quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Os Silêncios do Regime. Ensaios. António Barreto. «Os números e os factos sobre as Forças Armadas, o recrutamento, a distribuição por patentes, os gastos, os orçamentos, os tipos de armamento, o comércio externo de armas…»

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«(…) Os jornalistas, enfim, só recentemente começaram a fazer da visibilidade uma divisa para o seu trabalho: honra lhes seja feita, com exclusão dos que praticam as regras da selectividade. Cada silêncio tem a sua explicação. Mas todos têm de comum o receio de prestar contas: podem ser as ligações perigosas do poder, as necessidades da propaganda política ou o desejo de esconder os próprios insucessos; pode ser a concepção errada do interesse nacional, geralmente confundido com o do Estado, do Estado num momento particular, de um governo; como poderá ser a convicção de que a política, com as suas artes, é domínio reservado aos sábios e aos sacerdotes. Pode ser tudo isso e muito mais. Mas os traços comuns a essas explicações são detectáveis. Crê-se que a opinião pública é prejudicial à conduta dos assuntos do Estado. Pensa-se seriamente que a democracia se esgota na eleição, isto é, que um poder eleito tem carta-branca para fazer o que entende durante o seu mandato. Não se pode passar a vida a discutir, é preciso
decidir!: eis uma verdade banal transformada em horrível aforismo da cultura do sucesso. Julga-se que a prestação de contas aos eleitores e aos eleitos, assim como os debates públicos que daí decorrem, são travões à eficácia dos governos. Aceita-se finalmente que a administração pública tem tais responsabilidades e é tal a sua gravidade, que só em segredo ou discretamente pode desempenhar as suas funções. Assim é que, apesar das garantias constitucionais, os cidadãos não têm ainda, de facto, direito a consultar os arquivos, nem sequer os que lhes dizem respeito.
Os estudiosos, os universitários, os jornalistas ou qualquer outro cidadão, justificadamente interessado, também não têm direito a consultar os arquivos oficiais, estudos, registos ou correspondência, dado que não há prazos legais, nem regras de acesso, nem sequer arquivos organizados com esse fim (ou antes, há alguns arquivos, poucos estão organizados, quase todos estão inacessíveis). Ainda hoje há sérios obstáculos à consulta de documentos oficiais do princípio do seculo!
Nos assuntos de actualidade, a Administração Pública, por iniciativa própria ou instruções do governo, mantém secretos os seus estudos, sejam eles sobre questões de defesa ou sobre problemas do ambiente ou da saúde. Trabalhos preparatórios de legislação, análises de situações, relatórios de fiscalização e acompanhamento, quase tudo o que é produzido nos departamentos ministeriais é reservado. Ora, muito pelo contrário, a regra deveria ser a da publicidade, a fim de que se percebam os fundamentos  e as eventuais consequências dos actos do governo e da administração.
As questões de defesa são, por definição, secretas. Apesar de ínfimos progressos recentes (por exemplo a publicação de documentação sobre a guerra colonial e de um livro-branco sobre a defesa), quase tudo o que diz respeito às Forças Armadas é sensível, sendo-o domínio secreto, entre nós, muito mais vasto do que nos países ocidentais, mesmo nos que têm mais responsabilidades, incluindo a de possuir segredos estratégicos. Os números e os factos sobre as Forças Armadas, o recrutamento, a distribuição por patentes, os gastos, os orçamentos, os tipos de armamento, o comércio externo de armas, os planos de expansão e desenvolvimento, os debates sobre estratégias e organização da defesa, em tudo isto, que não é pouco, mantém-se uma larguíssima zona de confidencialidade, mais própria de um regime inseguro do que de um Estado democrático». In António Barreto, Os Silêncios do Regime, Ensaios, Imprensa Universária, nº 96, Editorial Estampa, Lisboa, 1992, ISBN 972-33-0877-0.

Cortesia de Estampa/JDACT