domingo, 10 de janeiro de 2021

Xamã. Noah Gordon. «Tossindo e resmungando furioso, ele fechou a janela e bateu no casaco até apagar o fogo. No outro lado da passagem, uma mulher olhou rapidamente para ele e sorriu»

Cortesia de wikipedia e jdact

A história de um médico do século XIX

«Ao migrar da Escócia para os Estados Unidos, Robert J. Cole já dominava o ofício da medicina. Mas não era só isso: um raríssimo dom familiar o diferenciava de outros médicos. Estabelecendo-se na fronteira de Illinois, em pleno século XIX, ele entrará em contacto com uma América marcada por intensos conflitos políticos e militares, e pelo genocídio da população indígena. É com uma sacerdotisa chamada Makwa que Cole irá aprender os saberes milenares que usará junto com seu conhecimento científico. A sabedoria e o dom serão herdados por seu filho, um menino surdo que recebe o nome de Xamã e passa zelar pela tradição da família. Continuação do grande sucesso O Físico, Xamã expande a trajetória da família Cole, aprofundando sua relação com a história da Medicina. Tendo como pano de fundo a guerra civil americana e a vida em uma sociedade preconceituosa que dificulta muitas vezes a prática sagrada da medicina, Noah Gordon conduz com maestria a narrativa em que o protagonista ora é Robert J. Cole, ora é Xamã. O livro recebeu o primeiro James Fenimore Cooper Prize, em 1993, por melhor romance histórico norte-americano». In Sinopse

1864

«O Spirit of Des Moines enviou sinais anunciando a sua chegada na estação de Cincinnati, Xamã pode percebê-los, primeiro como um tremor quase imperceptível na plataforma, depois uma vibração acentuada e então toda a estação pareceu estremecer. De repente, lá estava o monstro com seu cheiro de metal quente e vapor, avançando para ele na meia-luz acinzentada e tristonha, os bronzes reluzindo no corpo negro do dragão, os braços fortes dos pistões movendo-se, a pálida nuvem de fumaça subindo como o esguicho de uma baleia, esgarçando e dissolvendo no ar, quando a locomotiva parou, deslizando sobre os carris. Ele embarcou e alojou-se no terceiro vagão, onde havia poucos bancos vazios e, com um estremecimento, o comboio continuou a viagem. Os trens eram uma invenção fantástica, mas estar neles significava viajar com muitas outras pessoas. Ele preferia cavalgar sozinho, absorto em pensamentos. O vagão comprido estava abarrotado de soldados, caixeiros, viajantes, fazendeiros e mulheres, com ou sem filhos pequenos. O choro das crianças não o incomodava, é claro; mas o ar no vagão estava impregnado de uma mistura de odores, meias muito usadas, fraldas sujas, má digestão, corpos suados e mal lavados e a fumaça de charutos e cachimbos. As janelas pareciam feitas para desafiar a força e a paciência, mas ele era grande e forte e finalmente conseguiu levantar o vidro, o que, verificou imediatamente, foi um erro. Três carruagens à frente, a chaminé da locomotiva lançava para o ar, além da fumaça, uma mistura de fuligem, brasas vivas e cinza que, atraídas para trás pela velocidade do trem, entravam pela janela. Não demorou para que uma brasa caísse no casaco novo de Xamã.

Tossindo e resmungando furioso, ele fechou a janela e bateu no casaco até apagar o fogo. No outro lado da passagem, uma mulher olhou rapidamente para ele e sorriu. Era uns dez anos mais velha do que Xamã, com um vestido elegante de lã cinzenta, próprio para viagem, sem anquinhas, enfeitado com debruns de linho azul que acentuavam os cabelos louros. Seus olhos se encontraram por um momento e ela voltou novamente a atenção para a renda de bilros que trazia ao colo. Xamã também desviou os olhos tranquilamente; não convinha se dedicar aos jogos de sedução entre homem e mulher durante o período de luto. Xamã trazia consigo um livro importante para ler, mas sempre que tentava concentrar-se, seu pensamento voava até ao pai. O condutor aproximou-se por trás dele e Xamã só o percebeu quando a mão do homem tocou seu ombro. Surpreso, ergueu os olhos para o rosto corado, para o bigode com pontas enceradas e a barba vermelha com fios brancos, que Xamã gostou, porque deixava a boca bem visível. O senhor deve estar surdo!, disse o homem, jovialmente. Pedi a sua passagem três vezes, senhor! Xamã não se alterou, pois isso não era novidade para ele. Sim, eu sou surdo, disse, entregando a passagem.

Olhou pela janela, mas a vasta pradaria que passava lá fora não conseguiu prender sua atenção. O terreno sempre plano era monótono e tudo passava tão depressa que não chegava a ficar registado na sua mente. O melhor meio de viajar era a pé ou a cavalo; se chega a uma parada e sente fome ou vontade de urinar, pode entrar e satisfazer as suas necessidades. No comboio, os lugares passam e desaparecem numa névoa indistinta. O livro que estava lendo era Hospital Sketches, escrito por uma mulher de Massachusetts, chamada Alcott, enfermeira, que vinha tratando os feridos desde o começo da guerra e cuja descrição das horríveis condições dos hospitais do exército estava criando muita agitação nos círculos médicos. Não era uma boa leitura para ele, porque o fazia pensar no sofrimento pelo qual devia estar passando seu irmão Maior, desaparecido em acção numa patrulha de reconhecimento do exército confederado. Se, pensou Xamã, Maior não estivesse entre os mortos anónimos. Seu pensamento voltou para o pai, pela trilha da dor imensa, e ele começou a olhar em volta, com desespero» In Noah Gordon, Xamã, A História De Um Médico Do Século XIX, 1992, Editora Rocco, 1993, ISBN 978-858-122-049-9.

Cortesia de ERocco/JDACT

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