sexta-feira, 20 de maio de 2022

As Meninas Escondidas de Cabul. Jenny Nordberg. « Agora estamos sentadas no sofá de bordados dourados, onde as gémeas montaram um serviço de chá, consistindo em canecas de vidro e garrafa térmica de pressão numa bandeja prateada»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

 A Mãe Rebelde

«(…) Nosso irmão é na verdade uma menina. Uma das gémeas, de ar ansioso, faz um sinal com a cabeça assentindo a essas palavras. Então ela se vira para a irmã. Concorda. Sim, é verdade. Ela pode confirmar. São duas meninas idênticas, de dez anos de idade, com cabelos pretos, olhos vivazes e algumas pequenas sardas. Um pouco antes, estávamos dançando ao som do meu iPod, no modo shuffle, enquanto esperávamos a mãe delas desligar o telefone na outra sala. Passávamos o telefone de ouvido de uma para outra, mostrando nossos melhores passos. Eu não conseguia acompanhar o requebrado delas, mas alguns de meus mais inspirados acompanhamentos vocais ganharam entusiástica aprovação. De facto era boa a ressonância dada pelas paredes de cimento gelado do apartamento, no labirinto construído pelos soviéticos que abriga uma parte da pequena classe média de Cabul.

Agora estamos sentadas no sofá de bordados dourados, onde as gémeas montaram um serviço de chá, consistindo em canecas de vidro e garrafa térmica de pressão numa bandeja prateada. O mehman khana é o aposento mais luxuoso num lar afegão, que mostra a abastança e os bons costumes dos donos. Há fitas com versículos do Alcorão e flores de tecido cor de pêssego numa mesa de canto, com uma rachadura remendada com fita adesiva. As gémeas, sentadas no sofá sobre as pernas simetricamente dobradas, ficam um pouco ofendidas com minha indiferença àquela grande revelação. A gémea número dois se inclina para a frente: É verdade. Ele é nossa irmãzinha. Sorrio e concordo de novo com a cabeça. Certo. Claro. Um retrato emoldurado numa mesinha lateral mostra o irmão posando de gravata e um pulôver de decote em V, junto com o pai de bigode abrindo um largo sorriso. É a única foto exposta na sala. As irmãs mais velhas falam um inglês meio trôpego, mas entusiasmado, extraído dos manuais de escola e da televisão por satélite embutida no balcão. Talvez tenhamos aqui uma barreira de linguagem.

Certo, digo, querendo ser simpática. Entendo. Irmã de vocês. Mas me conte, Benafsha, qual é sua cor favorita? Ela vacila entre vermelho e roxo e depois passa a pergunta para a irmã, que também dedica uma séria reflexão ao tema. As gêmeas, ambas de cardigãs alaranjados e calças verdes, parecem agir em plena sincronia na maioria das coisas. Suas cabeças ficam balançando, cheias de elastiquinhos de cabelo brilhantes, e só quando uma fala é que a chuquinha da outra fica imóvel por alguns segundos. Esses instantes são a chance para um novato conseguir diferenciá-las: o segredo é uma marquinha de nascença na bochecha de Beheshta. Benafsha significa flor e Beheshta significa paraíso. Beheshta sugere nosso próximo tema: Quando crescer, quero ser professora. Quando chega a vez de cada uma delas fazer uma pergunta, as duas querem saber a mesma coisa: sou casada? Elas ficam espantadas com a minha resposta, pois, como ressaltam, sou muito velha. Sou até alguns anos mais velha que a mãe delas, que, aos 33 anos de idade, é esposa e mãe de quatro filhos. As gémeas têm mais uma irmã, além do irmãozinho. Digo que a mãe delas também está no parlamento. Então ela é muitas coisas que eu não sou. Parecem gostar desse quadro. De repente, o irmão aparece à porta». In Jenny Nordberg, As Meninas Escondidas de Cabul, 2009, ONG Afghan Women’s Writing Project, 2010, Masha Hamilton, Companhia das Letras, ISBN 978-853-592-696-5.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, Jenny Nordberg, Literatura,