domingo, 31 de agosto de 2014

The Best Of no 31. Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa. «Que vento atravessa a fortaleza? Perto (muito perto) a gruta, sem vento, acolhe poeira, vestígios de ouro e de sangue, por entre o lixo e os musgos enegrecidos»

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«Do meio desta Serra derramando
a saudosa vista nas salgadas
águas humildes, quando e quando inchadas,
conforme o vário vento vai soprando,
estou comigo só considerando,
donde foram passar coisas passadas,
e donde irão presentes mal fundadas,
pois pelos mesmos passos vão passando.
Oh qual se representa nesta parte
aquela derradeira hora de vida
tão devida, tão certa e tão incerta!
Em quantas tristes partes se reparte,
dentro nest’alma minha entristecida,
a dor, que em tais extremos me desperta!»


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Alquimia no 31. Fulcanelli. O Mistério das Catedrais. «Os médicos davam as suas consultas na própria entrada da basílica, à volta da pia da água benta. Foi aí que a ‘Faculdade de Medicina’, abandonando no século XIII a Universidade para viver independente»

A Alquimia
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«(…) Outras cerimónias, especialmente atractivas para o povo, se mantiveram aí durante todo o belo período medieval. Foi a Festa dos Loucos, ou dos Sábios, quermesse hermética processional, que partia da igreja com o seu papa, os seus dignitários, os seus entusiastas, o seu povo, o povo da Idade Média, ruidoso, travesso, chistoso, transbordante de vitalidade, de entusiasmo e de ardor, e se espalhava pela cidade... Sátira hilariante de um clero ignorante, submetido à autoridade da Ciência disfarçado, esmagado sob o peso de uma indiscutível superioridade. Ah!, a Festa dos Loucos, com o seu carro do Triunfo de Baco conduzido por um centauro e uma mulher-centauro, nus como o próprio deus, acompanhado pelo grande Pan; carnaval obsceno tomando posse das naves ogivais! Ninfas e náiades saindo do banho; divindades do Olimpo sem nuvens e sem enfeites: Juno, Diana, Vénus, Latona, reunindo-se na catedral para aí ouvirem missa! E que missa! Composta pelo iniciado Pierre de Corbeil, arcebispo de Sens, segundo um ritual pagão e em que as paroquianas do ano 1220 soltavam o grito de alegria das bacanais: Evohé! Evohé! - E os homens do coro, em delírio, respondiam:

Haec est clara dies clararum clara dierum!
Haec est festa dies festarum festa dierum!
(Este dia é célebre entre os dias célebres!
Este dia é dia de festa entre os dias de festa!)

Foi ainda a Festa do Burro, quase tão faustosa como a precedente, com a entrada triunfal, sob os arcos sagrados, de mestre Aliboron, cujos cascos pisavam outrora a calçada judia de Jerusalém. O nosso glorioso Christophore era aí celebrado num ofício especial em que se exaltava, após a epístola, esse poder asinino que valeu à Igreja o ouro da Arábia, o incenso e a mirra do país de Sabá. Paródia grotesca que o sacerdote, incapaz de compreender, aceitava em silêncio, a cabeça curvada sob o ridículo lançado às mãos cheias por esses mistificadores do país de Sabá ou Caba, os cabalistas em pessoa! E é o próprio cinzel dos mestres imagistas do tempo que nos confirma estes curiosos divertimentos.
Com efeito, na nave de Notre-Dame de Estrasburgo, escreve Witkowski, o baixo-relevo de um dos capitéis dos grandes pilares reproduz uma procissão satírica em que se distingue um porco, portador de uma pia de água benta, seguido de burros vestidos com hábitos sacerdotais e de macacos munidos de diversos atributos da religião, assim como uma raposa encerrada num relicário. É a Procissão da Raposa ou da Festa do Burro. Podemos acrescentar que uma cena idêntica, com iluminuras, figura no folio 40 do manuscrito n.º 5055 da Biblioteca Nacional. Foram enfim estes costumes bizarros, em que transparecia um sentido hermético por vezes muito puro, que se renovavam em cada ano e tinham por teatro a igreja gótica, como a Flagelação da Aleluia, na qual os meninos de coro expulsavam a grandes golpes de chicote os seus ruidosos sabots (pião com perfil de cruz) para fora das naves da catedral de Langres; o Cortejo de Carnaval, a Diabrura de Chaumont; as procissões e banquetes da Infantaria de Dijon, último eco da Festa dos Loucos, com a sua Mãe Louca, os seus diplomas rabelaisianos, o seu estandarte em que dois irmãos, pés com cabeça e cabeça com pés, se divertiam a descobrir as nádegas; o curioso Jogo da Pelota, que se disputava na nave de Saint-Etienne, catedral de Auxerre que desapareceu cerca de 1538; etc.

A catedral é o refúgio hospitaleiro de todos os infortúnios. Os doentes que vinham implorar a Deus o alívio dos seus sofrimentos em Notre-Dame de Paris permaneciam nela até à sua cura completa. Destinavam-lhes uma capela situada perto da segunda porta e iluminada por seis lamparinas. Aí passavam as noites. Os médicos davam as suas consultas na própria entrada da basílica, à volta da pia da água benta. Foi aí que a Faculdade de Medicina, abandonando no século XIII a Universidade para viver independente, veio dar as suas sessões e se fixou até 1454, época da sua última reunião, convocada por Jacques Desparts». In Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, colecção Esfinge, 1975.

Cortesia E70/JDACT

Flamengo no 31. Lágrimas de Ametista. «Ó tu que me esperas além… Não sei quem és. Não vejo teu rosto. És o desconhecido, o outro, o outro lado da face imediata do quotidiano. Quem dera celebrar-te como o ópio da vida! E não pensar, fechar os olhos e não acordar»

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«Não quero estar só!
Vem comigo ver o túnel das estrelas.
Vem ver como sorri o amanhã.
Vê como dançam as flores
e como bailam
as belas borboletas de mil cores!
Olha o sonho encantado,
o coelho que salta do chapéu,
e o arco-íris que com o seu manto
me transporta desta terra ao céu!»
(…)


A Voz
«Quando estou só, no silêncio amargo,
na solidão que me pesa enfim,
ouço uma voz que sempre me fala,
toca-me a mão e segreda assim:
porque estás triste, se eu estou aqui,
minha menina, como tu és louca!
Fixa aquele ponto, estou pensado em ti,
para te amar é esta vida pouca!
E ao mesmo tempo que a voz se apaga,
sobe uma onda de estranha magia,
eu fico leve como urn ser etéreo,
que em si possui o dom da harmonia.
A voz sumiu deste lugar vazio,
e eu olho em frente e já não te vejo
só o meu corpo fica unido ao teu,
pela saudade de um antigo beijo.
Depois, memórias passadas
de uma lembrança meio indefinida
traz-me contigo imagens adiadas,
de qualquer coisa há muito vivida.
E a tua voz, no silêncio amargo,
rompe de novo minha solidão,
conta-me histórias de que não me lembro
e me transportam noutra dimensão.
E este tu que eu não entendo,
e esta voz sempre a segredar
chamam-me a um lado novo da vida
aonde agora, eu já posso entrar»


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Cartas de Amor no 31. Cartas a Katherine Whitmore. Pedro Salinas († 1951). «Paz hacia el futuro, sabes? Muchas, todas las palabras de tu carta me han conmovido este libro representa tantísimo en mi vida... Lloro sin querer... Wonder, beauty, terror..., lo mismo que yo te decía, coincidencia milagrosa…»

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Madrid, 24 de Janeiro de 1934
«Katherine, bendita mía, día bendito para mí, hoy. Llegó tu carta del 11, la de la recepción del libro. Toda, toda, sin palabra perdida, me ha ido derecha al corazón, donde tú querías, verdad? Cómo te agradezco, alma, la falta de preparación de esa carta, su brotar como de manantial, su veracidad continua! Prueba de amor, de confianza en mí y conmigo la que me das al escribir así. Haces muy bien en fiarte de ti entera. Si tú hubieses encargado esa carta a tu inteligencia, a tu juicio, a tu deseo de agradarme, de decirme cosas bonitas de mis poemas, hubiese apreciado tu carta, de seguro, pero jamás como aprecio ésta, escrita sobre la inteligencia y los juicios, escrita con tu vida en acción. Tú sabes lo que te mandaba, vida. Lo has sabido perfectamente. Mi libro no era mi libro. Lo que yo te he mandado no eran poemas, no poesía, sino sobre eso, puesto encima de todo, sirviendo la poesía y el libro únicamente como apoyo, como punto de arranque, algo más entrañablemente tuyo y mío, sólo tuyo y mío, de nadie más, el amor de nuestra vida. No es un libro: es una prenda, una señal material, una memoria, una promesa del amor de nuestras vidas. Y qué bien lo ves tu, Katherine! No es mi poesía lo que alabas apenas, no: es mi amor, lo que sientes, es lo que te mandaba. Qué error hubiese sido contestar al poeta y no al enamorado! Y tu inteligencia de amor ha acertado, como siempre. Toda la emoción que tú sentiste esa noche vuelve a mí, se me comunica, regresa. Me dices cosas tan elementalmente sencillas y directas que me quedo ante ti, ante ellas, como purificado y renovado. Katherine, me canta en el alma el contento de ti, la satisfacción de ti, el orgullo de ti. Cuanto más agradeces tú mi libro, en tus frases, más agradezco yo tu amor tras ellas. No he leído tu carta pasivamente, no. No me he dejado querer por ti, sino que sentía, paralelamente, a cada expresión de amor tuya, subir en mí, en vez del simple agrado, del simple gusto de recibirla, como mi ola de amor equivalente, respondiéndote. Era una respuesta inmediata, como la luz al dar en un cuerpo que suscita en el acto su sombra. Comprendes, Katherine, lo más hermoso del efecto de tu carta? Que me hacías quererte conforme me querías. Que tu misma te ganabas tu amor, con tus actos, con tus palabras, y que yo sentía lo más hermoso que se puede sentir: el acorde perfecto, el funcionamiento sin falta de un amor que da y reciba vida y provoca con cada uno de sus movimientos el movimiento responsivo (relativo à resposta) correspondiente. Katherine, hay alegrías inmensas en la vida, oyes? De dos clases, para mí, nada más. Una cuando estás conmigo, otra cuando estamos separados. De esta segunda, la de hoy no reconoce igual. Sólo podría aumentarse – y cómo, hasta qué cielos! – con tu estar aquí o con mi estar allí. Pero de no ser así, mi alegría de hoy es inmensa. Es de esos días en que se siente la alegría de ser, de haber sido, de seguir siendo. En que todo, inquietud, dolor, temores, ansia, hace tregua y se nos abre como una inmensa paz, pero no paz quieta, inmóvil, sino una paz dinámica, que empuja, que nos alza. Paz hacia el futuro, sabes? Muchas, todas las palabras de tu carta me han conmovido este libro representa  tantísimo en mi vida... Lloro sin querer... Wonder, beauty, terror..., lo mismo que yo te decía, coincidencia milagrosa, en mi carta de ayer pero lo que me vuelve serenamente loco de gozo es que sientas mi libro, as if were the beginning of another book (como se fosse o princípio de outro livro) Cuando me dices: Let’s live another book beginning now (vivamos outro livro que começa agora), siento que no se puede decir más. Me llenas de fuerza, de energía, de ánimos de vivir, de ser y hacer más, y todo a ti debido. Y aún hay otra cosa, tan profundamente emocionante: hablas, al paso – y muy bien – de mis poemas y de pronto dices, con tu modestia: And who am I to judge? (e quem sou eu para julgar?). Pero inmediatamente, Katherine, sin vacilar, escribes, con un orgullo que me llena de orgullo: Who else can judge so well, Pedro? (quem mais pode julgar também, Pedro?). Eso es, alma, eso es. Eso quiero. En esta frase aceptas mi libro, lo haces tuyo, lo das máximo valor nuestro. Eso es. No es poesía, sólo, no, es literatura, no es vida, vida vivida, y ni críticos, ni historias, ni años, podrán jamás juzgar mejor que la criatura por quien esa vida fue vivida, a cuyo lado fue vivida. Ese orgullo de tu esencial colaboración en mi libro, ese Sí, Pedro, ese sí, soy yo, ese reconocerse en él. Eso salvaremos, oyes?, alma, siempre. Leerán ese libro otros ojos, otros seres, pasarán los poemas por otras manos, pero en el fondo primero de todo, vistos por todos y no vistos por nadie, presentes para todos, estaremos abrazados, sin que nadie nos desuna jamás, tú y yo. Katherine? Pedro? No sé. El amante, la amada? No sé. Tú y yo, sí sé. Dos seres que se aman desesperada y esperadamente, y han buscado antes de tener espacio en la tierra, espacio más allá! Me alegro de ser poeta, de haber escrito versos, de todo lo que me ha llevado a este libro. Pero no me engaño: yo solo no lo hubiese escrito. Sin un alma tan hermosa como la tuya no habría sido. Gratitud? Más que gratitud. Conciencia clara, radiante, de que toda la hermosura que puede haber en mi libro me une a ti, me enlaza a ti. Y no podré jamás sentir que el libro es mío. No me sentiré nunca solo, en él».

Pedro

In Pedro Salinas, (1891-1951), Cartas a Katherine Whitmore de 1932 a 1947, de Amor e Desamor, Marco Contextual, Geração de 27, Wikipédia.

Cortesia de Wikipédia/JDACT

Teoria e História no 31 (II). A Cultura em Portugal. António José Saraiva. «Coimbra é, o centro da resistência de D. Sancho II na guerra que lhe moveu o seu irmão, que desembarcou em Lisboa e dela fez o ponto de partida da sua ofensiva»

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«(…) Mas se quisermos indicar a zona densa donde partia a irradiação para leste e para sul temos de nos limitar à nesga de terra que constituíra o território dos condes portucalenses, uma região à volta de Portucale, que abrange Braga e Guimarães e se prolonga no território de Coimbra, incluindo Viseu e Lamego. E a gente aqui acumulada que inicialmente constitui Portugal. Esta região ainda hoje é a parte mais densamente povoada e mais tradicionalista do País, e foi dela que partiu a ocupação do resto. Não havia nesta região pobre, embora povoada, uma só cidade importante à escala peninsular, comparável a Burgos, Santiago de Compostela, Leão, Toledo, Saragoça ou Sevilha. Braga, antiga capital romana da Galiza, era uma velha cidade episcopal, Guimarães, um pequeno núcleo de homens de negócio e cavaleiros, Viseu e Lamego, povoações antigas que se tornaram sedes episcopais nos princípios da monarquia. Quanto ao Porto, nos tempos que imediatamente precederam a fundação do reino, não existia ainda, a não ser como arrabalde incipiente de Portucale, uma cidade episcopal visigótica no lado esquerdo do Douro, onde está hoje Vila Nova de Gaia; durante os primeiros dois reinados da monarquia cresceu de uma forma galopante e selvagem na outra margem, até se tornar um considerável burgo e um porto de comerciantes e de mercadores, em relação com o Norte da Europa e procurando libertar-se da tutela senhorial do bispo. Era uma cidade de plebeus e sem tradições, a não ser a da revolta contra o senhor. A verdadeira cidade tradicional era então Coimbra, onde porventura permanecia a reminiscência das instituições municipais romanas, cidade moçárabe que já nos tempos do conde Sesnando (1064-1092) fora sede do estado condal e também sede de bispado desde 1080. Ali se fundaram, além da Sé, o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde o rei recrutava os seus escribas e chanceleres e onde eram depositados documentos oficiais. Cibdat real lhe chamava a Crónica General de España de Afonso X, no tempo de Sancho II ou Afonso III, o que significava que era uma cidade importante no reino de Portugal, conquanto do ponto de vista ibérico devesse considerar-se como uma pequena capital de uma província pobre e distante. Para sul, já fora do núcleo inicial, em regiões recentemente conquistadas, Lisboa e Santarém encerram uma considerável população moçárabe e estão envolvidas por uma população agrícola moura escrava ou livre. Mais para sul, Évora e Alcácer do Sal, só definitivamente conquistadas no tempo de Afonso III, parecendo esta perder o seu esplendor antigo desde a ocupação cristã. Afonso Henriques, como o conde Sesnando, reside ordinariamente em Coimbra, como também os três reis seguintes. Mas Sancho I faz já longas estadas em Santarém. Coimbra é, o centro da resistência de D. Sancho II na guerra que lhe moveu o conde de Bolonha, seu irmão, que desembarcou em Lisboa e dela fez o ponto de partida da sua ofensiva. É só no reinado de Afonso III que Lisboa, já então cidade importante, se torna assento frequente da corte. Este rei era talvez o principal proprietário de casas e mercados na cidade. Notemos que Afonso Henriques subsidia largamente as sés de Lisboa, Coimbra, Porto, Braga, Viseu, Lamego e Évora, além do Mosteiro de Alcobaça, que então se edificava num lugar solitário. Estes templos não correspondem à importância dos núcleos urbanos onde se construíam». In António José Saraiva, A Cultura em Portugal, Gradiva, Lisboa, 1991.

Cortesia Gradiva/JDACT

Música Celta no 31. Salette Tavares. «No surgir da manhã chamei-te imagem na ternura maravilha do meu olhar de sede recolhi-te gota de desejo canto encontrado na sombra de meus dedos»

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«O poço não é o mar
a rua não é o rio
janela não é castelo
o frio não vazio.
O olho não é a lua
o barco não é o peixe
caranguejo não é beijo
caravela não é vela.
A neve não é o lírio
o sorvete não é mel
sintoma não é suspiro
e folha não é papel.
Mariposa não é cor
laranja não é limão
ilusão não é amor
favo não é coração»


«No surgir da manhã chamei-te imagem
na ternura maravilha do meu olhar de sede
recolhi-te gota de desejo
canto encontrado na sombra de meus dedos.
De sonho te vesti.
Fui eu que te inventei os gestos, o sorriso,
o porte que te moves e respiras,
e, lentamente no meu seio atento,
todo o resto de calor que em mim trazia
foi sol que se vai pôr
multiplicado de volúpia e de fulgor»

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Teoria e História no 31 (I). A Cultura em Portugal. António José Saraiva. «Era uma ‘ideia’ do território português diferente da que veio a realiza-se: “era um espaço que abrangia o triângulo noroeste da Península até ao Tejo”»

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«(…) Esta primeira época da cultura portuguesa que abrange os primeiros três ou quatro reinados da monarquia é uma época de formação, porque os elementos que a constituem ainda não estão organizados no espaço, não existe ainda um pólo que receba, transforme, elabore e retransmita os movimentos e processos próprios de um meio que no seu conjunto já se distingue dentro do meio ibérico. Em certa medida cabe a esta época a designação de idade heróica, porque é aquela em que a expressão mais popular da comunidade se encontra nos cantos épicos. A idade heróica, diz Menéndez Pidal, é aquela vivida por alguns povos que, antes de terem desenvolvido a prosa historiográfica em língua vulgar, sentem a necessidade de cultivar a sua história, e têm de fazê-lo na única forma literária então existente, em forma poética, em cantos públicos. Só nesta época em Portugal os encontramos. Aliás, esta fase cultural corresponde à da conquista permanente do território, em que o papel mais activo cabe a um bando de conquistadores que avança de norte para sul. Podemos dizer que, do ponto de vista cultural, nesse tempo Portugal é um espaço linguístico. Há uma população que fala o português, que tem chefes naturais, no seio da qual já aparecem textos em português, população que tem a sua tradição poética oral e musical na sua língua própria. Neste espaço encontramos pequenos focos de saber clerical, baseado na escrita e no livro. Mas são franjas de um centro cosmopolita, situado fora de Portugal: pertencem na realidade mais à história da Igreja do que à história nacional. Basta pensar que não cabem no nosso espaço as duas principais personalidades que aqui se formaram, Santo António, dito de Pádua e que nós chamamos de Lisboa, atendendo ao seu lugar de nascimento, e o Papa João XXI, mais conhecido por Pedro Hispano, antigo abade de Vermoim. E, quanto à produção poética autóctone, pertence sem dúvida ao espaço linguístico nacional, mas o que sabemos dos centros donde irradiou leva-nos para fora dos limites geográficos e cronológicos do reino de Portugal. O espaço linguístico de que falamos nem sequer constituía uma entidade política. Abrangia a actual Galiza, todo o Norte de Portugal, que constituía o território portucalense, e o chamado território de Coimbra, ou conimbricense, cujo limite sul era o Mondego. A Estremadura, entre o Mondego e o Tejo, era um território ermo e assolado pela guerra. Quanto a Sintra, Lisboa, ninho de piratas, e sobretudo Santarém, cidade muito importante, eram, no fim do reinado do Fundador, povoações de conquista recente, ainda fortemente arabizadas; todo o Alentejo era teatro de guerra, embora Évora, conquistada por um caudilho mouro aliado de Afonso Henriques, tivesse permanecido constantemente em mãos cristãs, no meio dos fluxos e refluxos da chamada Reconquista. Para leste, a fronteira não estava bem determinada e menos ainda povoada. Afonso Henriques pretendeu alargar o território não só para a Galiza, que chegou a ocupar parcialmente durante algum tempo, mas também para Zamora, Toro, Salamanca, Valladolid, Cáceres, Badajoz, regiões onde não se falava ainda o castelhano, mas dialectos leoneses ou moçárabes, com características próximas do galego-português. Era uma ideia do território português diferente da que veio a realiza-se: era um espaço que abrangia o triângulo noroeste da Península até ao Tejo. Fora já a ideia do conde Henrique e de D. Teresa. A resistência oferecida pelos reis de Leão e de Castela obrigou todavia os chefes portugueses a canalizarem o seu expansionismo para o Sul, tanto mais que as estradas romanas lhes facilitavam o caminho nesse sentido». In António José Saraiva, A Cultura em Portugal, Gradiva, Lisboa, 1991.

Cortesia Gradiva/JDACT

sábado, 30 de agosto de 2014

O Mediterrâneo como fonte de informação do Oriente. Martim Lopes. «Começa o doutor Martim Lopes por tecer considerandos sobre as viagens empreendidas por portugueses no decorrer do século que então findava, fazendo especial menção das que realizaram em tempo do Infante e dos reis Afonso V e João II»

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«Até hoje ainda se não conseguiu descobrir qualquer pista que nos informasse com segurança quem terá sido o doutor Martim Lopes. Da carta que de Roma escreveu ao rei Manuel I, em 1 de Fevereiro de 1500, publicada por António Baião, que a encontrou no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, pode depreender-se que vivia habitualmente na corte romana; e é também lícito concluir, e de um modo irrefutável, que tinha a curiosidade aguçada para o conhecimento de novos reinos e de novas terras, pois a carta é quase que exclusivamente dedicada a indicações sumárias sobre os seus itinerários de andarilho. Vamos seguir essa única fonte de informação de que dispomos sobre as suas aventuras. Começa o doutor Martim Lopes por tecer considerandos sobre as viagens empreendidas por portugueses no decorrer do século que então findava, fazendo especial menção das que realizaram em tempo do Infante e dos reis Afonso V e João II; todavia, alude a elas de um modo geral, apenas reconhecendo que todas se tinham dirigido para sul. A essas viagens havia que acrescentar a grande expedição de Vasco da Gama, efectuada já no reinado do monarca a quem se dirigia e que tinha levado os Portugueses à Índia e, segundo ele diz, com claro exagero, também ao mar Vermelho. Com efeito, é bem sabido que até à data em que a carta foi subscrita nenhuma embarcação portuguesa tinha penetrado nesse mar. Por outro lado, não pode deixar de ser assinalado que, apesar de a notícia da viagem de Gama se ter espalhado rapidamente pela Europa, Martim Lopes não parece mostrar-se muito seguro da sua realização; as informações sobre essa recente e decisiva expedição tinham-lhe chegado, aliás, por via oral, circunstância que o aconselhava a não ser afirmativo, como deixa expresso através de duas palavras cautelosas segundo dizem que intercala no trecho em que a ela se refere. Verificando que a tendência dos seus compatriotas viajantes era dirigirem-se para o Meio-Dia, e que poucos ou nenhum, entre os que seguiam para o Norte, ultrapassavam a Inglaterra e a Flandres, tomara ele mesmo a decisão de empreender uma viagem de horizontes mais largos, ou seja, no sentido de fazer o conhecimento de regiões da nossa gente não sabidas, como escreve. A carta reduz praticamente a peregrinação realizada às suas escalas mais importantes. Diz Martim Lopes que, ao sair de Roma, se dirigira à Alemanha, e daí descera a Esclavónia; esta designação ptolomaica (como aliás muitas outras da missiva, o que se assinalará em cada caso) veio mais tarde a ser substituída por Eslavónia, e integrada na Croácia; abrangia três condados, e chegava até o Adriático. Da Esclavónia passara à Boémia (também assinalada nas tábuas das edições ptolomaicas), à Hungria, à Polónia e à Valáquial esta última nação era, ao tempo, um principado danubiano, que está hoje integrado na Roménia, constituindo a área a poente desta república. Deixando a Valáquia, entrara na Turquia, que visitara em grande parte, na Rússia (entendida aqui, como é evidente, no sentido clássico da designação) e na Tartária, ambos topónimos registados nas tábuas das edições quatrocentistas de Ptolomeu, esclareça-se que a Tartária se estendia até o mar Negro, ocupando uma boa área da actual Ucrânia. Continuando no sentido do sul, atingira o mar (ou lago) Meotes (ou seja, o Palus Maeotes de Ptolomeu), identificável com o mar de Azove sem qualquer sombra de dúvida. Esclarece o doutor Martim Lopes que daí se podia passar por terra, em poucas jornadas, ao mar Vermelho, à Arábia e ao Egipto; mas não quantifica os dias de viagem nem diz qual a via a seguir. Continuando o seu caminho, atingira o rio Tanais (quer dizer, o Don), que em certa cartografia medieval aparece representado a separar a Europa da Ásia; para o signatário da carta que se está a seguir, essa separação fazia-se, porém, nos montes Rifeios, como ele diz aliás expressamente. Os montes Rifeios são identificáveis com os Cárpatos, e neste sentido o autor não teria razão ao indicá-los como zona fronteiriça entre os dois continentes só, porventura, o terá feito porque a Turquia se estendia então pela Europa, e a Turquia era asiática. Não seria, porém, a única fronteira e ele mesmo parece dar-se conta disso quando escreve que ali soubera que os chamados montes Hiperbóreos não ficavam muito distantes, e que, para além deles, e não muito distanciada, se situava a India». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Afonso de Albuquerque, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT

A Vida Crucis do Corpo. Contos. Clarice Lispector. «Mas fez uma coisa que era traição. Ixtlan a compreenderia e perdoaria. Afinal de contas, ‘a pessoa tinha que dar um jeito, não tinha?’ (…) antes de ir embora deixou na mesa-de-cabeceira uma libra inteira! Bem que estava necessitada de dinheiro»

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«(…) Depois foi ao Hyde Park e deitou-se na relva quente, abriu um pouco as pernas para o sol entrar. Ser mulher era uma coisa soberba. Só quem era mulher sabia. Mas pensou: será que vou ter que pagar um preço muito caro pela minha felicidade? Não se incomodava. Pagaria tudo o que tivesse de pagar. Sempre pagara e sempre fora infeliz. E agora acabara-se a infelicidade. Ixtlan! Volte logo! Não posso mais esperar! Venha! Venha! Venha! Pensou: será que ele gostara de mim porque sou um pouco estrábica? Na próxima lua cheia perguntaria a ele. Se fosse por isso, não tinha dúvida: forçaria a mão e se tornaria completamente vesga. Ixtlan, tudo o que você quiser que eu faça, eu faço. Só que morria de saudade. Volte, my love. Sim. Mas fez uma coisa que era traição. Ixtlan a compreenderia e perdoaria. Afinal de contas, a pessoa tinha que dar um jeito, não tinha? Foi o seguinte: não aguentando mais, encaminhou-se para o Picadilly Circle e achegou-se a um homem cabeludo. Levou-o ao seu quarto. Disse-lhe que não precisava pagar. Mas ele fez questão e antes de ir embora deixou na mesa-de-cabeceira uma libra inteira! Bem que estava necessitada de dinheiro. Ficou furiosa, porém, quando ele não quis acreditar na sua história. Mostrou-lhe, quase até o seu nariz, o lençol manchado de sangue. Ele riu-se dela.
Na segunda-feira de manhã resolveu-se: não ia mais trabalhar como datilógrafa, tinha outros dons. Mr. Clairson que se danasse. Ia era ficar mesmo nas ruas e levar homens para o quarto. Como era boa de cama, pagar-lhe-iam muito bem. Poderia beber vinho italiano todos os dias. Tinha vontade de comprar um vestido bem vermelho com o dinheiro que o cabeludo lhe deixara. Soltara os cabelos bastos que eram uma beleza de ruivos. Ela parecia um uivo. Aprendera que valia muito. Se Mr. Clairson, o sonso, quisesse que ela trabalhasse para ele, teria que ser de outro bom modo. Antes compraria o vestido vermelho decotado e depois iria ao escritório chegando de propósito, pela primeira vez na vida, bem atrasada. E falaria assim com o chefe: Chega de datilografia! O Sr. que não me venha com uma de sonso! Quer saber de uma coisa?, deite-se comigo na cama, seu desgraçado!, e tem mais: pague-me um salário alto por mês, seu sovina!
Tinha certeza de que ele aceitaria. Era casado com uma mulher pálida e insignificante, a Joan, e tinha uma filha anémica, a Lucy. Vai é se deliciar comigo, o filho de uma cadela. E quando chegasse a lua cheia, tomaria um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan.

O Corpo
Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado. Na noite em que viu O último tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres. Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra. Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra. A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. Mas Carmem levantou-se de manhã, preparou um lautíssimo desjejum, com gordas colheres de grosso creme de leite, e levou-o para Beatriz e Xavier. Estava estremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em forma de novo. Nesse dia, domingo, almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz, a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de passas e ameixas, tudo húmido e bom. Às seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel. E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam muito cansados. E assim era, dia após dia. Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta óptima. Mas nada contava em casa pois não era doido. Passavam-se dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinquenta. A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas, escolhia biquini e um soutien mínimo para os enormes seios que tinha. Um dia, Xavier só chegou de noite bem tarde: as duas desesperadas. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros. Xavier chegou com uma fome que não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanhe. Estava em pleno vigor. Conversou animadamente com as duas, contou-lhes que a indústria farmacêutica que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas irem os três a Montevideu, para um hotel de luxo. Foi uma tal azáfama a preparação das três malas. Carmem levou toda a sua complicada maquilagem. Beatriz saiu e comprou uma mini-saia. Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas». In Clarice Lispector, A Via Crucis do Corpo, Rocco, Rio de Janeiro, 1998, ISBN 85-325-0950-9.

Cortesia de Rocco/JDACT

O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa: Carl Erdmann. «Após a morte de Sancho de Castela (1159), tornou-se o seu território campo de inúmeras lutas, em que também interveio Fernando de Leão. Este conseguiu em 1160 apossar-se de grande número de lugares fortificados castelhanos»

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Alexandre III
«(…) Mas o arcebispo João Peculiar sabia muito bem que não possuía direitos de metropolita sobre Évora; o lugar pertencia à Lusitânia, portanto à província eclesiástica de Mérida-Compostela. O exemplo de Lisboa, que com igual certeza era lusitana e por isso não havia podido ser mantida por João Peculiar, reteve-o de usurpar inutilmente os direitos compostelanos. Fez por isso apenas aquilo que a situação da guerra e a necessidade de imediato provimento da Sé episcopal podiam justificar: fez a sagração mas não exigiu obediência ao novo bispo, que devia ficar sujeito ao arcebispo de Compostela. Não urgia, porém, prestar obediência a Santiago. O rei Afonso Henriques, por um lado, não queria saber de tal, e por outro a pobreza da igreja de Évora dava ao bispo suficiente pretexto para não fazer a longa viagem a Santiago. Assim ficou sem resolver a questão do bispado. Dava-se quase a mesma coisa com a maioria dos bispados portugueses. Quanto ao de Lisboa, tinha-se Afonso Henriques visto obrigado a consentir (1158) que o bispo Gilberto reconhecesse Compostela como sua metrópole. Mas, quando o bispo Gilberto morreu em 1166, bem soube o rei mais uma vez conseguir a sagração do sucessor pelo arcebispo João Peculiar. Por outro lado, Compostela nunca abandonara as suas pretensões aos bispados de Coimbra, Viseu e Lamego, e por isso o arcebispo de Braga podia considerar como pertencendo incontestavelmente à sua província, de entre todos os bispados portugueses, só o bispado do Porto.
Isto constituía uma contínua fonte de incertezas e tinha de levar infalivelmente a um conflito, logo que em Santiago acabassem as confusas questões internas de que sofria o arcebispado no tempo de Fernando II e governasse um arcebispo enérgico; o rei de Portugal porém, que era quem mais estava interessado na regularização destas questões, tinha todos os motivos para proceder sempre com extrema cautela. A isto acrescia a questão do primado de Toledo, ainda não resolvido definitivamente. Os direitos toletanos continuavam imutáveis, e também aqui se esperava na primeira oportunidade nova perturbação. Tal oportunidade surgiu em breve. Após a morte de Sancho de Castela (1159), tornou-se o seu território campo de inúmeras lutas, em que também interveio Fernando de Leão. Este conseguiu em 1160 apossar-se de grande número de lugares fortificados castelhanos, e sobretudo ficou Toledo nas mãos dos seus sequazes durante anos seguidos. Desta forma, os direitos de primazia sobre Braga, que a separação de Castela e Leão havia tornado politicamente absurdos, ganharam de novo certa importância, e não levou por isso muito tempo sem que o arcebispo João de Toledo fizesse mais uma vez surgir a velha questão.
Encontrou-se em Anagni com Alexandre III nos princípios de 1161 e conseguiu aí que o papa mandasse em 26 de Fevereiro nova bula ao arcebispo de Braga e seus sufragâneos, ordenando-lhes que obedecessem ao primaz de Toledo. Em caso de desobediência, passaria, como sanção, o bispado de Zamora pare Toledo. Dois anos mais tarde, em 11 de Julho de 1163, Alexandre III foi ainda mais longe e desligou de obediência os sufragâneos, se o arcebispo João Peculiar se não submetesse». In Carl Erdmann, O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa, Universidade de Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1935.

Cortesia de Separata do Boletim do Instituto Alemão/JDACT

Paradoxo do Progresso Ilimitado das Ciências. Fulcanelli. «Interroguem um camponês e ele dirá que a terra está a morrer, que as estações andam trocadas e que mudou o clima. Tudo o que vegeta sofre de falta de seiva e de resistência»

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Os domínios do mistério prometem as mais belas experiências. In Einstein

«A todos os filósofos, às gentes instruídas quaisquer que sejam, aos sábios especializados e aos simples observadores, permitimo-nos fazer esta pergunta: Por acaso já reflectistes nas consequências fatais que resultarão dum progresso ilimitado? Já por causa da multiplicidade de conquistas científicas, o Homem só consegue viver à custa de energia e de resistência, num ambiente de actividade trepidante, febril e malsã. Criou a máquina que centuplicou os seus meios e o seu poder de acção, mas tornou-se escravo e vítima dela: escravo durante a paz, vítima durante a guerra. A distância deixou de ser obstáculo para ele; transporta-se com rapidez dum ponto a outro do Globo, por via aérea, marítima e terrestre. Não vemos, porém, estas facilidades de deslocação tornarem-no melhor ou mais feliz; pois se o adágio pretende que as viagens formam a juventude, não parece que contribuam para fortalecer os laços de concórdia e fraternidade que deviam unir os povos. Nunca as fronteiras foram mais guardadas do que hoje. O Homem possui a maravilhosa faculdade de exprimir o seu pensamento e de fazer ouvir a sua voz até às mais longínquas regiões; e, no entanto, esses mesmos meios impõem-lhe novas necessidades. Pode emitir e registar as vibrações luminosas e sonoras, sem com isso ganhar mais do que uma vã satisfação de curiosidade, senão uma sujeição pouco favorável à sua elevação intelectual. Os corpos opacos tornaram-se permeáveis a seu olhar, e, se lhe é possível sondar a matéria grave, em compensação que sabe ele de si mesmo, quer dizer da sua origem, da sua essência e do seu destino? Aos desejos satisfeitos sucedem outros desejos insaciados. Insistimos nisto: o Homem quer andar depressa, cada vez mais depressa, e esta agitação torna insuficientes as possibilidades de que ele dispõe. Arrebatado pelas suas paixões, as suas cobiças e as suas fobias, o horizonte das suas esperanças recua indefinidamente. É a doida corrida para o abismo, a constante usura, a actividade impaciente, furiosa, aplicada sem trégua nem repouso. Na nossa época, disse com inteira justeza Júlio Simon, temos de caminhar ou correr: quem pára está perdido. Com esta cadência, com este regime, a saúde física periga. Apesar da difusão e observação das regras de higiene, de medidas profilácticas, a despeito de inumeráveis processos terapêuticos e da acumulação de drogas químicas, a doença prossegue nos seus estragos com incansável perseverança. E, por sinal, a luta organizada contra os flagelos conhecidos parece ter só como resultado fazer dali surgir outros, novos, mais graves e mais refractários.
A própria natureza dá inequívocas notícias de cansaço: torna-se preguiçosa. À força de adubos químicos, o agricultor obtém agora colheitas de valor mediano. Interroguem um camponês e ele dirá que a terra está a morrer, que as estações andam trocadas e que mudou o clima. Tudo o que vegeta sofre de falta de seiva e de resistência. As plantas definham, é um facto verificado oficialmente, e mostram-se incapazes de reagir contra a invasão dos insectos parasitas ou o ataque das doenças de micélio. Enfim, não damos novidade alguma ao dizer que a maior parte das descobertas, orientadas de começo para o acréscimo do bem-estar humano, são rapidamente desviadas da sua finalidade e aplicadas especialmente na destruição. Os instrumentos de paz mudam-se em engenhos de guerra e bem se conhece o papel preponderante que a ciência desempenha nas conflagrações modernas. Tal é, ai de nós!, o objectivo final, o resultado da investigação científica; e tal é também a razão pela qual o homem que a prossegue com esta intenção criminosa invoca sobre si a justiça divina e se vê necessariamente condenado por ela. A fim de evitar a acusação (que, apesar disso, lhes foi feita) de perverter os povos, os Filósofos recusaram-se sempre a ensinar claramente as verdades que tinham adquirido ou recebido da antiguidade. Bernardino de Saint-Pierre mostra conhecer esta regra de sabedoria quando declara, ao fim da Chaumière Indienne (Cabana Indiana): Deve-se procurar a verdade com um coração simples; será encontrada na natureza; não se deve dizê-la senão à gente de bem. Por ignorância ou desprezo desta condição prévia, o exoterismo lançou a desordem no seio da humanidade». In Fulcanelli, 1930, Les Demeures Philosophales, 1965, As Mansões Filosofais, colecção Esfinge, Edições 70, Lisboa, 1977.

Cortesia de E70/JDACT

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Lágrimas de Ametista. Maria Mar Carvalho. «Olha o sonho encantado, o coelho que salta do chapéu, e o arco-íris que com o seu manto me transporta desta terra ao céu! Olha o carrossel em debandada, cavalos à solta, fugindo da manada, olha o fogo como rói a floresta…»

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Adeus
«Se partes não sei.
Mas ficas aqui.
Teu nome escrito
no vento,
no verde doce dos pinheiros,
no céu azul e quente,
no luar prateado.
A vida celebra teu nome.
Teu nome...
Amor...Sonho...Saudade...
Partes.
A vida é uma mola em hélice.
E o eco do tempo repete teu nome...
Teu nome...Saudade...»

Delírio
«Não quero estar só!
Vem comigo ver o túnel das estrelas.
Vem ver como sorri o amanhã.
Vê como dançam as flores
e como bailam
as belas borboletas de mil cores!
Olha o sonho encantado,
o coelho que salta do chapéu,
e o arco-íris que com o seu manto
me transporta desta terra ao céu!
Olha o carrossel em debandada,
cavalos à solta, fugindo da manada,
olha o fogo como rói a floresta,
e a água que, saltando, vai
com ele dançar uma canção de festa!
E, juntos celebram as bodas do amor!
E olha a lua, que em corrida louca
amou o sol com todo o seu ardor!
Corre depressa! Corre para mim!
Não deixes esse sonho se acabar!
Aí, então, apagam-se as estrelas,
o sol e a lua deixam de brilhar,
as borboletas, coitadinhas, fogem,
o chapéu do mágico deixa de actuar!
E então o fogo, qual banal fogueira,
sem se importar do carrossel que gira,
consome, bruto, violento, cego,
o meu belo cavalinho de madeira!»
Poemas de Maria Mar de Carvalho, in ‘Lágrimas de Ametista


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