que lá se banhasse o aleijado menino. Dordia assim fizera, e o milagre das águas, bem como o amor de minha mãe, curaram-no.

Ela massajava-o nas pernas, passava-lhe leite de cabra nos músculos, colocava-lhe mezinhas na pele, e durante anos banhou-o no riacho, salvando-o com o seu carinho e com a ajuda de Nossa Senhora, a quem meu pai agradeceu, mandando construir no local o Mosteiro de Cárquere. No final da narrativa, Chamoa relevou o seu espanto: Haveis chamado mãe a Dordia Viegas, que Deus a tenha. Afonso Henriques olhou para o rio à frente deles. Uma mãe tem de estar perto dos filhos, de os amparar quando choram ou quando têm frio e medo, e de abraçá-los quando estão felizes. Dordia fez tudo isso, foi ela a minha mãe. Chamoa, um pouco a medo, perguntou: E dona Teresa? O príncipe ignorou a pergunta, mantendo o olhar pousado nas águas que corriam suaves e lentas. Depois, afirmou: O milagre resultou. Consigo correr atrás de javalis, ainda hoje o fiz. Os olhos verdes de Chamoa iluminaram-se, com ligeira malícia. E atrás das moças? Ele respondeu-lhe com solenidade: Um príncipe não corre atrás de qualquer uma, só de quem quer. Chamoa corou, lisonjeada com aquelas palavras, mas deixou-se ficar em silêncio até que ele perguntou: Vosso primo, Mem Tougues, tendes afecto por ele? A rapariga franziu a testa, mas aceitou que, sendo ele príncipe, decidia o que perguntava e ao que respondia. Conhecemo-nos desde crianças, gostamos da companhia um do outro. É bom rapaz, garantiu. Afonso Henriques mirou-a, mas ela desviou o olhar para o rio. Sois amigos?, perguntou ele. Chamoa, incomodada com a insinuação, continuou a admirar as plácidas águas». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Maria Madalena. Michael Haag. «A cidade foi ainda mais embelezada e ampliada após os hasmoneus terem sido derrubados em 37 a.C. pelos romanos, que estabeleceram um Estado cliente sob o governo de Herodes, o Grande…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

Um lugar chamado Magdala

«(…) Magdala, o local de nascimento de Maria Madalena, era uma aldeia miserável, de acordo com a edição de 1912 do Guia para a Palestina e a Síria, de Baedeker. A Galileia sofrera séculos de abandono e desolação sob o Império Otomano, e antes disso sob os mamelucos. Mejdal, como Magdala era chamada em árabe, foi frequentemente descrita por viajantes como empobrecida e pouco habitada; ela poderia ter sido totalmente abandonada se não tivesse recebido reassentamento de camponeses egípcios no século XIX. E mesmo assim, como Mark Twain escreveu em A viagem dos inocentes, seu livro sobre suas viagens na Terra Santa, publicado em 1867, Magdala era completamente feia e apertada, esquálida, desconfortável e suja, e as margens do mar da Galileia, cujo nome antigo, Genesaré, significava um jardim de riquezas, haviam se tornado um deserto silencioso. Nada mudou muito em Mejdal ao longo do século XX, a não ser pelo cenário se ter tornado mais desolado e deprimente; tudo o que havia para ver em Magdala eram galinhas ciscando o que restara de mosaicos antigos.

No entanto, entre aqueles mosaicos os arqueólogos hoje estão descobrindo uma vasta cidade que floresceu na época de Jesus nesta margem noroeste do mar da Galileia, um grande lago de água doce alimentado pelo rio Jordão. Escavações mostram que Magdala foi uma cidade helenística fundada no século II a.C. pelos hasmoneus, uma dinastia judaica independente que devia suas origens à revolta dos macabeus contra o domínio grego dos selêucidas nos anos 160 a.C., embora fosse uma dinastia, de qualquer forma, profundamente imbuída de cultura grega. Comparável em plano e tamanho a algumas das cidades mais importantes da Grécia e da Ásia Menor, Magdala serviu para trazer o mundo mediterrâneo ao coração da Galileia. Grandes porções de seu principal arruamento, o decúmano máximo, correndo de leste a oeste, e o cardo máximo, de norte a sul, foram descobertas, e abaixo delas canais de água que alimentavam os poços da cidade, fontes e um grande complexo de banhos públicos. Ainda mais impressionantes eram as instalações portuárias, incluindo um cais e pedras de atracação, uma bacia interior em forma de L protegida por um quebra-mar e as fundações maciças de uma torre.

Construção nessa escala só poderia ter sido realizada com o apoio dos governantes hasmoneus e com a intenção de tornar Magdala o maior porto na costa ocidental do mar da Galileia e um importante centro para a indústria de pesca e conservação dos peixes para ampla distribuição e exportação. A cidade foi ainda mais embelezada e ampliada após os hasmoneus terem sido derrubados em 37 a.C. pelos romanos, que estabeleceram um Estado cliente sob o governo de Herodes, o Grande, e seus sucessores. Escavações revelaram uma sinagoga decorada com um piso de mosaico e paredes pintadas; uma moeda encontrada dentro da sinagoga a situa no ano 29 d.C., aproximadamente o ano em que Jesus estava anunciando o reino iminente de Deus em todas as cidades e aldeias da Galileia. Perto das ruínas da antiga sinagoga foi construído um moderno centro de peregrinação, revivendo uma antiga tradição, acolhendo aqueles que chegam na esperança de encontrar Maria Madalena. Talvez nesta sinagoga Maria Madalena tenha ido orar e Jesus, pregar. Certamente, em 26 de Maio de 2014, durante sua visita a Jerusalém, o papa Francisco deu a sua bênção ao tabernáculo que ficará na nova igreja que está sendo construída em Magdala». In Michael Haag, Maria Madalena, Zahar, 2018, ISBN 978-853-781-739-1.

Cortesia de Zahar/JDACT

JDACT, Conhecimento, Literatura, Maria Madalena, Michael Haag, Religião, 

Maria Madalena. Michael Haag. «Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios, e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, e Susana, e muitas outras, que o serviam com os seus bens»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

Maria Madalena e Maria, a mãe de Jesus

«(…) Os leitores estarão familiarizados com as noções de Maria, mãe de Jesus, como uma virgem perpétua, a mãe perfeita e a Theotokos, a Mãe de Deus; de ter sido concebida imaculadamente, de subir ao céu, de ser um intercessor entre Deus e os homens, aquela que conhece o mais profundo sofrimento humano, a mulher sempre gentil e obediente à vontade de Deus. Mas nada desse modelo da mulher perfeita é encontrado na Bíblia, onde ela é uma mulher um tanto irritante, que não tem compreensão do que seu filho está prestes a fazer; em vez disso, ela é uma invenção que pertence inteiramente aos séculos posteriores, uma figura bíblica relativamente menor que foi transformada num grande culto, enquanto Maria Madalena, a mulher que conhecia Jesus, foi transformada numa prostituta.

A Mulher chamada Madalena

Maria Madalena aparece pela primeira vez na cronologia da vida de Jesus na Galileia, onde ela está viajando com Jesus enquanto ele proclama o reino de Deus. E os Doze estavam com ele, escreve Lucas no seu evangelho, e algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades. Entre essas mulheres, três são mencionadas pelo nome, e o primeiro nome é Maria Madalena, fora de quem saíram sete demónios. E mais nos é dito, pois Jesus e os Doze discípulos devem ser alimentados e cuidados à medida que viajam pela Galileia, e é Maria Madalena quem fornece os meios, juntamente com Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes Antipas, governante da Galileia e da Pereia, e uma mulher chamada Susana, e muitas outras mulheres que não têm seus nomes mencionados. É assim que o Evangelho de Lucas descreve Maria Madalena enquanto ela viaja com Jesus pela Galileia: E sucedeu que, depois disto, andava Jesus por cidades e aldeias, pregando e anunciando a boa nova do reino de Deus; e os Doze o acompanhavam, assim como certas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios, e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, e Susana, e muitas outras, que o serviam com os seus bens. Esta narrativa de Lucas é tudo o que temos de Maria Madalena em todos os evangelhos, até voltarmos a encontrá-la na crucificação em Jerusalém.

Mas, embora Lucas seja muito breve, o que ele nos diz de Maria Madalena com Jesus na Galileia está cheio de pistas e revelações sobre sua vida, seu carácter, sua riqueza, suas conexões sociais e políticas, seu estado mental, emocional e espiritual, suas origens e a natureza do seu relacionamento com Jesus e seu círculo, e está também cheio de mistérios.

Um lugar chamado Magdala

Na busca por Maria Madalena deveríamos começar com o seu nome. No grego original dos evangelhos ela nunca é Maria Madalena. Quando ela viaja com Jesus pela Galileia, Lucas descreve-a como Maria, chamada Madalena. Mais tarde, na ressurreição, o original grego de Lucas descreve-a como Maria, a Madalena. Em Mateus, Marcos e João, o grego é Maria, a Madalena. Ela usa o nome de Madalena como se tivesse sido a ela conferido um título. Embora o Novo Testamento não descreva Maria Madalena como sendo de ou vindo de algum lugar, a suposição comum é a de que Maria Madalena significa Maria de Magdala». In Michael Haag, Maria Madalena, Zahar, 2018, ISBN 978-853-781-739-1.

 Cortesia de Zahar/JDACT

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domingo, 22 de maio de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Egas Moniz fez um esforço para conter a ira e, a seu lado, o irmão Ermígio pôs fim à inútil polémica, alegando que Paio Soares estava perdido para o partido dos portucalenses, e que o arcebispo de Braga…»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(…) Encantado consigo mesmo, acrescentou a sua visão do mundo: Não vedes que, com a morte de Urraca, é finalmente possível unir a Galiza e o Condado Portucalense? Afonso VII terá de aceitar dona Teresa como rainha da Galiza unida! É desse futuro reino que serei mordomo-mor, não apenas do Condado! Conspirativo, baixou a voz e lembrou: E Afonso Henriques, quando a mãe morrer, será o seu sucessor. Estais esquecidos dessa terra prometida? Ermígio Moniz abanou a cabeça, desagradado. Não são esses os planos do Trava, nem de dona Teresa. Paio Soares franziu a testa, surpreendido, e perguntou: E que sabeis vós sobre isso? Nem falais com Fernão Peres! Inebriado com o seu novo estatuto de privilegiado membro do pequeno círculo de poder do Condado, informou-os: Fernão Peres e a rainha não desejam apenas unir a Galiza, mas também conquistar o Sul aos mouros. É para isso que cá estão os Pobres Cavaleiros de Cristo! Vão para Soure, preparar a reconquista!

Naquela tarde, meu pai e meu tio não só desconheciam essas intenções da rainha, como não podiam discordar delas, pois guerrear os infiéis era sempre uma causa nobre para qualquer cristão. É para isso que me querem! Será um portucalense a unir a Galiza e a preparar as campanhas no Sul! Depois desta espampanante exclamação, Paio Soares encheu o peito de ar e endireitou-se, olhando, atento, para o horizonte, como se lá visse um grandioso palco onde era personagem fundamental. Era por demais evidente que a morte da rainha Urraca, que em vida tanto o assustara, o libertara de um peso terrível e dos seus famosos terrores nocturnos. Convicto, declarou: Poderemos finalmente cumprir o sonho do conde Henrique, a quem sempre fui leal! Unimo-nos no Norte, como ele queria, e combatemos no Sul, como ele fez! Após uns instantes pensativo, meu pai suspirou, desalentado: Estais seduzido pelos cantos do Trava. Não vedes que nada disso irá acontecer? Dona Teresa quer-vos apenas para calar os portucalenses, mas não mandareis em nada, será Fernão a fazê-lo. É ele quem reina no coração da rainha. Sereis apenas um tolo útil. Com a mão no punhal, contendo a fúria, Paio Soares rosnou: Só por respeito não vos desafio, não me ofendais mais!

Indiferente à ameaça, Ermígio lançou outra acha para aquela flamejante fogueira: Quereis é a sobrinha do Trava, para vos dar finalmente um filho varão. Porém, tendes de pensar com a cabeça, não com a gaita! O humor de Paio Soares, ao ouvir falar em Chamoa, mudou imediatamente e ficou de súbito animado e divertido. E que mal tem desejar uma bela mulher? Não sou o único a perder-me por uma airosa galega! Desdenhoso, agoirou o futuro casamento de meu pai, dizendo que a bela Teresa Celanova era tombada de amores pelo Raimundes! Cuidado, Egas, que vos podem nascer na testa uns cornos reais! Aguentando a estocada com galanteria, meu pai ripostou: Não sujeis a reputação imaculada de uma dama solteira só para justificar a ossa reles traição! Paio Soares deu uma sonora gargalhada. Se a Celanova é virgem, Cristo vai descer hoje à terra!

Egas Moniz fez um esforço para conter a ira e, a seu lado, o irmão Ermígio pôs fim à inútil polémica, alegando que Paio Soares estava perdido para o partido dos portucalenses, e que o arcebispo de Braga iria ser informado da sua infame reviravolta. O visado, ao ouvi-lo, encolheu os ombros e regressou ao convívio, enquanto Raimunda se manteve quieta e invisível, deixando que meu pai e meu tio passassem perto dela. Só depois se levantou, mas quando chegou à entrada da tenda o seu coração deu um inesperado pulo. Ao fundo, a cerca de cinquenta metros, viu Afonso Henriques e Chamoa afastarem-se estrada fora, a cavalo! Ao vê-los também, meu pai vingou-se com uma piada: Não serão antes cornos galegos, caro Paio Soares? Furibundo, este entrou de rompante na tenda, chocando com um dos criados, um homem baixo, que deixou cair um tabuleiro. Ainda o pobre apanhava cacos do chão, quando o rico-homem da Maia reapareceu, trazendo pelo braço o filho Ramiro, a quem ordenou exaltado, apontando para as duas figuras que cavalgavam: Ide segui-los e não os deixeis estar juntos! É uma ordem! Ide ou levais uma carga de pancada!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Acaso se tem saído mal, o Fernão? Há anos que não há guerras no Condado, e os exércitos do califa nunca mais voltaram a Coimbra!»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(…) Aflitos, decidiram nada dizer ao príncipe, para não o perturbar, e ordenaram a Raimunda que se calasse durante o jantar que estava a começar numa grande tenda. A rapariga assim fez, e dirigiu-se ao local depois de os deixar cá fora. No recinto coberto, dezenas de servas cirandavam, carregando travessas com comidas e jarros cheios de bebidas. Poucos dos convivas estavam sentados, a maioria alimentava-se de pé, com a boca cheia e às vezes arrotando, enquanto alguns lavavam as mãos em bacias ou as limpavam às napeiras. Dona Teresa e Fernão Trava, de mão dada, conversavam com a irmã dele, Elvira, e seu marido, Gomes Nunes Pombeiro. Do lado direito da rainha estavam os Celanova e, mais atrás, o prior Teotónio escutava atentamente o velho cavaleiro Gondomar. Para a esquerda encontrava-se Sancha Henriques, carrancuda e sentada, ferrando os dentes numa peça de cervo, alheia a tudo e a todos. À sua frente, em cima da mesa, via-se uma escudela de madeira, cheia de sopa, ao lado de uma grande metade de pão, arredondada, onde ela agora pousava a carne, lambendo as beiças primeiro e limpando-as depois à manga da dalmática azul.

A irmã Urraca Henriques vigiava-a, temendo uma nova investida do Braganção, que a olhava intensamente. Qual cão com baba a escorrer-lhe da boca, trepidando de desejo, só os amigos o continham. Afonso Henriques, Gonçalo Sousa, eu e meus irmãos estávamos de roda dele, relatando-lhe os feitos da caçada madrugadora. Mais ao lado, Raimunda descobriu Chamoa de pé, fechando um círculo composto pela sua irmã Maria Gomes e pelas três mouras. A galhofa feminina tinha como óbvio motivo os rapazes, concretamente Afonso Henriques, pois era para ele que Chamoa olhava, batendo as pestanas, com os seus olhinhos de corça a chisparem. Surpreendida, Raimunda não descobriu Paio Soares, e voltou a sair da tenda para o procurar. Cá fora, alguns nobres e damas trocavam cortesias, mas só quando rodeou o local viu, a vinte passos dela, meu pai, meu tio e Paio Soares a discutirem com ardor quezilento. Discretamente, sentou-se de costas voltadas para eles e escutou-os. Ermígio Moniz gritava, alterado: Que irá dizer o arcebispo de Braga da vossa nefasta traição? Ele queria ver-vos a liderar os portucalenses! Paio Soares, também já enervado, enfrentou-o: Quereis fazer guerra a dona Teresa? Agora, que morreu dona Urraca e vai reinar Afonso VII? Se o fizerdes, ele virá esmagar-vos! Ermígio e meu pai pareceram ficar abalados com o ameaçador argumento, e Paio Soares, sentindo a sua posição fortificar-se, insistiu com ânimo, fechando a mão direita no cabo do seu belo punhal: E quem quereis colocar no lugar de dona Teresa? Afonso Henriques, um colérico rapaz que nunca fez a guerra? Santa Mãe de Deus, quereis condená-lo a uma morte prematura? Meu tio semicerrou os olhos e declarou: Não é razão para aceitardes ser mordomo-mor! Temos de permanecer unidos contra os Trava!

Paio Soares sorriu, sibilino, e questionou-os: Acaso se tem saído mal, o Fernão? Há anos que não há guerras no Condado, e os exércitos do califa nunca mais voltaram a Coimbra! Ofendido, meu pai, Egas Moniz, inflamou-se: Os portucalenses foram afastados, nenhum assina documentos! Paio Soares voltou a sorrir, desta vez orgulhoso, e retorquiu: Pelo menos um vai voltar a fazê-lo!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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sexta-feira, 20 de maio de 2022

Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «A conquista significou, pois, um corte. O poder estabelecido foi derrubado e em parte destruído, milhares de prisioneiros foram arrastados até ao Oriente e uma parte substancial da terra mudou de mãos»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Civilização Islâmica e o Gharb al-Ândalus

«(…) No século XI, Ibn Hazm escreve a Epístola sobre a excelência de Al-Andalus. Nesse escrito passa em revista a história literária do Islão peninsular e conclui afirmando a sua superioridade cultural sobre a Pérsia, o Iémen, a Síria e outros países orientais. Na primeira metade do século XII, o santareno Ibn Bassam na sua Daquira ou Tesouro exalta a superioridade dos poetas e literatos de Hespanha sobre os poetas do Oriente. Por sua vez, Al-Saqundi, já durante o domínio almóada, escreve o Elogio do Islão Espanhol onde reivindica, pela excelência das suas cidades e sábios, a superioridade do Andaluz sobre os povos berberes. Há que dar algum desconto ao elogio em boca própria. Com o triunfo da Reconquista, o Andaluz surge depois aos olhos dos exilados como o paraíso perdido. Ibn Said fala nas cidades, nos campos cultivados, nas casas, entre as árvores verdes, continuamente caiadas de branco, por dentro e por fora. No decurso das minhas viagens, não vi país que se possa comparar ao Andaluz quer na beleza, fertilidade, abundância de água, quer na exuberância da vegetação, com excepção dos arredores de Fez ou de Damasco, na Síria. E prossegue: O Andaluz tem sido comparado por muitos autores ao paraíso terreal. Portugal nasce como entidade política quando no Islão peninsular as ciências medievais e a filosofia atingiam um brilho assinalável. Muitos quadros fugiram mas as cidades e os campos com boa parte da sua população ficaram. A sua história, antes e depois, é também a nossa história.

Orgulhamo-nos quando da terra salta um esqueleto de criança datável de 27 a 30 000 anos e integramo-lo no nosso património. O mesmo deve acontecer com os homens e mulheres que habitaram e adubaram com os corpos o nosso solo, muçulmanos, cristãos e judeus, e que enriqueceram o nosso património e o da Humanidade.

A Formação da Sociedade de al-Ândaluz

A construção da civilização islâmica na península conheceu um percurso lento e contraditório. Como em todas as conquistas, vencedor e vencidos influenciaram-se mutuamente. Por outro lado, não podemos perder de vista que o espaço dos ibéricos e dos invasores fora profundamente marcado pela matriz das civilizações mediterrânicas. Segundo Ibn Mozain de Silves, que viveu no século XI, em texto conservado por historiadores posteriores, conquistada a Espanha, Musa ibn Nusayr dividiu o território entre os militares que vieram à conquista, isto é, entre as tribos que nela participaram tal como distribuira os cativos e os bens móveis. Das terras conquistadas deduziu o quinto para o Tesouro Público e dos cativos escolheu cem mil dos melhores e mais jovens para os enviar ao califa al-Wualid Abd al-Malik. Nas terras do norte deixou os cristãos com a sua religião e os seus usos mediante o pagamento de um tributo. A conquista significou, pois, um corte. O poder estabelecido foi derrubado e em parte destruído, milhares de prisioneiros foram arrastados até ao Oriente e uma parte substancial da terra mudou de mãos. Mesmo os filhos do rei godo Vitiza, que, segundo parece, se bandearam pelos invasores, tiveram de partilhar as terras. Alguns autores menosprezaram o número dos recém-chegados. No entanto, os relatos muçulmanos falam em 30 mil árabes e principalmente berberes. A estes há que juntar os 400 árabes de Ifriqiya que acompanharam al-Hurr ibn Abd al-Rahman, os árabes do governador al-Samh ibn Malik al-Khawlani, os 7 000 sírios das tropas de Baly e os militares da hoste do governador Abu l-Khatar al-Husam ibn Dirar al-Kalbi». In António Borges Coelho, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT

JDACT, Algarve, António Borges Coelho, Conhecimentos, História, 

As Meninas Escondidas de Cabul. Jenny Nordberg. « Agora estamos sentadas no sofá de bordados dourados, onde as gémeas montaram um serviço de chá, consistindo em canecas de vidro e garrafa térmica de pressão numa bandeja prateada»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

 A Mãe Rebelde

«(…) Nosso irmão é na verdade uma menina. Uma das gémeas, de ar ansioso, faz um sinal com a cabeça assentindo a essas palavras. Então ela se vira para a irmã. Concorda. Sim, é verdade. Ela pode confirmar. São duas meninas idênticas, de dez anos de idade, com cabelos pretos, olhos vivazes e algumas pequenas sardas. Um pouco antes, estávamos dançando ao som do meu iPod, no modo shuffle, enquanto esperávamos a mãe delas desligar o telefone na outra sala. Passávamos o telefone de ouvido de uma para outra, mostrando nossos melhores passos. Eu não conseguia acompanhar o requebrado delas, mas alguns de meus mais inspirados acompanhamentos vocais ganharam entusiástica aprovação. De facto era boa a ressonância dada pelas paredes de cimento gelado do apartamento, no labirinto construído pelos soviéticos que abriga uma parte da pequena classe média de Cabul.

Agora estamos sentadas no sofá de bordados dourados, onde as gémeas montaram um serviço de chá, consistindo em canecas de vidro e garrafa térmica de pressão numa bandeja prateada. O mehman khana é o aposento mais luxuoso num lar afegão, que mostra a abastança e os bons costumes dos donos. Há fitas com versículos do Alcorão e flores de tecido cor de pêssego numa mesa de canto, com uma rachadura remendada com fita adesiva. As gémeas, sentadas no sofá sobre as pernas simetricamente dobradas, ficam um pouco ofendidas com minha indiferença àquela grande revelação. A gémea número dois se inclina para a frente: É verdade. Ele é nossa irmãzinha. Sorrio e concordo de novo com a cabeça. Certo. Claro. Um retrato emoldurado numa mesinha lateral mostra o irmão posando de gravata e um pulôver de decote em V, junto com o pai de bigode abrindo um largo sorriso. É a única foto exposta na sala. As irmãs mais velhas falam um inglês meio trôpego, mas entusiasmado, extraído dos manuais de escola e da televisão por satélite embutida no balcão. Talvez tenhamos aqui uma barreira de linguagem.

Certo, digo, querendo ser simpática. Entendo. Irmã de vocês. Mas me conte, Benafsha, qual é sua cor favorita? Ela vacila entre vermelho e roxo e depois passa a pergunta para a irmã, que também dedica uma séria reflexão ao tema. As gêmeas, ambas de cardigãs alaranjados e calças verdes, parecem agir em plena sincronia na maioria das coisas. Suas cabeças ficam balançando, cheias de elastiquinhos de cabelo brilhantes, e só quando uma fala é que a chuquinha da outra fica imóvel por alguns segundos. Esses instantes são a chance para um novato conseguir diferenciá-las: o segredo é uma marquinha de nascença na bochecha de Beheshta. Benafsha significa flor e Beheshta significa paraíso. Beheshta sugere nosso próximo tema: Quando crescer, quero ser professora. Quando chega a vez de cada uma delas fazer uma pergunta, as duas querem saber a mesma coisa: sou casada? Elas ficam espantadas com a minha resposta, pois, como ressaltam, sou muito velha. Sou até alguns anos mais velha que a mãe delas, que, aos 33 anos de idade, é esposa e mãe de quatro filhos. As gémeas têm mais uma irmã, além do irmãozinho. Digo que a mãe delas também está no parlamento. Então ela é muitas coisas que eu não sou. Parecem gostar desse quadro. De repente, o irmão aparece à porta». In Jenny Nordberg, As Meninas Escondidas de Cabul, 2009, ONG Afghan Women’s Writing Project, 2010, Masha Hamilton, Companhia das Letras, ISBN 978-853-592-696-5.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, Jenny Nordberg, Literatura,