domingo, 31 de janeiro de 2021

31 em Poesia. Inês Lourenço. «Abro e folheio o grosso volume da última Poesia Toda, a encantar incautos, a palavra toda…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Faz-me frio este Outono

«Faz-me frio este Outono,

a boiar sobre o corpo,

a poesia sem ancas,

a música passada

por ovo e pão ralado, faz-me

frio este fender castanho

este horizonte ao espelho,

faz-me frio o esmalte descascado

a tapar o interior

revelho»

In Inês Lourenço, Cicatriz 100%

 

Litania para um limoeiro urbano

«Para mover o céu e os alicerces, partir

velhos caixilhos e cantarias, chega o último

dos morados. Cumprido o tempo das

polpas douradas, o estio das crianças ficará

ainda algum tempo nos retratos

sépia, com hidrângeas e bicicletas, expulso

para sempre o cio dos gatos e o impudor

dos ramos nas florações precoces»

 

Mural

«A glande macia do pincel molhando o flanco

do doce cimo longe da lonjura,

os olhos e as narinas como asas

do mais belo rosa húmido da vulva,

seios da gemeralidade

da geometria láctea das fontes

e a chuva escorrendo da boca

com os líquenes da permanência».

In Cidália Dinis, Corpo Refectido, Inês Lourenço, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, Volume XXIII, Porto, 2006, [2008], Wikipedia.

Cortesia de RFLPorto/JDACT

Cidália Dinis, Cultura, Inês Lourenço, JDACT, Poesia, 

sábado, 30 de janeiro de 2021

Lenda do Brasão de Coimbra. Leo Duarte. «… estatutos elaborados e aprovados pela Assembleia da Universidade (eleita e representativa dos estudantes, dos docentes e dos funcionários) e pretende, sobretudo, ser um pólo de constante modernização»

Cortesia de wikipedia e jdact

Lenda relatada originalmente por frei Bernardo Brito

História

«(…) Hoje a Universidade de Coimbra, que compreende sete Faculdades, Letras, Direito, Medicina, Ciências e Tecnologia, Farmácia, Economia e Psicologia e de Ciências da Educação, e em breve contará com a oitava (a Faculdade de Educação Física e Ciências do Desporto), ultrapassou o espaço tradicional da Velha Alta, estendendo-se a novos pólos de desenvolvimento. Funciona com base nos seus próprios estatutos elaborados e aprovados pela Assembleia da Universidade (eleita e representativa dos estudantes, dos docentes e dos funcionários) e pretende, sobretudo, ser um pólo de constante modernização.

Mas este caminhar para o futuro não a faz esquecer as suas seculares tradições. A praxe académica adaptada às condições de vida moderna, as festas dos estudantes, nomeadamente a queima das Fitas (que simboliza o fim do ano escolar e, para muitos, o fim do curso), o fado, canção que se foi adaptando às novas realidades culturais e até políticas e sociais, os Doutoramentos solenes com o seu ritualismo próprio, as Repúblicas (residências autogeridas por estudantes) e a existência de uma Associação Académica forte, fazem da Universidade de Coimbra uma instituição muito peculiar e de características inigualáveis.

Pátio da Universidade


 

Colégio de S. Pedro

Situa-se imediatamente à esquerda da Porta Férrea e tem a sua fachada principal virada para o grande terreiro. O exterior do edifício, de linhas muito sóbrias bem próprias do maneirismo regional, apresenta o carácter que lhe conferiu recentes obras de restauro, levadas a cabo pelos Monumentos Nacionais, que estenderam o seu corpo no último terço, do lado do gradeamento.

Como principal elemento de carácter decorativo destaca-se o portal de aparato barroco, executado em 1713. O Colégio de S. Pedro ocupou os aposentos dos infantes do paço manuelino, por iniciativa dos governantes em tempo do rei Sebastião, albergando os candidatos às magistraturas superiores das Faculdades. Foi extinto em 1834 e, dois anos mais tarde, as suas instalações foram definitivamente integradas na Universidade. A partir de 1855, parte da construção foi reservada para residência da Família Real, quando esta ou algum dos seus membros estanciava em Coimbra, e também para residência dos reitores». In Leo Duarte, Lenda do Brasão de Coimbra, Pedro Dias, Coimbra, Arte e História, I.H.A., Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume IV, 1988, Editora João Romano Torres, 1904-1915.

 

Cortesia de EJRomanoTorres/UdeCoimbra/JDACT

 

JDACT, Frei Bernardo Brito, Leo Duarte, Coimbra, Cultura e Conhecimento,

Leo Duarte. Lenda do Brasão de Coimbra. «Com o liberalismo de 1820 e com a sua institucionalização em 1834, a Universidade vai passar por tempos conturbados de conservantismo e de mudança, de crise e de dinamismo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Lenda relatada originalmente por frei Bernardo Brito

História

«(…) Expulsos os Jesuítas em 1759, ficaram vagas vastas dependências onde se instalaram algumas das novas faculdades e serviços de criação pombalina. São desta época, aliás de grande capacidade económica (João V e José I), alguns dos belos edifícios que, ainda hoje, marcam a vida da Universidade: a Torre e a Biblioteca Joanina, (do período pré-pombalino), o Museo de História Natural, o Laboratório Chímico e o Jardim Botânico.

Com o liberalismo de 1820 e com a sua institucionalização em 1834, a Universidade vai passar por tempos conturbados de conservantismo e de mudança, de crise e de dinamismo, de tentativas frustradas de reforma face ao governo, que manifestava compreensivelmente outras intenções no âmbito da política do ensino. Da década de 60 do século XIX ao advento da República (em 1910) movimentos académicos de grande significado, em que pontificavam ilustres vultos da nossa literatura, como Almeida Garret, Antero de Quental, João de Deus, Eça de Queiróz, entre outros, protagonizaram revoltas contra o conservantismo académico e o aparecimento de formas organizadas de associação como grupos dramáticos, literários e corais. Nesta época, situa-se também a fundação da Associação Académica (1887) que viria ao longo da sua existência a salientar-se pela contestação organizada contra o poder político na Universidade e fora dela afirmando-se, mesmo em tempos adversos, como um forte baluarte de autonomia e, através das muitas secções especializadas, como pólo difusor de uma vida associativa e cultural dinâmica.

Com a implantação da República (1910) o Estado, que apostava na democratização do ensino, incentivou e patrocinou a criação de outras Universidades em Lisboa e no Porto, ao mesmo tempo que se operavam algumas reformas na Universidade de Coimbra. Em 1911, um ano após a implantação do regime republicano, deixou de funcionar a Faculdade de Teologia, sendo criada a de Letras. As faculdades de Matemática e de Filosofia (natural) fundiram-se originando a de Ciências e foram instituídas as escolas de Farmácia e Normal Superior. A de Farmácia seria mais tarde elevada à categoria de Faculdade.

A ditadura militar emergente da Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926 e a instituição do Estado Novo, em 1933, foram os grandes responsáveis pela amputação de alguns históricos edifícios da Velha Alta não escapando ao impiedoso camartelo igrejas, colégios renascentistas e casas manuelinas ou barrocas. No seu lugar foram implantados novos edifícios que marcaram o tipo arquitectónico característico da época. Nos aspectos científico e pedagógico assistiu-se também, nesta época, a uma preocupante cristalização. Que não era já possível ignorar os movimentos sociais, políticos, científicos e culturais vividos em toda a Europa, aperceberam-se, na década de 70, o então chefe do Governo, prof. Marcelo Caetano e o ministro prof. Veiga Simão. Viveu-se, assim uma tentativa de modernização da Universidade, surgindo cursos de sentido prático e tecnológico (em 1972 a Faculdade de Ciências passou a Faculdade de Ciências e Tecnologia e foi criada a Faculdade de Economia) e criando-se novas Universidades (Aveiro, Braga e Évora).

Os movimentos estudantis têm neste período grande expressão como formas organizadas de contestação e de luta por melhores condições para o ensino e também por ideais políticos e sociais. Com a Revolução de Abril, 1974, a Universidade como que explode, subindo em flecha o número de alunos inscritos. Instituem-se formas de funcionamento democrático e ressurge a luta pela conquista da autonomia que vem a concretizar-se em Setembro de 1989 com a aprovação, pela Assembleia da República, da Lei Quadro da Autonomia Universitária». In Leo Duarte, Lenda do Brasão de Coimbra, Pedro Dias, Coimbra, Arte e História, I.H.A., Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume IV, 1988, Editora João Romano Torres, 1904-1915.

 

Cortesia de EJRomanoTorres/UdeCoimbra/JDACT

 

JDACT, Frei Bernardo Brito, Leo Duarte, Coimbra, Cultura e Conhecimento,

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Lenda do Brasão de Coimbra. Leo Duarte. «A Universidade foi fundada em 1290 pelo monarca Dinis I e transferida, definitivamente, para Coimbra, em 1537»

Cortesia de wikipedia e jdact

Lenda relatada originalmente por frei Bernardo Brito

«Ataces, rei dos Alanos, depois de destruir completamente a cidade de Conímbriga, decidiu fundar ou restaurar uma outra com o mesmo nome na margem direita do Mondego. Quando Ataces andava a dirigir a edificação dessa nova Coimbra, eis que subitamente surge o rei suevo Hermenerico com seu exército, para dela se apoderar e se vingar de derrotas sofridas. O combate que se travou entre as duas facções foi de tal modo sanguinolento que as águas do Mondego se tingiram de vermelho!

Hermenerico retirou-se para o Norte, mas Ataces foi em sua perseguição e o rei suevo viu-se forçado a pedir a paz. Para tanto, ofereceu ao vencedor a mão da princesa Cindazunda, sua filha. Como é de regra em tais casos, diz a lenda que Cindazunda era extremamente bela e que Ataces logo dela se enamorou. Vem o régio par de noivos a caminho de Coimbra, acompanhado de sogro e pai, e em breve se realizam os esponsais e bodas, com a magnificência devida.

Para comemorar tão extraordinário acontecimento, Ataces concedeu à cidade de Coimbra o brasão que ainda hoje se mantém no fundamental. A donzela coroada é Cindazunda; a taça representa o seu casamento com Ataces; o leão é o timbre de Ataces; o dragão o timbre de Hermenerico.

A história escreveu-se com sonoridades celtas até ao século II a C., século marcado pela chegada dos romanos e da qual ficaram até aos nossos dias sinais de uma cultura grandiosa que podemos admirar no Criptopórtico da Civitas Aeminium que hoje integra o Museu Nacional de Machado de Castro. Coimbra fez-se depois mourisca e já Almedina era o nome da cidade dentro das muralhas, quando chegou o tempo da afirmação da Fé Cristã pela Reconquista. As urbes protegiam-se então à volta dos templos, e Coimbra, por vontade do rei Afonso Henriques, primeiro Rei de Portugal, viu nascer em 1131 o Mosteiro de Santa Cruz e fez-se cidade, berço de Reis.

A Sé Velha, sagrada em 1184, testemunha ainda hoje o imaginário da Arte Românica. Mas Coimbra deve aos monges de S. Bento e de Cister os mosteiros e conventos de grande sobriedade, onde a luz iluminava paredes nuas e arcos elevavam as construções a Deus. Santa Clara-a-Velha, que é deste tempo, testemunhou sempre a devoção que o povo prestava à Rainha Dona Isabel de Aragão, que o tempo tornou Santa. Foi em Santa-Clara-a-Velha que viveu Inês de Castro, essa bela mulher por quem Pedro I se tomou de amores. E foi também aqui que Afonso IV mandou executar dona Inês e iniciou assim a mais trágica e imortal história de amor escrita em Português.

Mas é o Renascimento e a Universidade que distinguem, secularmente, Coimbra. A Universidade foi fundada em 1290 pelo monarca Dinis I e transferida, definitivamente, para Coimbra, em 1537. Várias salas abertas hoje a turistas reflectem ainda a altivez de tempos idos em que madeiras exóticas e ouro do Brasil decoravam os espaços mais sublimes. Em meados do século vinte deu-se, talvez, o maior crime arquitectónico da cidade, quando Oliveira Salazar ordenou a destruição da velha Alta e nela construiu as faculdades e departamentos que hoje conhecemos ao longo da Rua Larga. Foi um período de mudança, mas que sem dúvida permitiu a expansão da Universidade a novas áreas de estudo e a mais estudantes que deram e continuam a dar a Coimbra fados e baladas, livros e poemas, sonhos e Saudade.

História

Data de 1 de Março de 1290 o diploma do rei Dinis I que anuncia a constituição do Estudo Geral. Assim foi fundada a Universidade que a bula do papa Nicolau IV confirmou em 9 de Agosto do mesmo ano. Nela funcionavam todas as faculdades lícitas: Cânones, Leis, Medicina e Artes. Exceptuava-se Teologia (só criada perto de 1380). Tendo alternado o seu funcionamento entre Lisboa e Coimbra, fixou-se definitivamente nesta cidade em 1537, por decisão do rei João III, que ao mesmo tempo a reformou profundamente. Foram então criados vários colégios, entre os quais o das Artes, o de São Paulo e o de São Pedro, que se estende a sul da Porta Férrea, com funções de ensino, pensionato e assistência. Durante o reinado de José I (1750-1777) começa a sentir-se em Portugal o absolutismo esclarecido, que protagonizou uma das mais importantes reformas universitárias. Ela ocorreu em 1772 e anos seguintes e teve como principais intérpretes o poderoso ministro marquês de Pombal, que fora nomeado Visitador da Universidade, e o Reitor-Reformador Francisco Lemos. Novos estatutos foram entregues solenemente por Pombal em 29 de Setembro de 1772, e a partir dai, começam a surgir as marcas da reforma pombalina». In Leo Duarte, Lenda do Brasão de Coimbra, Pedro Dias, Coimbra, Arte e História, I.H.A., Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume IV, 1988, Editora João Romano Torres, 1904-1915.

 

Cortesia de EJRomanoTorres/UdeCoimbra/JDACT

 

JDACT, Frei Bernardo Brito, Leo Duarte, Coimbra, Cultura e Conhecimento,

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Fernando Pessoa. Poesia. «A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser e houve pasmos de toda a realidade ser só isto mas a vida era a vida e só era a vida…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Para Além Doutro Oceano de C[oelho] Pacheco

«Num sentimento de febre de ser para além doutro oceano

Houve posições dum viver mais claro e mais límpido

E aparências duma cidade de seres

Não irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em pureza e em nudez

Fui pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo de os ter

A noção das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro

Todos viviam na vida dos restantes

E a maneira de sentir estava no modo de se viver

Mas a forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho

A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser

E houve pasmos de toda a realidade ser só isto

Mas a vida era a vida e só era a vida

O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente

Com a mesma doçura duma máquina untada que se move sem fazer barulho

Sinto-me bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel

Para não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo

Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento é claro

Mas eu não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho

Como uma máquina untada movida por uma correia

E não posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que trabalham

Eu lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem sentir isto como eu

Mas dizem que lhes dói a cabeça ou sentem tonturas

Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer

Como por exemplo a de que eles não sentem esse deslizar

E não pensam em que o não sentem

Neste salão antigo em que as panóplias de armas cinzentas

São a forma dum arcaboiço em que há sinais doutras eras

Passeio o meu olhar materializado e destaco de escondido nas armaduras,

Aquele segredo de alma que é a causa de eu viver

[…]

Poema de Fernando Pessoa

Fonte: http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso.html

Cortesia de wikipedia/JDACT

 JDACT, Poesia, Fernando Pessoa,

Álvaro Campos. Poesia. «E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono, toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A plácida face anónima de um morto.

«A plácida face anónima de um morto.

Assim os antigos marinheiros portugueses,

Que temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim,

Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,

Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.

O que é que os taipais do mundo escondem nas montras de Deus?»

A Praça

«A praça da Figueira de manhã,

Quando o dia é de sol (como acontece

Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,

Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante

Que aquele lugar lógico e plebeu,

Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu

Porque o amo? Não importa. Adiante ...

Isto de sensações só vale a pena

Se a gente se não põe a olhar para elas.

Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está

De acordo comigo próprio. As horas belas

São as dos outros ou as que não há».

Acordar

«Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,

Acordar da Rua do Ouro,

Acordar do Rocio, às portas dos cafés,

Acordar

E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,

Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,

Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.

À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se

Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,

E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,

Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,

Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,

São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,

Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,

Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,

Seja

A mulher que chora baixinho

Entre o ruído da multidão em vivas...

O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,

Cheio de individualidade para quem repara...

O arcanjo isolado, escultura numa catedral,

Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,

Tudo isto tende para o mesmo centro,

Busca encontrar-se e fundir-se

Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas

E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.

Tenho pela vida um interesse ávido

Que busca compreendê-la sentindo-a muito.

Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,

Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,

Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio

E a minha ambição era trazer o universo ao colo

Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,

Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo

Do que as que vi ou verei.

Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.

A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.

Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios

E rosas também.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também,

Crisântemos, dálias,

Violetas, e os girassóis

Acima de todas as flores...

Deita-me as mancheias,

Por cima da alma,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Meu coração chora

Na sombra dos parques,

Não tem quem o console

Verdadeiramente,

Excepto a própria sombra dos parques

Entrando-me na alma,

Através do pranto.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Minha dor é velha

Como um frasco de essência cheio de pó.

Minha dor é inútil

Como uma gaiola numa terra onde não há aves,

E minha dor é silenciosa e triste

Como a parte da praia onde o mar não chega.

Chego às janelas

Dos palácios arruinados

E cismo de dentro para fora

Para me consolar do presente.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,

Eu nunca acharei que a vida é bastante.

Faltar-me-á sempre qualquer coisa,

Sobrar-me-á sempre de que desejar,

Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,

E muito embora o que eu te peça

Te pareça que não quer dizer nada,

Minha pobre criança tísica,

Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também…»

Poemas de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa

Fonte: http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam.html

Cortesia de wikipedia/JDACT

JDACT, Poesia, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos,

A Herança Messiânica. Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin. «… nem a se espantar com a credulidade dos seus predecessores do século XIX. Em certos sectores, o dogma se tornou apenas mais arraigado do que nunca»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Estes exemplos mostram até que ponto os estudos bíblicos abriram um novo espaço para as artes. Há duzentos anos, um romance que tratasse de assuntos bíblicos seria impensável. Nem a poesia ousava abordar esses temas, excepto na forma mais ou menos ortodoxa, mais ou menos piedosa de O paraíso perdido. No século XX, porém, Jesus e seu mundo já eram vistos, não como alvos aceitáveis para explorações notoriamente sensacionalistas, mas como objectos válidos de investigação e exploração por literatos de renome internacional. Através dessas obras de ficção, os frutos dos estudos bíblicos especializados se disseminaram entre um público cada vez mais amplo. Os próprios estudos bíblicos não permaneceram inalterados. Jesus e o mundo do Novo Testamento continuaram a receber a atenção de historiadores e pesquisadores profissionais que, com crescente rigor e novos elementos de prova a seu dispor, buscavam apurar os factos que envolviam aquele enigmático personagem de 2 mil anos atrás. Muitos desses trabalhos destinavam-se basicamente a outros especialistas no campo e atraíram pouca atenção popular. Alguns, no entanto, foram expostos ao público leitor em geral e deram origem a considerável controvérsia. The Passo ver Plot (1963), de Hugh Schonfield, afirmou que Jesus encenou a farsa da sua própria crucificação, não tendo morrido na cruz; o livro tornou-se um best-seller internacional, com mais de 3 milhões de cópias em circulação. Mais recentemente, Jesus the Maaician, em que Morton Smith descreve o seu protagonista como um típico milagreiro da época, uma espécie de figura muito comum no Médio Oriente no início da era cristã, gerou controvérsia. O Jesus de Morton Smith não difere significativamente, por exemplo, de Apolónio de Tiana ou do protótipo da figura lendária (se é que existiu alguma) de Simão, o Mago.

Além do material dedicado especificamente a Jesus, têm surgido inúmeros trabalhos sobre as origens do cristianismo, a  formação da Igreja primitiva e suas raízes no judaísmo do Antigo Testamento. Neste aspecto, o Schonfield desempenhou novamente papel de destaque, com uma série de trabalhos voltados para o pano de fundo do Novo Testamento. E, em 1929, Elaine Pagels atraiu a atenção do mundo e alcançou um imenso contingente de leitores com The Gnostic Gospels, um estudo dos manuscritos de Nag Hammadi, cuja descoberta no Egipto, em 1945, permitiu uma interpretação radicalmente nova da doutrina e da tradição cristãs. Os estudos bíblicos fizeram enormes avanços nos últimos quarenta anos, com a imensa ajuda representada pela descoberta de novas fontes primárias, material fora do alcance dos pesquisadores do passado. As mais famosas dessas fontes são, evidentemente, os manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947 nas ruínas da comunidade ascéptica essénia de Qumran. Além de grandes descobertas como essa, da qual muitas partes ainda estão por ser publicadas, outras fontes têm vindo à luz gradualmente, ou começam a ser postas em circulação e estudadas após longos períodos de ocultação. O resultado é que Jesus está deixando de ser um vago personagem que existiu no mundo simplista e fictício dos Evangelhos. A Palestina é o advento da era cristã não é mais um lugar nebuloso que pertence mais ao mito do que à história. Ao contrário, hoje sabemos muito sobre o ambiente de Jesus, e muito mais do que a maioria dos cristãos praticantes imagina sobre a Palestina no século I, sua sociologia, sua economia, sua política, sua atmosfera cultural e religiosa, sua actualidade histórica. Grande parte do mundo de Jesus emergiu da bruma da conjectura, da especulação e da hipérbole mítica, e está mais claramente e mais bem documentada do que, digamos, o mundo do rei Artur. E embora o próprio Jesus permaneça envolto num grau considerável de indefinição, é tão possível fazer inferências plausíveis a seu respeito quanto sobre o rei Artur ou Robin Hood.

O malogro dos estudos bíblicos

Apesar de tudo isso, a profecia optimista que citamos no início deste capítulo não se realizou. Teólogos intelectualmente respeitados não passaram, pelo menos, não publicamente, a partilhar dessas conclusões, nem a se espantar com a credulidade dos seus predecessores do século XIX. Em certos sectores, o dogma se tornou apenas mais arraigado do que nunca». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN 978-852-090-568-5.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Crónica,

A Herança Messiânica. Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin. «Nessa visão, uma espécie deflash-Jorward na fantasia, Jesus se vê casado com Madalena (a quem desejara ao longo de todo o livro) e gerando com ela uma família»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Isto caiu nas minhas mãos por acaso, há pouco tempo. Até então eu não tinha noção alguma do que estava sendo feito actualmente no campo da pesquisa bíblica ou dos ataques que estavam sendo desferidos por competentes historiadores. Foi um choque para mim, e uma revelação! (...) Tomei conhecimento de toda a sorte de factos que eram inteiramente novos para mim. Que os Evangelhos, por exemplo, foram escritos entre os anos 65 e 100. Isto significa que a Igreja foi fundada, e conseguiu se manter, sem eles. É espantoso! Mais de sessenta anos depois do nascimento de Cristo! É como se alguém hoje quisesse registar as palavras e os feitos de Napoleão sem poder consultar um único documento escrito, só vagas lembranças e anedotas. A não ser pela referência a Napoleão, a citação acima poderia expressar quase literalmente, a julgar pelas cartas que recebemos e as declarações verbais que ouvimos, a reacção de um leitor contemporâneo a O santo araal e a linhaaem saarada quando foi publicado, em 1982. Na verdade, as palavras são de um romance de Roger Martin du Gard, Jean BaTois, publicado em 1912, e no próprio romance elas suscitam a seguinte resposta:

(…) não vai demorar para que todos os teólogos de qualquer posição intelectual cheguem a estas conclusões; na verdade, vai-lhes parecer espantoso que os católicos do século XIX tenham conseguido acreditar por tanto tempo na verdade literal dessas lendas poéticas. Mesmo antes da época em que se situa este diálogo fictício, a década de 1870, Jesus e as origens do cristianismo já tinham começado a emergir como um florescente campo de trabalho para pesquisadores, escritores e divulgadores. Há registo de que, no início do século XVI, o papa Leão X teria declarado: esse mito de Cristo prestou-nos bons serviços. Na década de 1740, estudiosos já haviam desenvolvido o que hoje reconhecemos como uma metodologia histórica válida para o questionamento da veracidade dos relatos das Escrituras. Assim, entre 1744 e 1767, Hermann Samuel Reimarus, um professor de Hamburgo, afirmou que Jesus nada mais fora do que um revolucionário judeu mal-sucedido, cujo corpo fora removido do sepulcro pelos seus discípulos. Em meados do século XIX, os estudos bíblicos alemães já haviam de facto chegado à maturidade e fora estabelecida uma datação dos Evangelhos que, na sua abordagem e na maior parte das suas conclusões, ainda é considerada válida. Hoje, nenhum reconhecido historiador ou estudioso da Bíblia negaria que os primeiros Evangelhos foram compostos, pelo menos, uma geração depois dos eventos neles descritos. O impulso da pesquisa alemã culminaria finalmente numa posição sintetizada por Rudolf Bultmann, da Universidade de Marburgo, um dos mais importantes, famosos e respeitados comentadores bíblicos do século XX: de facto, penso que hoje não podemos saber quase nada acerca da vida e da personalidade de Jesus, pois as fontes cristãs mais antigas não mostram interesse em nenhuma das duas coisas, sendo ademais fragmentárias e muitas vezes legendárias.

No entanto, Bultmann não deixou de ser um cristão devoto. Justificou isso sublinhando uma distinção decisiva entre o Jesus da história e o Cristo da fé. Enquanto essa distinção fosse admitida, a fé podia ser mantida. Se não fosse admitida, a fé se veria inevitavelmente corroída e confundida pelos factos inelutáveis da história. Foi a esse tipo de conclusão que os estudos bíblicos alemães do século XIX acabaram por levar. Ao mesmo tempo, porém, o bastião da autoridade tradicional em estudos bíblicos estava sendo desafiado também noutras frentes. Em 1863, enquanto as controversas teses da investigação germânica permaneciam confinadas numa esfera rarefeita de especialistas, o escritor francês Ernest Renan gerou uma enorme discussão internacional com o seu célebre best-seller A vida de Jesus Cristo. Essa obra, que procurou desvestir o cristianismo dos seus atavios sobrenaturais e apresentar Jesus como um homem incomparável, foi talvez o livro mais comentado na sua época. Seu impacto sobre o público foi imenso, e entre as pessoas que ele mais influenciou estava Albert Schweitzer. Mesmo a abordagem de Renan, porém, viria a ser considerada piegas e marcada por um sentimentalismo acrítico pela geração dos modernistas, que começava a despontar no último quartel do século XIX. Cabe notar que, na sua maioria, os modernistas trabalhavam no âmbito da Igreja, isto é, até sua condenação oficial pelo papa Pio X, em 1907, e a introdução de um juramento antimodernista em 1910.

Nessa altura, tanto as descobertas resultantes dos estudos bíblicos alemães quanto as dos católicos modernistas começavam a encontrar expressão nas artes. Assim, em 1916, o romancista anglo-irlandês George Moore publicou a sua própria história romanceada de Jesus em The Brook Kerith. Moore causou considerável escândalo ao propor que Jesus teria sobrevivido à crucificação e recobrado a saúde graças aos cuidados de José de Arimatéia. Desde a publicação de The Brook Kerith, foram muitas as versões ficcionais da história dos Evangelhos. Em 1946, Robert Graves publicou o seu ambicioso retrato romanceado, Kina Jesus, em que novamente Jesus sobrevive à cruz. Em 1954, Nikos Kazantzakis, autor grego laureado com o Prémio Nobel, causou um tumulto internacional com A última tentação de Cristo. Ao contrário das figuras de Jesus em Moore e Graves, o protagonista de Kazantzakis morre na cruz. Antes, porém, tem uma visão do que teria sido a sua vida caso não se tivesse submetido voluntariamente ao sacrifício final. Nessa visão, uma espécie deflash-Jorward na fantasia, Jesus se vê casado com Madalena (a quem desejara ao longo de todo o livro) e gerando com ela uma família». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN 978-852-090-568-5.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Crónica,

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Jean Plaidy. Lucrécia Borgia. «Quando o papa morrer, haverá um conclave, e então, irmãzinha, os cardeais vão escoltar um novo papa. Tio Roderigo está escolhendo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Piazza Pizzo di Merlo

«(…) Giovanni sabe?,Lucrécia, aos quatro anos, sabia ser diplomata. Os encantadores olhos claros ficaram sombrios; ela não queria ver a ira de César; tal como Roderigo, ela desviava o olhar daquilo que era desagradável. O ardil deu resultado. Eu vou-lhe contar, disse César. Claro que contaria. Ele não poderia deixar que Giovanni desse a ela algo que ele lhe tivesse negado. O papa, que você sabe que é Sisto IV está morrendo. É por isso que eles estão agitados lá, e é por isso que o tio Roderigo não vem nos visitar. Ele tem muito o que fazer. Quando o papa morrer, haverá um conclave, e então, irmãzinha, os cardeais vão escoltar um novo papa. Tio Roderigo está escolhendo; é por isso que ele não pode vir nos visitar, disse ela. César ficou ali sorrindo para ela. Ele se sentia importante, um sabe-tudo; ninguém o fazia sentir-se tão inteligente ou importante quanto sua irmãzinha; era por isso que ele a adorava tanto. Eu gostaria que ele pudesse escolher depressa e vir nos visitar, acrescentou Lucrécia. Vou pedir aos santos que façam um novo papa depressa..., para que ele possa vir visitar-nos. Não, Lucreciazinha. Não peça uma coisa dessas. Em vez disso, peça o seguinte: peça que o novo papa seja o nosso tio Roderigo. César soltou uma gargalhada, e ela riu com ele. Havia tanta coisa que ela não compreendia; mas, apesar da ameaçadora estranheza, apesar da multidão que se acumulava lá em baixo e da ausência do tio Roderigo, era bom ficar na loggia, agarrada ao gibão de César, vendo a agitação na praça. Roderigo não foi eleito.

A agitação, observada pelas crianças, continuou por toda a cidade. O cenário mudara. Lucrécia ouvia os barulhos da batalha nas ruas lá em baixo, e Vannozza, aterrorizada, mandou levantar barricadas em volta da casa. Nem mesmo César sabia exactamente do que se tratava, embora ele e Giovanni, andando pela ala infantil, não o admitissem. Tio Roderigo só visitava a casa rapidamente, para assegurar-se de que as crianças estavam seguras. Suas visitas eram, agora, meramente para ver as crianças; desde o nascimento do pequeno Goffredo, ele deixara de considerar Vannozza sua amante, e agora havia uma outra criancinha, Otaviano, que Vannozza nada fazia para que fosse considerada como sendo dele. Quanto ao pequeno Goffredo, Roderigo estava encantado com ele, que estava se revelando de todas as formas tão bonito quanto os irmãos mais velhos. Roderigo, tendo necessidade de filhos e sendo suscpetível a filhos bonitos, na maioria das vezes tendia a dar a Goffredo o benefício da dúvida, e a atenção dedicada aos outros era, então, compartilhada pelo garotinho. O pobre do pequeno Otaviano era o estranho no ninho, ignorado por Roderigo, embora fosse adorado por Vannozza e por Giorgio. Mas durante aquelas semanas houve pouco tempo até mesmo para lamentar a ausência de Roderigo; as crianças só podiam olhar para a praça, assombradas com o cenário em mutação». In Jean Plaidy, Lucrécia Borgia, Edição Record, 1996, ISBN 978-850-104-410-5.

 

Cortesia de ERecord/JDACT

 

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