sexta-feira, 30 de abril de 2021

O Regresso do Desejado. Ricardo Costa Correia. «Depois de se aliar com os infiéis para me derrubar, tenta agora captar o interesse deles para os negócios da coroa?»

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Inquisição (maldita). Viena

«(…) Muito obrigado, don Felipe, é para mim também um gosto conhecer-vos, um tão elevado exemplo da cristandade de um povo. O vosso sacrifício na Península Ibérica é apenas comparável ao de Cristo na cruz. Irmão, interrompeu don Juan, o bispo don Martin foi meu capelão durante as batalhas em vosso nome nos Países Baixos. É um devoto da sua pessoa. Muito combateu pela justiça da nossa fé contra aqueles que renegaram os verdadeiros ensinamentos da cruz.

Pela sua mão, muitos foram os hereges condenados à fogueira. Muito me honra a vossa devoção e serviço à nossa causa, senhor bispo. Vai acompanhar-nos em Viena por quanto tempo?

Apenas por um par de dias, don Felipe. Tal como já falei com don Juan, parto para Roma ao encontro do nosso santo padre e de monsenhor Niño de Guevara. Como gostaria de vos acompanhar nessa viagem, senhor bispo, mas a minha saúde não o permite, don Felipe tentou de alguma forma minimizar a dor que o incomodava. Posso fazer de vós o meu mensageiro junto do santo padre e do bispo Guevara?

Por quem sois, don Felipe! O bispo parecia mais satisfeito que nunca por estar ao serviço do antigo rei das Espanhas. Falarei com eles sobre a difícil situação em que fostes obrigado a deixar o trono e a afronta que o vosso sobrinho dom Sebastião preparou contra vós ao aliar-se aos infiéis marroquinos.

Diz-se agora…, o bispo olhou em redor e baixou mais a voz, que se prepara para chamar ao reino de Portugal embaixadores muçulmanos. São às dúzias os marinheiros que falam sobre isso quando aportam às cidades francas. Uma vergonha para a nossa cristandade.

Depois de se aliar com os infiéis para me derrubar, tenta agora captar o interesse deles para os negócios da coroa? Isso é um completo ultraje. Don Felipe respondia no mesmo tom de voz. Os dois homens endireitaram-se à aproximação do imperador que se juntava à conversa». In Ricardo Costa Correia, O Regresso do Desejado, 2019, EGO Editora, 2019, ISBN 978-108-871-222-1.

Cortesia de EGOE/JDACT

JDACT, Ricardo Costa Correia, Literatura, Espanha, Alcácer-Quibir,

sábado, 24 de abril de 2021

O Século Primeiro depois de Beatriz. Amin Maalouf. «Amei até ao fim o século da minha juventude, os seus entusiasmos ingénuos, os seus ingénuos terrores à aproximação do milénio, ainda e ainda o átomo, e de novo a epidemia»

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«Tu estás no jardim de uma estalagem de Praga

E sentes-te muito feliz com uma rosa sobre a mesa

E observas em vez de escrever o teu conto em prosa

A cetónia que dorme no coração da rosa». In Apollinaire

«Dos acontecimentos que relato nestas páginas não fui mais que uma testemunha entre outras, mais aproximado que a multidão de espectadores, mas tão impotente como eles. o meu nome, eu sei, foi mencionado nos livros, isso causou-me outrora um certo orgulho. Mas já não causa. A mosca da fábula podia exultar porque a carruagem chegou a bom porto; de que se teria ela vangloriado se a viagem tivesse acabado num precipício? Esse foi o meu papel, na verdade, o de um sonâmbulo supérfluo sem sorte. Pelo menos não fui nem lorpa nem cúmplice. Nunca andei atrás de aventuras, mas às vezes a aventura fez-me sair do covil. Se eu tivesse podido escolher, tê-la-ia confinado ao único universo que me apaixonou desde a infância e que, com oitenta e três anos devidamente festejados, me apaixona ainda sem descanso: os insectos, esses admiráveis liliputianos, resumos de elegância, de habilidade, de imemorial sabedoria. Tenho o hábito de esclarecer os meus interlocutores profanos de que não sou, de modo algum, um defensor dos insectos. Com os animais ditos superiores, que nós, os homens, cedo escravizámos e abundantemente massacrámos, de que triunfámos de uma vez para sempre, podemos permitir-nos doravante ser magnânimos. Não com os insectos. Entre eles e nós a luta prossegue, quotidiana, implacável, e nada autoriza a predizer que o homem sairá vencedor. Os insectos estavam nesta Terra bem antes de nós, continuarão lá ainda antes de nós, e quando pudermos explorar os planetas longínquos serão mais depressa os seus congéneres do que os nossos que lá encontraremos. Com o que nos sentiremos, penso eu, reconfortados.

Já o disse, não sou um defensor dos insectos. Mas certamente um dos seus tenazes admiradores. Como não o ser? Que criatura alguma vez destilou matérias mais nobres que a seda, o mel ou o maná do Sinai? Desde sempre, o homem esforça-se por copiar destes produtos de insectos a textura e o gosto. Que dizer também do voo da mosca vulgar? Quantos séculos nos serão ainda precisos para imitá-la? Sem falar da metamorfose de uma miserável larva. Eu poderia invocar uma infinidade de exemplos. Não é esse o meu propósito. Nas páginas que vão seguir-se, não é da minha paixão pelos insectos que se trata, mas justamente dos únicos momentos da minha vida em que me interessei com prioridade pelos humanos. A ouvirem-me, tornar-me-ão facilmente por um urso misantropo. Isso não seria propriamente verdade. Os meus estudantes conservam de mim a melhor recordação; os meus colegas não disseram excessivamente mal; às vezes fui sociável, sem exagero; até cultivei, em pousio, duas ou três amizades. Sobretudo terá havido Clarence, e depois Beatriz; mas delas voltarei a falar. Digamos, para resumir sem mentir, que raramente suportei os zumbidos das misérias quotidianas, mas que aos grandes debates do meu tempo prestei constantemente um ouvido novo. Amei até ao fim o século da minha juventude, os seus entusiasmos ingénuos, os seus ingénuos terrores à aproximação do milénio, ainda e ainda o átomo, e de novo a epidemia, depois esses buracos de Dárnocles por cima dos pólos. Foi um grande século, a meu ver o maior, talvez o último grande, foi o século de todas as crises e de todos os problemas; hoje, no século da minha velhice, só se fala de soluções. Eu pensei sempre que o Céu tinha inventado os problemas e o Inferno as soluções. Os problemas empurram-nos, maltratam-nos, fazem-nos perder as estribeiras, fazem-nos sair de nós próprios. Salutar desequilíbrio, é pelos problemas que todas as espécies evoluem; é pelas soluções que elas se entorpecem e extinguem. Será por um acaso que o pior crime da nossa memória se tenha intitulado solução, e final?

E tudo o que observo hoje à minha volta, esse planeta enfezado, soturno, obscurecido, este desfraldar de ódios, essa universal frialdade que tudo envolve como uma nova era glaciar..., não é o fruto de uma genial solução? Contudo o fim do milénio tinha sido grandioso. Uma embriaguês nobre, contagiosa, devastadora, messiânica. Nós acreditávamos todos que a Graça ia tocar pouco a pouco a Terra inteira, que todas as nações poderiam em breve viver na paz, na liberdade, na abundância. Doravante, a História não seria mais escrita pelos generais, pelos ideólogos, pelos déspotas, mas pelos astrofísicos e pelos biólogos. A humanidade saciada só teria como heróis os inventores e os que a divertiam. Eu próprio nutri durante muito tempo essa esperança. Como todos os da minha geração, eu teria encolhido os ombros se me tivessem predicto que tantos progressos morais e técnicos se verificariam reversíveis que tantas vias de comunicação voltariam a fechar-se, que tantos muros poderiam ressurgir, tudo isso por culpa de um mal omnipresente e contudo insuspeitado.

Porque odioso logro do destino o nosso sonho se desmantelou? Como chegámos a isso? Porque fui obrigado a abandonar a cidade e toda a vida civil? O que eu queria contar aqui, o mais fielmente, o mais escrupulosamente possível, é a lenta eclosão do flagelo que nos envolve depois dos primeiros anos do novo século, arrastando-nos nessa regressão sem precedente, parece-me, tanto pela sua amplitude como pela sua natureza. Apesar do terror ambiente, esforçar-me-ei por escrever até ao fim com serenidade. Neste instante, sinto-me ao abrigo do meu antro de alta montanha, e a minha mão não treme nada por cima deste velho repertório ainda virgem a que vou confiar os meus fragmentos de verdade. Encontro até, na evocação de certas imagens do passado, uma alegria em que a minha pessoa se compraz, a ponto de esquecer por momentos o drama que presumidamente vou relatar. Não é uma das virtudes da escrita deitar horizontalmente na mesma folha horizontal o fútil e o excepcional? Tudo readquire num livro a espessura negligenciável da tinta achatada». In Amin Maalouf, O Século Primeiro depois de Beatriz, 1992, Medialivros, Difel, 2008, ISBN 978-972-290-919-8.

Cortesia de Medialivros/Difel/JDACT

JDACT, Amin Maalouf, Literatura, Oriente,

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Poesia. José Afonso. «Seja bem-vindo quem vier por bem, se alguém houver que não queira, trá-lo contigo também»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Amigo

Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também»

Poema de José Afonso

Cortesia de Wikipedia/JDACT

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Poesia. Cantiga de Abril. Jorge de Sena. «Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Tantos morreram sem ver o dia do despertar!»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cantiga de Abril

«Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste pais,
e conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério
toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério.
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde. verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por politica demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
E verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha».

Poema de Jorge de Sena, in 40 anos de servidão, 1989

 

Cortesia de Edições 70/JDACT

 

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Poesia. Era Uma Vez Um País. Ary dos Santos. «Ali nas vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras vivia um povo tão pobre…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era uma vez um país

de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação

uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.

Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.

Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.

Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.

Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril f
ez Portugal renascer.

E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.

Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.

A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.

Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.

Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.

Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.

Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!

Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram

das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser

pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.

Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!»

Poema de José Carlos Ary dos Santos

Lisboa, 1975, Ed Comunicação

Cortesia de Wikipedia/EdComunicação/JDACT

JDACT, Carlos Ary dos Santos, Abril, Salgueiro Maia, Filomeno Borges, MLCT, JLT, MLAC,

Poesia. Sophia de Melo B Andresen. «Aquele que foi Fiel à palavra dada à ideia tida como antes dele mas também por ele Pessoa disse»

Cortesia de wikipedia e jdact

Aos meu amigos Fernando José e Filomeno de Jesus

A Salgueiro Maia

«Aquele que na hora da vitória

respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso

Não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi Fiel à palavra dada à ideia tida

como antes dele mas também por ele
Pessoa disse»

Poema de Sophia de Melo B Andresen, in Musa, O Búzio de Cós e Outros Poemas

Cortesia de SMBAndresen/JDACT

JDACT, Sophia de Melo B Andresen, Poesia, MLCT, Salgueiro Maia, Filomeno Borges, JLT, MLAC, 

terça-feira, 20 de abril de 2021

José Saramago. Objecto Quase. «Olhou o relógio. Deviam estar à frente uns vinte carros. Nada de exagerado. Mas pensou que o melhor seria ir primeiramente ao escritório e deixar as voltas para a tarde…»

jdact

«(…) Disse à mulher que não se levantasse, que aproveitasse um pouco mais da manhã, e escorregou para o ar frio, para a humidade indefinível das paredes, dos puxadores das portas, das toalhas da casa de banho. Fumou o primeiro cigarro enquanto se barbeava e o segundo com o café, que entretanto aquecera. Tossiu como todas as manhãs. Depois vestiu-se às apalpadelas, sem acender a luz do quarto. Não queria acordar a mulher. Um cheiro fresco de água-de-colónia avivou a penumbra, e isso fez que a mulher suspirasse de prazer quando o marido se debruçou na cama para lhe beijar os olhos fechados. E ele sussurrou que não viria almoçar a casa. Fechou a porta e desceu rapidamente a escada. O prédio parecia mais silencioso que de costume. Talvez do nevoeiro, pensou. Reparara que o nevoeiro era assim como uma campânula que abafava os sons e os transformava, dissolvendo-os, fazendo deles o que fazia com as imagens. Estaria nevoeiro. No último lanço de escada já poderia ver a rua e saber se acertara.

Afinal havia uma luz ainda cinzenta, mas dura e rebrilhante, de quartzo. Na berma do passeio, um grande rato morto. E enquanto, parado à porta, acendia o terceiro cigarro, passou um garoto embuçado, de gorro, que cuspiu para cima do animal, como lhe tinham ensinado e sempre via fazer. O automóvel estava cinco prédios abaixo. Grande sorte ter podido arrumá-lo ali. Ganhara a superstição de que o perigo de lho roubarem seria tanto maior quanto mais longe o tivesse deixado à noite. Sem nunca o ter dito em voz alta, estava convencido de que não voltaria a ver o carro se o deixasse em qualquer extremo da cidade. Ali, tão perto, tinha confiança. O automóvel apareceu-lhe coberto de gotículas, os vidros tapados de humidade. Se não fosse o frio tanto, poderia dizer-se que transpirava como um corpo vivo. Olhou os pneus segundo o seu hábito, verificou de passagem que a antena não fora partida e abriu a porta. O interior do carro estava gelado. Com os vidros embaciados, era uma caverna translúcida afundada sob um dilúvio de água. Pensou que teria sido melhor deixar o carro em sítio onde pudesse fazê-lo descair para pegar mais facilmente. Ligou a ignição, e no mesmo instante o motor roncou alto, com um arfar profundo e impaciente. Sorriu, satisfeito da surpresa. O dia começava bem.

Rua acima, o automóvel arrancou, raspando o asfalto como um animal de cascos, triturando o lixo espalhado. O conta-quilómetros deu um salto repentino para 90, velocidade de suicídio na rua estreita e ladeada de carros parados. Que seria isto? Retirou o pé do acelerador, inquieto. Por pouco diria que lhe tinham trocado o motor por outro muito mais potente. Pisou à cautela o acelerador e dominou o carro. Nada de importância. Às vezes não se controla bem o balanço do pé. Basta que o tacão do sapato não assente no lugar habitual para que se altere o movimento e a pressão. É simples. Distraído com o incidente, ainda não olhara o marcador da gasolina. Ter-lha-iam roubado durante a noite, como já não era a primeira vez? Não. O ponteiro indicava precisamente meio depósito. Parou num sinal vermelho, sentindo o carro vibrante e tenso nas suas mãos. Curioso. Nunca dera por esta espécie de frémito animal que percorria em ondas as chapas da carroçaria e lhe fazia estremecer o ventre. Ao sinal verde, o automóvel pareceu serpentear, alongar-se como um fluido, para ultrapassar os que lhe estavam à frente. Curioso. Mas, na verdade, sempre se considerara muito melhor condutor do que o comum. Questão de boa disposição, esta agilidade de reflexos hoje, talvez excepcional. Meio depósito. Se encontrasse um posto de abastecimento a funcionar, aproveitaria. Pelo seguro, com todas as voltas que tinha de dar nesse dia antes de ir para o escritório, melhor de mais que de menos. Este estúpido embargo. O pânico, as horas de espera, em filas de dezenas e dezenas de carros. Diz-se que a indústria irá sofrer as consequências. Meio depósito. Outros andam a esta hora com muito menos, mas se for possível atestar. O carro fez uma curva balançada, e, no mesmo movimento, lançou-se numa subida íngreme sem esforço. Ali perto havia uma bomba pouco conhecida, talvez tivesse sorte. Como um perdigueiro que acode ao cheiro, o carro insinuou-se por entre o trânsito, voltou duas esquinas e foi ocupar lugar na fila que esperava. Boa lembrança.

Olhou o relógio. Deviam estar à frente uns vinte carros. Nada de exagerado. Mas pensou que o melhor seria ir primeiramente ao escritório e deixar as voltas para a tarde, já cheio o depósito, sem preocupações. Baixou o vidro para chamar um vendedor de jornais que passava. O tempo arrefecera muito. Mas ali, dentro do automóvel, de jornal aberto sobre o volante, fumando enquanto esperava, havia um calor agradável, como o dos lençóis. Fez mover os músculos das costas, com uma torção de gato voluptuoso, ao lembrar-se da mulher ainda enroscada na cama àquela hora, e recostou-se melhor no assento. O jornal não prometia nada de bom. O embargo mantinha-se. Um Natal escuro e frio, dizia um dos títulos. Mas ele ainda dispunha de meio depósito e não tardaria a tê-lo cheio. O automóvel da frente avançou um pouco. Bem Hora e meia mais tarde estava a atestar, e três minutos depois arrancava. Um pouco preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava restrições rigorosas. Enfim, do mal o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou passar primeiro por casa de um cliente, a ver se apanharia a encomenda? Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de dizer que passara hora e meia na bicha da gasolina quando lhe restava meio depósito. O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou a rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo. De repente, o carro deu uma guinada e descaiu para a rua à direita, até parar numa bicha de automóveis mais pequena do que a primeira». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-004-655-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,

terça-feira, 13 de abril de 2021

A Trégua. Mario Benedetti. «Onde ela estiver, se é que está, que lembrança terá de mim? Afinal, a memória importa alguma coisa?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Não tenho saída. A conversa com Vignale me deixou uma obsessão: recordar Isabel. Já não se trata de resgatar a sua imagem por meio das historinhas familiares, das fotografias, de algum traço de Esteban ou de Blanca. Conheço todos os seus dados, mas não quero sabê-los de segunda mão, e sim recordá-los directamente, vê-los em todos os detalhes diante de mim, assim como vejo agora minha cara no espelho. E não consigo. Sei que os olhos dela eram verdes, mas não consigo sentir-me diante do seu olhar.

Encontro meus filhos muito pouco. Nossos horários nem sempre coincidem, e nossos planos ou nossos interesses, menos ainda. Eles são correctos comigo; mas como, além disso, são terrivelmente reservados, sua correcção sempre parece o mero cumprimento de um dever. Esteban, por exemplo, está sempre se contentando para não discutir minhas opiniões. O que nos separa será a simples distância geracional, ou eu poderia fazer algo mais para me comunicar com eles? Em geral, acho-os mais incrédulos do que desatinados, mais fechados do que eu, quando tinha a mesma idade. Hoje jantamos juntos. Fazia provavelmente uns dois meses que não estávamos todos presentes num jantar familiar. Perguntei, em tom de brincadeira, que acontecimento festejávamos, mas não houve eco. Blanca me olhou e sorriu, como se me quisesse comunicar que compreendia minhas boas intenções, e mais nada. Passei a registar quais eram as escassas interrupções do consagrado silêncio. Jaime disse que a sopa estava insossa. O sal está bem aí, a 10 centímetros da sua mão direita, retrucou Blanca, e acrescentou, ferina: quer que eu lhe passe? A sopa estava insossa. É verdade, mas porque aquilo? Esteban informou que, a partir do próximo semestre, nosso aluguer vai aumentar 80 pesos. Como todos contribuímos, a coisa não é tão grave. Jaime começou a ler o jornal. Acho ofensivo que as pessoas leiam quando comem com a família. Disse isso a ele. Jaime largou o jornal, mas foi o mesmo que se tivesse continuado a ler, porque continuou sisudo, distante. Relatei meu encontro com Vignale, tentando ridicularizá-lo para trazer ao jantar um pouco de animação. Mas Jaime perguntou: quem é esse Vignale? Mario Vignale. Um sujeito meio careca, de bigode? Ele mesmo. Conheço. Bela peça, disse Jaime, é colega de Ferreira. Tremendo achacador. No fundo, agrada-me que Vignale seja uma porcaria, assim não tenho escrúpulos em me livrar dele. Mas Blanca perguntou: com que então, ele se lembrava da mãe? Achei que Jaime ia dizer alguma coisa, creio que moveu os lábios, mas decidiu ficar calado. Sorte dele, acrescentou Blanca, eu não me lembro. Mas eu, sim, disse Esteban.

Como será que ele se lembra? Como eu, com recordações de recordações, ou directamente, como quem vê o próprio rosto no espelho? Será possível que ele, que só tinha 4 anos, possua a imagem, e que a mim, em contraposição, a mim, que tenho registadas tantas noites, tantas noites, tantas noites, não reste nada? Fazíamos amor no escuro. Talvez seja por isso. Seguramente, é por isso. Tenho uma memória táctil dessas noites, e esta, sim, é directa. Mas e o dia? Durante o dia, não estávamos no escuro. Eu chegava do trabalho cansado, cheio de problemas, talvez furioso com a injustiça daquela semana, daquele mês. Às vezes fazíamos contas. Nunca chegava. Talvez olhássemos demais os números, as somas, as sobras, e não tivéssemos tempo de nos olhar. Onde ela estiver, se é que está, que lembrança terá de mim? Afinal, a memória importa alguma coisa? Às vezes me sinto infeliz, só por não saber do que tenho saudade, murmurou Blanca, enquanto repartia os pêssegos em calda. Couberam três e meio para cada um.

Hoje entraram para o escritório sete empregados novos: quatro homens e três mulheres. Tinham umas esplêndidas caras de susto, e de vez em quando dirigiam aos veteranos um olhar de respeitosa inveja. A mim, couberam dois pirralhos (um de 18 e outro de 22) e uma moça de 24 anos. Portanto, agora sou totalmente chefe: tenho nada menos que seis funcionários sob minhas ordens. Pela primeira vez, uma mulher. Sempre desconfiei delas em matéria de números. Além disso, outro inconveniente: durante os dias do período menstrual, e até mesmo nos que os antecedem, se normalmente forem espertas, elas ficam meio atarantadas; e se normalmente já forem atarantadas, tornam-se completamente imbecis. Esses novos que entraram não parecem ruins. O de 18 anos é o que menos me agrada. Tem um rosto sem força, delicado, e um olhar fugidio e ao mesmo tempo adulador. O outro é um eterno descabelado, mas tem um aspecto simpático e (ao menos por enquanto) uma evidente vontade de trabalhar. A mocinha não parece ter tanta vontade, mas pelo menos compreende o que a gente explica; além disso, tem testa larga e boca grande, dois traços que, em geral, me causam boa impressão. Chamam-se Alfredo Santini, Rodolfo Sierra e Laura Avellaneda. Vou deixar com eles os livros de mercadorias e com ela o Auxiliar de Resultados». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.

Cortesia de ECdeFerro/JDACT

 JDACT, Mario Benedetti, Literatura,

domingo, 11 de abril de 2021

Poesia. Sonetos. Monforte. «Busquei-te no deserto longamente... Como Rebeca outrora, condoída, surgiste, calma, na poeira ardente…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Velho Motivo

«Soneto de Jacob, pastor antigo,
soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!

O que eu servira para viver contigo,
tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!

E vou sofrendo a minha pena amarga,
pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!

Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!»

No Deserto
«Chegaram os camelos junto ao poço,
Quando Rebeca tinha a urna cheia.
Foram momentos esses de alvoroço,
Bem raros de encontrar em terra alheia.

Também meu coração, menino moço,
Nos cardos do caminho se golpeia.
Ouço-te os passos, dentro de alma eu ouço
O eco dos teus passos sobre a areia.

Busquei-te no deserto longamente...
Como Rebeca outrora, condoída,
Surgiste, calma, na poeira ardente.

De ânfora baixa, à boca da cisterna,
Ficaste assim, para toda a tua vida,
Matando a minha sede, que é eterna!»
Sonetos de António Sardinha, in CHUVA DA TARDE, 1923

Cortesia de PVercial/JDACT

António Sardinha. Alto Alentejo, Poesia, Monforte, A Arte, 

Poemas. «Eu sei que não se ama sozinho, talvez, devagarinho, possas voltar a aprender. O que a gente faz agora? Quando já não há o que falar, apaga a luz, deixa somente a dos teus olhos…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

Amar pelos dois

«Se um dia alguém perguntar por mim
Diz que vivi pra te amar
Antes de ti, só existi
Cansado e sem nada p’ra dar

Meu bem, ouve as minhas preces
Peço que regresses, que me voltes a querer
Eu sei que não se ama sozinho
Talvez, devagarinho, possas voltar a aprender

Meu bem, ouve as minhas preces

Peço que regresses, que me voltes a querer
Eu sei que não se ama sozinho
Talvez, devagarinho, possas voltar a aprender

Se o teu coração não quiser ceder
Não só ter paixão, não quiser sofrer
Sem fazer planos do que virá depois
O meu coração pode amar pelos dois»

Poema de Luísa Sobral, in Universal Music Publishing Group

O que a gente faz agora

«O que a gente faz agora?
Quando já não há o que falar
Apaga a luz
Deixa somente a dos teus olhos
P’ra me acender

Sonhos pelo céu-da-boca
Qual estrela deve ser você?
Na imensidão
Onde a paixão da gente mora

Num beijo seu
Num sonho meu
Será que o nosso filme tem final feliz?

E aconteceu
Você e eu
Ninguém sabe dizer como você me diz
Apaga a luz
Deixa somente a dos teus olhos

O que a gente faz agora?

Quando já não há o que falar
Apaga a luz
Deixa somente a dos teus olhos
P’ra me acender

Sonhos pelo céu-da-boca
Qual estrela deve ser você?
Na imensidão
Onde a paixão da gente mora

Num beijo seu
Num sonho meu
Será que o nosso filme tem final feliz?

E aconteceu
Você e eu
Ninguém sabe dizer como você me diz
Apaga a luz
Deixa somente a dos teus olhos

O que a a gente faz agora?»

Poema de Marina Elali e de Carlos Falcão, in Midia Hits Ltda

Cortesia de Wikipedia/MHits/UMPGroup/JDACT

JDACT, Marina Elali, Luísa Sobral, A Arte, Poesia, 

Beije-me onde o Sol não Alcança. Mary del Priore. «Enviarei, sem remetente, uma poesia ao Pirahí. Trabalharei as quadras ao gosto do tempo, misturando fanatismos de amor, palpites de morte, melancolia de Outono…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

Piraí, sede de O Pirahí. Março de 1893

«(…) Deus levou Nicota numa tarde de Verão. Seu rosto expressava tristeza serena. Ela morreu com essa tristeza. Morreu quietamente, como se cala um passarinho ao fim do seu bem voado dia. Depois que acabou o estertor e o corpo se esvaziou, dizem que remoçou: linda, novamente. Deus seja louvado por essa graça. O próprio cura, tio da moça, não queria acreditar, pois ungiu-a hesitante, como se ungisse a própria mãe. No dia em que o enterro saiu, a condessa adormecida num caixão com alças de bronze, a família, os amigos, os ex-escravos, criados e empregados da fazenda, todos faziam as mesmas perguntas. Porque nunca teve descendência, quando tantos sobrinhos, crianças e jovens seguiam o cortejo? Porque se casou com o estrangeiro, quando irmãos e irmãs se uniram aos primos e tios como era tradição na terra? Alguém lhe viu a alma sair do corpo? Deixou qualquer sinal? Para mim, Nicota foi só qualidade. Ninguém lhe pronunciava o nome sem emoção. Alegre, respeitada, caridosa, seu riso nunca foi licença. Todas as bocas mastigaram orações por sua alma. O cortejo entoou O Senhor amado. Cantei junto.

Dor tranquila e sombria a do viúvo. Afinal, a morte era a morte. O conde russo, por sua vez, arrastava uma reputação sulfurosa. Rumores o cercavam. Não faltava curiosidade sobre o prestígio do seu título, sua liberalidade, as intrigantes viagens a Paris, de onde voltava para sacudir letargias. Caloroso, ele agradava, seduzia. Acenando com a ideia de um grande amor, tirou Nicota da gaiola. Mas foi só para jogá-la na tristeza, comentava o povo no cortejo do enterro. Serei eu a fazer o necrológio para o jornal de Piraí. O que contar? Queria dizer que essa foi a história de uma esposa infeliz, de um marido infiel e de sua amante. De infidelidades feitas de feridas minúsculas, de humilhações, de remorsos e solidão. Do uso e abuso de máscaras. Infidelidades feitas não só de deslealdade amorosa, mas de mentiras. Mentiras sobre quem se é. Mentiras sobre de quem se gosta. As dele, as dela. Mas na pedra do túmulo vai estar escrito: Tributo do amor conjugal. Essa é uma história triste, sobre a qual todos acham que sabem muito. E nada ou quase nada conhecem. Vontade de embebedar-me. Brindar à morte, talvez, murmurando: Celebrarei na minha flauta amena, teus olhos, morena. Hei-de procurar em Musset ou Byron algumas linhas que falem da dor da perda. Perda de um coração de ouro. Enviarei, sem remetente, uma poesia ao Pirahí. Trabalharei as quadras ao gosto do tempo, misturando fanatismos de amor, palpites de morte, melancolia de Outono e tristezas da separação. Feita de versos gastos, será minha homenagem anónima:

É chegado o momento de partir

Dor e luto se apossam do meu ser

Longe de ti, ó anjo feiticeiro

A vida é treva, não posso viver.

A bordo do Équateur, Novembro de 1864

Chère Maman

Estou saudoso. Lembro-me de lhe dar o braço até à rua Daru. No frio Inverno, os oito braços das cruzes apoiados em meias-luas, as flechas e os bulbos dourados da igreja de São Alexandre Nevski guiavam o nosso caminho. Reunidos com a mais profunda veneração na cela do seu guia espiritual, fomos abençoados pelo homenzinho magro de olhos brilhantes. À frente de numerosos ícones de revestimento cintilante, uma Virgem de grandes dimensões e reproduções de pintores italianos, se prosternou aos seus pés, cabeça no chão, à russa. Que grande santo esse starets! Aliviou minha alma e lhe beijar as mãos descarnadas. Maman, reze por mim e para que essa viagem me traga o tesouro que procuro. Graças à conjunção de vapor e vela, o Équateur entra, rapidamente, nas águas do Brasil. O Cruzeiro do Sul cintila entre farrapos de nuvens. Respiro o cheiro das matas tropicais. É diferente do odor das nossas florestas de pinheiros, da imensidão dos campos de feno cobertos de um véu azul que parece preso ao céu por pregos prateados. Longe da agitação de Paris, mergulho no silêncio das noites no Hemisfério Sul. Silêncio só quebrado pelo riso de Vera e Luís César na cabine ao lado. Ah, os recém-casados! Tranquilize-se. O diplomata brasileiro faz minha irmã feliz!» In Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,