segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O Saber. Poesia. Ruy Belo «Viste noites e dias, estações, partidas. E tão terrível tudo, porque tudo trazia no princípio o fim de tudo. A morte é a promessa: estar todo num lugar, permanecer na transparência rápida do ser»

Cortesia de wikipedia

Ácidos e Óxidos
[…]
«Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo.
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado.
Não achas que a esplanada é uma pequena pátria
a que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce.
Será verdade que não tens ninguém?
Onde é o teu refúgio, ó sítio de silêncio
e sofrimento indivisível? É necessário.

Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido
a um número. Curriculum cadastro vizinhança.
Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não achas saída.

Precário, provisório, é o teu nome.
Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste e muito menos hoje.
Espingardas e uivos e regressos, um regaço
redondo, o único verdadeiro espaço, o
sabor de não estar só, natal antigo,
o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa de pauis, de cômoros, marachas.

Viste noites e dias, estações, partidas.
E tão terrível tudo, porque tudo
trazia no princípio o fim de tudo.
A morte é a promessa: estar todo num lugar,
permanecer na transparência rápida do ser.
E perguntar será para ti responder.
Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento,
que ao dominar-te deixa que domines, mora.

Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há os outros, morres.
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do verão e a renda da casa.
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares.
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto».
Poema de Ruy Belo, in ‘Todos os Poemas


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