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quarta-feira, 17 de junho de 2015

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Estava, pois, assim o monarca ao facto de tudo quanto se preparava contra ele. Mas convinha esperar o momento asado para infligir o castigo; era preciso obter mais provas e apanhar toda a rede dos conspiradores»

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João II e o duque de Viseu
Setúbal, 28 de Agosto de 1484
«(…) Teve depois el-rei mais precisas informações do que contra sua vida se tecia na sombra, por denúncia de Vasco Coutinho, irmão de Guterrez, que, como se disse, conhecia o segredo da conspiração. Como vasco estivesse para sair do reino, por agravos que dizia ter recebido de el-rei, foi a Sesimbra despedir-se de seu irmão, que ali se achava residindo. Procurou Guterrez dissuadi-lo de tal propósito, dando-lhe a entender que dentro em breve sucederiam coisas que lhe permitiriam ficar vantajosamente em Portugal. Insistiu Vasco na sua; e então Guterrez Coutinho, para o resolver a não partir, revelou-lhe todo o plano da conjura. Não foi preciso mais para que aquele, como bom e leal fidalgo que é, logo procurasse Antão Faria e por ele obtivesse audiência de S. Alteza. Vasco Coutinho pôs el-rei ao corrente do que o seu irmão lhe contara, não sem primeiro implorado para este o perdão da pena de morte. O rei seria morto com ferro e o príncipe Afonso levado para Sesimbra por mar e aí levantado por rei, mas só enquanto o duque de Viseu quisesse.
Estava, pois, assim o monarca ao facto de tudo quanto se preparava contra ele. Mas convinha esperar o momento asado para infligir o castigo; era preciso obter mais provas e apanhar toda a rede dos conspiradores. Por isso el-rei dissimula, não lhes dando a perceber que está prevenido do perigo que o cerca. Anda mui recatado, sempre armado de espada e punhal, e a cavalo, nunca em mula, para ter mais ágeis os movimentos. Segundo há pouco alguém me contou, a primeira vez que tentaram assassinar el-rei foi um dia em que andava a cavalo no Troino. Mas, apercebebdo-se S. Alteza, ou pelos gestos dos fidalgos, ou pela expressão dos rostos, ou ainda por segredos que entre eles trocassem, de que procuravam ocasião propícia para o ferir, colocou-se de costas para a igreja de NSª da Anunciada, e dali não se arredou até que chegasse o capitão das guardas, Fernão Martins Mascarenhas, com os seus ginetes». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT

Outros Tempos. Grandes Reportagens. Amador Patrício. «Muitos choravam de o ver vivo. Ah, porque matastes o traidor do conde e não matastes também logo a aleivosa! Oh, aleivosa! Oh, aleivosa! E matavam-na se conseguissem ir lá acima»

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Uma Revolução em Lisboa. Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«(…) No Paço espalhou-se um pavor tal que João Gonçalves e os outros escrivães largaram de súbito o livro dos vassalos e puseram-se a fugir, cada um por sua banda. Os outros criados da rainha não procuraram as portas, mas as janelas, para se verem fora dali. Alguns saltaram para os telhados. Perante esta debandada, Lourenço Martins foi-se à cozinha e de lá trouxe uma soma de prata que apresentou ao Mestre: já aqui tendes, Senhor, para a despesa de hoje! Mas ele retorquiu-lhe asperamente que fosse repor a prata donde a tirara, pois não fora para isso que voltara a Lisboa. Os fidalgos partidários do conde não tornaram a aparecer, porque, quando voltavam para o paço, foram informados do que se passara, e, perante os magotes de gente que já corriam pelas ruas, recearam ser chacinados e trataram de se pôr a salvo. A partida estava ganha...
O pajem percorria a cidade aos gritos de: matam o Mestre! Matam o Mestre! Acorrei que o matam! Tudo saía à rua a ver o que sucedera e, começando a falar uns com os outros, exaltavam-se e corriam a tomar armas, cada um como podia. Era a revolução. Então, Álvaro Pais, que já estava a postos e armado, com sua coifa na cabeça, montou a cavalo, o que há muitos anos não fazia, e conduziu aquele povo miúdo, dizendo: acudamos ao Mestre, amigos, que é filho de El-Rei Pedro I! Chegaram em frente do Paço e a gente que o seguia era já tanta que nem cabia nas ruas. A indignação cada vez maior porque todo o povo estava com o Mestre e contra a rainha. Ao verem as portas cerradas quiseram arrombá-las à pedrada e houve muitos que juntavam lenha e pediam lume para pôr fogo ao palácio e queimarem o trèdor e a aleivosa. Outros queriam escadas para subir acima e ver onde estava o Mestre. O barulho era ensurdecedor e já ninguém se entendia. O Mestre! O Mestre!
Das janelas bradavam que o Mestre era vivo e João Fernandes morto; mas ninguém queria crer que assim fosse. Pois se ele é vivo, mostrai-no-lo! O alvoroço tornou-se tamanho que o Mestre João resolveu aparecer a uma grande janela que dá para a rua. Foi então alvo de grandes aclamações. Muitos choravam de o ver vivo. Ah, porque matastes o traidor do conde e não matastes também logo a aleivosa! Oh, aleivosa! Oh, aleivosa! E matavam-na se conseguissem ir lá acima. O Mestre, para apaziguar aquela gente, é que desceu à rua e, montando a cavalo, dirigiu-se, acompanhado de todos os seus, para os paços do almirante, ao Rossio. Coisa maravilhosa era de ver o povoléu que o seguia, aos brados: Que nos mandais fazer, Senhor? Que quereis que façamos? Ao que ele respondia que por enquanto de mais nada havia mister; e, às janelas, as donas da cidade, a saudarem-no em altas vozes: mantenha-vos Deus, Senhor! Bento seja Deus, que vos guardou de tamanha traição! Era já quase alçarem-no por Rei.
Enquanto o conde de Barcelos vinha ao encontro do Mestre e, depois de o abraçar, o conduzia a seus paços para lhe dar de comer, o povo amotinado, concentrava-se em volta da Sé, indignado, porque, ao contrário do que sucedera em S. Martinho e noutras igrejas, o bispo não mandara repicar as campanas. Que repicassem! Que repicassem! Mas o bispo Martinho, ou por não saber do que se tratava, ou como era castelhano, por ser partidário da rainha e do conde, mandou cerrar todas as portas e recolheu-se a uma das torres acompanhado do prior de Guimarães e dum tabelião de Silves, que tinham vindo visitá-lo». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT

sábado, 21 de setembro de 2013

Outros Tempos. Grandes Reportagens. Amador Patrício. «Chegados ao Paço, desceram de seus cavalos, subiram a escada e foram até a câmara onde estava a rainha. O porteiro, logo que entrou o Mestre, quis cerrar a porta, para que não passasse mais nenhum. Mas o Mestre João fê-los entrar a todos e dirigiu-se logo ao estrado onde estava a cunhada»

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Uma Revolução em Lisboa. Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«Grande alvoroço vai por esta cidade de Lisboa! Assuadas, tumultos, mortes, prenúncios de mais graves acontecimentos. Iminência de nova guerra com Castela? Mas também uma fé viva, no coração do povo, e o desejo ardente de, todos os bons portugueses em volta do Mestre, defenderem a independência de Portugal. O Mestre! Anda seu nome aclamado pelas ruas da cidade, desde que ontem tornou a ela.
Foi assim: Era já o sol nado, quando a Lisboa voltou mestre João, Mestre de Aviz, acompanhado dos seus, o comendador de Juromenha, Fernão de Álvares, Lourenço Martins de Leiria, Vasco Lourenço Meirinho, Lopo Vasques e outros. Eram vinte, com cotas, braçais e espadas cintas, como homens caminheiros. Chegados ao Paço, desceram de seus cavalos, subiram a escada e foram até a câmara onde estava a rainha. O porteiro, logo que entrou o Mestre, quis cerrar a porta, para que não passasse mais nenhum. Mas o Mestre João fê-los entrar a todos e dirigiu-se logo ao estrado onde estava a cunhada, para a saudar. A Rainha, rodeada de algumas das suas donas e acompanhada do conde de Barcelos, do conde Álvaro Peres, de Fernão Afonso de Samora e de outros fidalgos, ouvia o conde João Fernandes que, de joelhos,
lhe falava baixinho. Ao ver o Mestre, levantou-se e perguntou-lhe: - Irmão, que é isso? A que tornastes de vosso caminho? - Porque João partira na véspera, com ordem da Rainha, acordada em conselho para levantar as terras do Mestrado e algumas vilas e castelos em redor, em defesa da fronteira ameaçada pelo rei de Castela, que dá mostras de querer entrar em Portugal. Justificou-se o Mestre de Aviz dizendo que voltara a Lisboa porque, para a defesa das terras de entre Tejo e Guadiana, que lhe fora confiada, era insuficiente a gente de que dispunha, e que portanto lhe desse a Rainha mais vassalos, para que ele a pudesse bem servir, como cumpria a sua honra e ao serviço real. Achou a Rainha razoável o pedido e mandou chamar João Gonçalves, seu escrivão da puridade, para que indicasse quem poderia servir com o Mestre. Enquanto João Gonçalves e os seus escrivães consultavam o livro de vassalos daquela comarca e preparavam as convocações, começaram os condes a convidar o Mestre de Aviz a comer com eles, inclusive o de Andeiro, mas de todos ele se escusou dizendo que já tinha mandado preparar o jantar. Consta que pôs logo o conde de Barcelos ao corrente das suas intenções e que, pretendendo este acompanhá-lo na temerária empresa, João insistiu por que partisse, pois, tanto que tudo fosse feito, iria ter com ele.
Desconfiou o conde João Fernandes daquele retorno precipitado do Mestre, pelo que ordenou à sua gente que se fosse armar. Esta a razão por que nenhum dos seus estava presente quando o mataram, o que evitou, sem dúvida, que as coisas se passassem mui diferentemente, ou, pelo menos, que houvesse maior efusão de sangue.

Chegada a hora de comer, insistiu novamente João Fernandes para que o Infante jantasse com ele. Seria talvez a maneira de o ter mais vigiado. O Mestre manteve a sua recusa; mas como o conde teimasse e fizesse menção de ir mandar preparar rapidamente a comida, atalhou aquele: - Não vades, que eu vos hei-de falar duma coisa, antes que me vá, e logo me quero ir porque são horas de comer. Despediu-se da rainha, tomou o conde pela mão e conduziu-o a uma grande sala contígua à câmara em que estavam. Seguiram-nos os companheiros do Mestre, que já sabiam o que se ia passar, e, mais cerca, Rui Pereira e Lourenço Martins. Uma vez ali, o Mestre João levou o conde de Andeiro para junto duma janela e falou-lhe tão baixo que ninguém conseguiu ouvir o que lhe dizia; todavia, afirma-se que as frases trocadas foram estas: - Conde, eu me maravilho muito de serdes pessoa que eu estimava e trabalhardes vós de minha deshonra e morte! - Eu, Senhor?! - replicou ele. - Quem vos tal coisa disse mentiu-vos mui grão mentira.
O Mestre, que mais vontade tinha de o matar que de se travar de razões, tirou logo um cutelo comprido e mandou-lhe um golpe à cabeça. Não seria a ferida mortal, pois que o conde ainda tentou acolher-se à câmara da rainha. Os outros, porém, logo que isto viram, rodearam-no, desembainharam as espadas, e foi Rui Pereira quem, duma estocada, o matou de pronto. Quiseram outros feri-lo também, mas o Mestre mandou-os estar quedos e nenhum se moveu. A seguir, mandou a Fernão Álvares e Lourenço Martins que fossem fechar as portas do palácio para que ninguém entrasse, e dissessem ao seu pajem que corresse pelas ruas bradando que queriam matar o Mestre. Era o sinal combinado com Álvaro Pais para o levantamento.
Entretanto a rainha, que tinha ouvido o ruído daquela cena, mandou ver o que se passava; ao ser informada do sucedido, rompeu em lamentações pela morte do seu amado conde, mas, cheia de temor, não ousava condenar os matadores. Ordenou apenas que preguntassem ao Mestre se ela ia morrer também. - Dizei lá à rainha, minha Senhora, - respondeu ele - que esteja sossegada em sua câmara, porque não tem que temer. Eu vim unicamente para fazer isto a este homem, que bem mo havia merecido».

In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Saía ocultamente, pelo postigo junto às casas onde habitava, e ia procurar o duque para lhe instilar, no espírito vaidoso e inconsiderado, a peçonha da sua maldade. Cativou-o fazendo-lhe entrever que, uma vez morto el-rei João, ele, duque, seria alçado a governar»

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João II e o duque de Viseu
Setúbal, 28 de Agosto de 1484
«Esta pacífica vila vive horas de terror e espanto! As portas estão cerradas e mui bem guardadas, lêem-se grandes e temerosos pregões na praça pública, os ginetes da guarda de el-rei andam a percorrer os caminhos em várias diligências, e há ordem de prisão contra muitas pessoas da primeira nobreza do reino. É que foi descoberta nova conjura contra a vida do rei nosso Senhor, da qual eram cabeças Garcia Menezes, bispo de Évora, e o senhor Diogo, duque de Viseu. Daí as buscas e prisões ordenadas e a justiça que esta noite foi feita na pessoa do jovem e desventurado irmão da rainha D. Leonor. Narremos o que, sobre estes tristes factos, conseguimos apurar.
A sentença, que em Évora se executou, degolando Fernando, duque de Bragança, parece que devia ser servido de aviso a todos os fidalgos irrequietos e ambiciosos que guardassem ainda qualquer animadversão contra o seu rei. Foi, nessa ocasião, paternalmente admoestado o duque de Viseu, a quem Sua Alteza tanto queria, e contra quem não procedeu com mais rigor pelo amor e respeito que dedica à rainha sua esposa. Mas nem o temor do cutelo nem a suavidade dos conselhos desarmaram completamente aqueles maus portugueses, que continuaram a alimentar abominável sanha contra el-rei e a congeminar o crime horroroso de lhe tirar a vida. Começou a ser planeada a nova conjura quando a corte se trasladou a Santarém.
Instalou-se o duque de Viseu na casa do arcebispo de Lisboa, junto ao mosteiro de S. Domingos das Donas, já fora da cerca da cidade. O bispo de Évora, Garcia, poisou nas casas de um tal Afonso Caldeira, junto ao postigo de Santo Estêvão. Este prelado, que, por suas letras, fidalguia e haveres, deveria ser o primeiro a dar o exemplo de vassalo obediente, concebeu tal rancor contra el-rei que foi ele o instigador e mau conselheiro de toda esta negra trama. Saía ocultamente, pelo postigo junto às casas onde habitava, e ia procurar o duque para lhe instilar, no espírito vaidoso e inconsiderado, a peçonha da sua maldade. Cativou-o fazendo-lhe entrever que, uma vez morto el-rei João, ele, duque, seria alçado a governar. A ambição de ser rei turvou completamente o coração do duque de Viseu, e assim é que dentro em pouco, aos dois conspiradores se juntavam Fernando Meneses, irmão do bispo, Fernão Silveira, escrivão da puridade de el-rei e filho do barão de Alvito, Guterrez Coutinho, filho do marechal, a quem el-rei havia dado a comenda de Sesimbra, Álvaro Ataíde, irmão do conde de Atouguia e do prior do Crato, e seu filho Pedro Ataíde, o conde de Penamacor, Lopo Albuquerque e Pero Albuquerque, seu irmão, alcaide-mor do Sabugal, e outros fidalgos.
Como se vê, era vasta a conspiração e abrangia pessoas da mais alta hierarquia. Apesar disso andava tão bem urdida que só tarde Sua Alteza o rei veio a tomar conhecimento dela. Soube-o, segundo aqui se afirma, por denúncia de Diogo Tinoco, irmão de Margarida Tinoco, manceba do bispo de Évora, a quem este, pelo visto, confiava os seus maiores segredos. Tinoco foi, primeiro, dar parte da conjura a Antão Faria, para que informasse o monarca do que se passava; mas, depois, procurou avistar-se com el-rei e falou-lhe directamente, no convento de S. Francisco, desta vila, porém, vestido de frade, para maior dissimulação. Parece que Sua Alteza lhe agradeceu muito o recado e lhe mandou dar 5000 cruzados em ouro e uma renda vitalícia, paga de tão grande serviço». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «A sanha da populaça era cada vez maior, e, como não visse sua vontade satisfeita, foram alguns buscar uma escada e entraram na Sé por uma fresta. Bradava-se que se visse porque não repicavam os sinos e, se fosse por determinação do bispo, que o deitassem abaixo»

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(Continuação)

Uma Revolução em Lisboa
Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«Enquanto o conde de Barcelos vinha ao encontro do Mestre e, depois de o abraçar, o conduzia a seus paços para lhe dar de comer, o povo, amotinado, concentrava-se em volta da Sé, indignado, porque, ao contrário do que sucedera em S. Martinho e noutras igrejas, o bispo não mandara repicar as campanas. - Que repicassem! Que repicassem!
Mas o bispo Martinho, ou por não saber do que se tratava, ou, como era castelhano, por ser partidário da rainha e do conde, mandou cerrar todas as portas e recolheu-se a uma das torres acompanhado do prior de Guimarães e dum tabelião de Silves, que tinham vindo visitá-lo.
A sanha da populaça era cada vez maior, e, como não visse sua vontade satisfeita, foram alguns buscar uma escada e entraram na Sé por uma fresta. Bradava-se que se visse porque não repicavam os sinos e, se fosse por determinação do bispo, que o deitassem abaixo. Um dos que subiram foi Silvestre Esteves, que é procurador da cidade e alcaide pequeno dela. Homem honrado, ouviu as razões do bispo e deu-se por satisfeito. Mas a turba enfurecida e que não queria saber de razões e já clamava que, se o bispo Martinho não era atirado abaixo, iriam lá acima também e então seriam atirados com ele todos os que lá estavam.
As ameaças e o furor chegaram a tal ponto que os que tinham subido se viram obrigados a matar o bispo, com feridas, e a lançar seu corpo à rua. Um escudeiro, inimigo do prior de Guimarães, aproveitou aquela ocasião para se vingar e atirou-o também da torre. E o mesmo sucedeu ao coitado do tabelião, cujo delito não era outro que ter ido visitar o bispo Martinho. Este foi despojado de toda a vestidura, roubado, espezinhado e, nu, arrastado, com um baraço nas pernas, pelas ruas até o Rossio, onde o deixaram para ser comido pelos cães. Há sempre destes excessos em alvoroços populares, e, embora muitas pessoas os reprovem, ninguém ousa, em tais ocasiões, impedi-los ou criticá-los.


Depois dos factos que acabamos de narrar, tornou o Mestre ao Paço, parece que a pedir perdão à Rainha, não de ter morto o conde, mas de o ter feito em casa dela. A Rainha, já, mais senhora de si, não só não lhe deu o perdão, como o admoestou por o que fizera. Saíram o Mestre, os condes e os outros fidalgos que o acompanhavam pouco satisfeitos da visita. Aproveitou a Rainha a noite para mandar enterrar o seu conde, o mais escondidamente que foi possível, na igreja de S. Martinho, que fica mui cerca de seus paços. Soubemos isto por confidência dum criado de D. Leonor. O povo continua amotinado, e, à hora de fecharmos o jornal, fala-se num assalto à Judiaria para matar Judas, David Negro e outros judeus ricos e entregar seu dinheiro ao Mestre para sua honra e defensão. Porque ninguém se convence de que El-Rei de Castela não passe, com seus exércitos, a fronteira, para tentar assenhorear-se de Portugal.
Mas todos põem sua esperança no Mestre de Avis, a quem querem eleger por Regedor e Defensor do Reino. Deus o proteja para que ele, com sua espada e o esforço de todos, possa bem defender a nossa terra de cair em mãos de castelhanos!» In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT

quinta-feira, 7 de março de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Ao verem as portas cerradas quiseram arrombá-las à pedrada e houve muitos que juntavam lenha e pediam lume para pôr fogo ao palácio e queimarem o “trèdor” e a “aleivosa”. Outros queriam escadas para subir acima e ver onde estava o Mestre»


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(Continuação)

Uma Revolução em Lisboa
Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«A seguir, mandou a Fernão de Álvares e Lourenço Martins que fossem fechar as portas do palácio para que ninguém entrasse, e dissessem ao seu pajem que corresse pelas bradando que queriam matar o Mestre. Era o sinal combinado com Álvaro Pais para o levantamento. Entretanto a Rainha, que tinha ouvido o ruído daquela cena, mandou ver o que se passava; ao ser informada do sucedido, rompeu em lamentações pela morte do seu amado conde, mas, cheia de temor, não ousava condenar os matadores. Ordenou apenas que preguntassem ao Mestre se ela ia morrer também. - Dizei lá à Rainha, minha Senhora, - respondeu ele - que esteja sossegada em sua câmara, porque não tem que temer. Eu vim unicamente para fazer isto a este homem, que bem mo havia merecido.
No Paço espalhou-se um pavor tal que João Gonçalves e os outros escrivães largaram de súbito o livro dos vassalos e puseram-se a fugir, cada um por sua banda. Os outros criados da Rainha não procuraram as portas, mas as janelas, para se verem fora dali. Alguns saltaram para os telhados. Perante esta debandada, Lourenço Martins foi-se à cozinha e de lá trouxe uma soma de prata que apresentou ao Mestre: - Já aqui tendes, Senhor, para a despesa de hoje! Mas ele retorquiu-lhe asperamente que fosse repor a prata donde a tirara, pois não fora para isso que voltara a Lisboa.
Os fidalgos partidários do conde não tornaram a aparecer, porque, quando voltavam para o Paço, foram informados do que se passara, e, perante os magotes de gente que já corriam pelas ruas, recearam ser chacinados e trataram de se pôr a salvo. A partida estava ganha...

O pajem percorria a cidade aos gritos de:
  • Matam o Mestre! Matam o Mestre! Acorrei que o matam!
Tudo saía à rua a ver o que sucedera e, começando a falar uns com os outros, exaltavam-se e corriam a tomar armas, cada um como podia. Era a revolução.
Então, Álvaro Pais, que já estava a postos e armado, com sua coifa na cabeça, montou a cavalo, o que há muitos anos não fazia, e conduziu aquele povo miúdo, dizendo:
  • Acudamos ao Mestre, amigos, que e filho de El-Rei Pedro I!
Chegaram em frente do Paço e a gente que o seguia era já tanta que nem cabia nas ruas. A indignação cada vez maior porque todo o povo estava com o Mestre e contra a Rainha. Ao verem as portas cerradas quiseram arrombá-las à pedrada e houve muitos que juntavam lenha e pediam lume para pôr fogo ao palácio e queimarem o trèdor e a aleivosa. Outros queriam escadas para subir acima e ver onde estava o Mestre. O barulho era ensurdecedor e já ninguém se entendia. - O Mestre! O Mestre!
Das janelas bradavam que o Mestre era vivo e João Fernandes morto; mas ninguém queria crer que assim fosse.
  • Pois se ele é vivo, mostrai-no-lo!
O alvoroço tornou-se tamanho que o Mestre João resolveu aparecer a uma grande janela que dá para a rua. Foi então alvo de grandes aclamações. Muitos choravam de o ver vivo. - Ah, porque matastes o traidor do conde e não matastes também logo a aleivosa! oh, aleivosa! Oh, aleivosa! E matavam-na se conseguissem ir lá acima.
O Mestre, para apaziguar aquela gente, é que desceu à rua e, montando a cavalo, dirigiu-se, acompanhado de todos os seus, para os paços do almirante, ao Rossio. Coisa maravilhosa era de ver o povoléu que o seguia, aos brados: - Que nos mandais fazer, Senhor? Que quereis que façamos? Ao que ele respondia que por enquanto de mais nada havia mister; e, às janelas, as donas da cidade, a saudarem-no em altas vozes:
  •  - Mantenha-vos Deus, Senhor! Bento seja Deus, que vos guardou de tamanha traição!
Era já quase alçarem-no por Rei.

In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

continua
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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Justificou-se o Mestre de Avis dizendo que voltara a Lisboa porque, para a defesa das terras de entre Tejo e Guadiana, que lhe fora confiada, era insuficiente a gente de que dispunha, e que portanto lhe desse a Rainha mais vassalos»


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Uma Revolução em Lisboa
Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«Grande alvoroço vai por esta cidade de Lisboa! Assuadas, tumultos, mortes, prenúncios de mais graves acontecimentos. Iminência de nova guerra com Castela? Mas também uma fé viva, no coração do povo, e o desejo ardente de, todos os bons portugueses em volta do Mestre, defenderem a independência de Portugal. O Mestre! Anda seu nome aclamado pelas ruas da cidade, desde que ontem tornou a ela.
Foi assim: Era já o sol nado, quando a Lisboa voltou mestre João, Mestre de Aviz, acompanhado dos seus, o comendador de Juromenha, Fernão de Álvares, Lourenço Martins de Leiria, Vasco Lourenço Meirinho, Lopo Vasques e outros. Eram vinte, com cotas, braçais e espadas cintas, como homens caminheiros. Chegados ao Paço, desceram de seus cavalos, subiram a escada e foram até a câmara onde estava a Rainha. O porteiro, logo que entrou o Mestre, quis cerrar a porta, para que não passasse mais nenhum. Mas o Mestre João fê-los entrar a todos e dirigiu-se logo ao estrado onde estava a cunhada, para a saudar. A Rainha, rodeada de algumas das suas donas e acompanhada do conde de Barcelos, do conde Álvaro Peres, de Fernão Afonso de Samora e de outros fidalgos, ouvia o conde João Fernandes que, de joelhos,
lhe falava baixinho. Ao ver o Mestre, levantou-se e perguntou-lhe: 
  •  - Irmão, que é isso? A que tornastes de vosso caminho? - Porque João partira na véspera, com ordem da Rainha, acordada em conselho para levantar as terras do Mestrado e algumas vilas e castelos em redor, em defesa da fronteira ameaçada pelo rei de Castela, que dá mostras de querer entrar em Portugal.
Justificou-se o Mestre de Avis dizendo que voltara a Lisboa porque, para a defesa das terras de entre Tejo e Guadiana, que lhe fora confiada, era insuficiente a gente de que dispunha, e que portanto lhe desse a Rainha mais vassalos, para que ele a pudesse bem servir, como cumpria a sua honra e ao serviço real. Achou a Rainha razoável o pedido e mandou chamar João Gonçalves, seu escrivão da puridade, para que indicasse quem poderia servir com o Mestre. Enquanto João -Gonçalves e os seus escrivães consultavam o livro de vassalos daquela comarca e preparavam as convocações, começaram os condes a convidar o Mestre de Avis a comer com eles, inclusive o de Andeiro, mas de todos ele se escusou dizendo que já tinha mandado preparar o jantar.
Consta que pôs logo o conde de Barcelos ao corrente das suas intenções e que, pretendendo este acompanhá-lo na temerária empresa, o Mestre insistiu por que partisse, pois, tanto que tudo fosse feito, iria ter com ele. Desconfiou o conde João Fernandes daquele retorno precipitado do Mestre, pelo que ordenou à sua gente que se fosse armar. Esta a razão por que nenhum dos seus estava presente quando o mataram, o que evitou, sem dúvida, que as coisas se passassem mui diferentemente, ou, pelo menos, que houvesse maior efusão de sangue.
Chegada a hora de comer, insistiu novamente João Fernandes para que o Infante jantasse com ele. Seria talvez a maneira de o ter mais vigiado. O Mestre manteve a sua recusa; mas como o conde teimasse e fizesse menção de ir mandar preparar rapidamente a comida, atalhou aquele:
  •  - Não vades, que eu vos hei-de falar duma coisa, antes que me vá, e logo me quero ir porque são horas de comer.
Despediu-se da Rainha, tomou o conde pela mão e conduziu-o a uma grande sala contígua à câmara em que estavam. Seguiram-nos os companheiros do Mestre, que já sabiam o que se ia passar, e, mais cerca, Rui Pereira e Lourenço Martins. Uma vez ali, João levou o conde de Andeiro para junto duma janela e falou-lhe tão baixo que ninguém conseguiu ouvir o que lhe dizia; todavia, afirma-se que as frases trocadas foram estas:
  •  - Conde, eu me maravilho muito de serdes pessoa que eu estimava e trabalhardes vós de minha deshonra e morte! – Eu, Senhor?! - Replicou ele. - Quem vos tal coisa disse mentiu-vos mui grão mentira.
O Mestre, que mais vontade tinha de o matar que de se travar de razões, tirou logo um cutelo comprido e mandou-lhe um golpe à cabeça. Não seria a ferida mortal, pois que o conde ainda tentou acolher-se à câmara da Rainha. Os outros, porém, logo que isto viram, rodearam-no, desembainharam as espadas, e foi Rui Pereira quem, duma estocada, o matou de pronto. Quiseram outros feri-lo também, mas o Mestre mandou-os estar quedos e nenhum se moveu». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

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domingo, 27 de janeiro de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Quando Gonçalo Mendes Vasconcelos me contou este último passo da tragédia, com a voz entrecortada de soluços, não pode prosseguir. Fecho esta carta cismando em como o desejo de reinar é coisa que não receia de cometer obras contra razão e direito...»


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(Continuação)

Drama de Sangue em Coimbra
Coimbra … de 137…
«Mas também é certo que quem seu cão quer matar, raiva lhe põe nome; e assim é que o Infante João determinou em sua vontade cedo privá-la da vida. Partiu o infante João, firme neste propósito, e dirigiu-se a Alcanhões, onde foi magnificamente recebido pelo conde de Barcelos e outros fidalgos. Jantou com a formosa D. Isabel, filha do conde Álvaro Pres Castro, depois do que houve dança, vinho e frutas. O conde João Afonso ofereceu ao Infante uma cota mui vistosa, um bulhão bem guarnecido e uma faca muito formosa que lhe tinham trazido de Inglaterra. À tarde seguiram para o Paço, acompanhados de donas, donzelas, cavaleiros e escudeiros; houve larga conversa íntima com o Infante João, o quel foi depois dormir à poisada do conde, para na manhã seguinte continuar a viagem.
Dirigiu-se a Tomar, onde o Mestre, filho de D. Maria, o convidou a jantar; porém, o Infante não aceitou o convite. Se Lopo Dias já suspeitava das intenções do padrasto, ainda mais receoso ficou depois de tão insólita recusa e despachou a toda a pressa recado para sua mãe a fim de que se acautelasse. Isto foi-me confirmado aqui pelas damas de sua companhia dela, que também me disseram que, já antes, D. Maria recebera avisos de gente da casa de El-Rei a preveni-la da desgraça que a esperava. A pobre senhora, todavia, redarguia sempre, com grande nobreza, que todas as coisas eram em poder de Deus e que aquilo que a Ele aprouvesse, isso seria. E confiada se deixava ficar, sem modificar em coisa alguma o seu viver.
Entretanto o Infante ia galopando a caminho de Coimbra, acompanhado de Diogo Afonso, Garcia Afonso do Sobrado e outros fidalgos de sua casa. Pernoitou no Espinhal, passou em Foz de Arouce, e, de Almalaguez, desceu aos olivais à beira do Mondego. Junto à ponte convocou a sua gente e disse-lhe pouco mais ou menos isto:
  •  - Consta-se que D. Maria, irmã da rainha, anda a tornar público que é minha mulher, do que tem escrituras e fidalgos por testemunhas. Disto lhe cumpria guardar segredo, por sua honra e minha. E por isso vou onde ela está, para lhe falar e praticar o que cumpre a minha honra e estado.
Todos responderam que estavam prontos a acompanhá-lo, e então recomeçaram a marcha a caminho de Coimbra. Passaram a grande ponte, ganharam a Couraça e chegaram a Sub-Ripas, quando começava a romper a manhã. Por má sorte, uma lavadeira destrancou as portas por onde logo entraram os cavaleiros, de tropel. Subiram a uma sala onde algumas mulheres dormiam. Preguntou o Infante se não havia outra entrada para se chegar aos aposentos de D. Maria; como lhe respondessem que não e as portas estivessem mui bem trancadas, ordenou que as arrombassem. Cada um fez o que mais pode, de modo que, dentro em pouco, as portas estavam quebradas.
Acordou subitamente D. Maria e, ao ver a sua câmara assim invadida por aquela gente, alçou-se do leito tão espantada e temerosa que mal se podia ter de pé. Não teve tempo para pôr sobre si vestido ou manto, nem quem lho desse, porque as damas que a acompanhavam não se podiam mover de terror. Cobriu-se então com uma colcha branca e encostou-se à parede, como quem procura defesa. Ao ver, porém, entrar o Infante, recobrou ânimo e disse:
  •  -Senhor, que vinda é esta tão desacostumada?
Lançou-lhe o Infante João em rosto o seu procedimento de ter divulgado o casamento secreto que os unia, de modo que dele chegou conhecimento ao rei, à rainha e a toda a Corte, o que seria motivo de o mandarem matar ou prender para sempre. E acrescentou que, se era sua mulher, merecia a morte, porque o atraiçoava, dormindo com outro homem. Pretendeu D. Maria justificar-se, rogou ao Infante' que a ouvisse; mas ele retorquiu-lhe apenas:
  •  - Não vim eu aqui para estar convosco em palavras! - E arrancou-lhe a colcha, de modo que todos os presentes desviaram a vista e não puderam ter-se que não chorassem pela sorte que ali mesmo a esperava.
Então o Infante agarrou-a e, brandindo o punhal que o conde de Barcelos lhe dera, cravou-lho entre o ombro e os peitos, cerca do coração. Ela só pode dizer: - Mãe de Deus!, socorrei-me e havei mercê desta minha alma. Deu-lhe novamente o Infante com o bulhão no ventre; ela invocou Jesus, filho da Virgem!, botou uma golfada de sangue, e caiu sem vida.
Quando Gonçalo Mendes Vasconcelos me contou este último passo da tragédia, com a voz entrecortada de soluços, não pode prosseguir. As donas que o ouviam, e que confirmavam o que ele ia narrando, romperam em saudoso pranto, que era de cortar o coração. Para dar por terminada a minha missão, faltava-me apenas preguntar que rumo levara depois o Infante. - Saltou logo para o seu cavalo e partiu a toda a brida em direcção a S. Paio, onde, segundo me consta, não puderam chegar com ele mais de seis. Depois, junta a companha, encaminhou-se para a Beira, onde anda a montear, à espera de ser perdoado e de que El-Rei seu irmão lhe dê a filha em casamento.
Fecho esta carta cismando em como o desejo de reinar é coisa que não receia de cometer obras contra razão e direito...» In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

continua
Cortesia de Minerva/JDACT

domingo, 6 de janeiro de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «É voz corrente aqui em Coimbra que tal fama não passava de calúnia sem o menor fundamento; tanto que nunca se aventou nome de pessoa com quem a infeliz D. Maria Teles faltasse aos seus deveres de mulher honrada»

jdact e cortesia de martinsbarata

(continuação)

Drama de Sangue em Coimbra
Coimbra … de 137…
«Via-a o Infante amiúde e apaixonou-se por ela. Declarou-lhe o seu amor, mas D. Maria era muito sisuda e fez-lhe saber que não lhe agradavam tais galanteios. Ele persistiu e Maria Teles mandou-lhe dizer Álvaro Pereira, bom fidalgo muito chegado ao Infante, que, se ele a amava tanto como dizia, casasse com ela, como El-Rei Fernando tinha casado com sua irmã. Doutra forma não consentiria que lhe falasse mais em tal.
Sobre o que se passou depois divergem as opiniões. Dizem uns que o infante João, posto ante aquele dilema, se resolveu logo a casar secretamente. Outros, porém, contam que D. Maria Teles lhe armou uma cilada, convidando-o a ir certa noite, escondidamente, a sua casa. Tudo fora preparado para o enfeitiçar. D. Maria estava mais formosa do que nunca, no que redobrou o Infante de paixão. Exprobrou-lhe o seu procedimento de tentar seduzi-la para amores fáceis, a ela, descendente dos Teles e dos Meneses, da linhagem dos reis, e exortou-o a que, ao menos pelo que devia à Infanta D. Beatriz, sobrinha de ambos, não prosseguisse no seu intento que a ofendia. Dizendo isto, chorou, o que às mulheres é ligeiro de fazer, e convidou João a ir-se embora.
Chorosa, mais linda pareceu ao Infante, que tanto lhe queria. A camareira que o conduzira até ali interveio para insistir em que aceitasse casar com sua ama. Era de nobre estirpe a irmã da rainha; El-Rei Pedro, seu pai, tinha casado secretamente, por amor, com D. Inez, mãe dele. Não havia, pois, razão para o Infante não a receber por mulher, a não ser por falta de vontade.
O infante João acedeu. Tudo estava combinado para que logo ali mesmo a pudesse receber. E o resto da noite se passou em transportes de amor que só terminaram de madrugada, quando o Infante, furtivamente, teve de partir. Como acontece sempre aos amores mais secretos, chegou conhecimento deles à Corte e muito os reprovou a rainha, que dizia antes querer ver a irmã casada com um simples cavaleiro do que com o cunhado.
A maledicência atribuiu esta oposição ao receio que a rainha teria de, no caso de morrer El-Rei, Infante João, tão amado de fidalgos e do povo, ser elevado ao trono e ela preterida por sua irmã, que seria então rainha. Este feio sentimento de inveja, que de modo algum podemos aceitar exista no coraçao de D. Leonor, teria feito com que esfriasse a sua amizade pela irmã e com que El-Rei mostrasse mau semblante não só ao Infante João, mas até ao Mestre de Aviz, pela grande afeição que àquele irmão tinha.
Cresceram as nuvens que começavam a ensombrar estes clandestinos amores, depois que João Afonso Telo foi falar secretamente ao Infante para lhe dizer que a rainha desejando seu acrescentamento e honra, cobiçava muito de o ver casado com a Infanta D. Beatriz, sua filha, a qual, embora prometida ao duque de Benavente, era mais natural que casasse com príncipe português, Para assim virem ambos a herdar a coroa de seus pais e avós. Afligia-a, porém, a ideia de que João tivesse casado com sua irmã dela, como se dizia, o que, a ser verdade, prejudicaria aquele projecto. Após estas palavras o Infante já não parecia o mesmo e começou a maquinar como havia de ser quite de D. Maria, sua mulher. Parece que a rainha e o conde falaram no assunto com Diogo Afonso Figueiredo, vedor do Infante, e com Garcia Afonso, comendador de Elvas, do seu conselho; e eis que, dentro em pouco, se levanta a atoarda de que D. Maria atraiçoava o marido e que portanto este bem podia matá-la e casar depois com a sobrinha.
É voz corrente aqui em Coimbra que tal fama não passava de calúnia sem o menor fundamento; tanto que nunca se aventou nome de pessoa com quem a infeliz D. Maria Teles faltasse aos seus deveres de mulher honrada. Mas também é certo que quem seu cão quer matar, raiva lhe põe nome; e assim é que o Infante D. João determinou em sua vontade cedo privá-la da vida». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

continua
Cortesia de Minerva/JDACT

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Mas o meu intento é somente recordar quem é o protagonista do drama de Coimbra: dotado de tais virtudes e tão estimado de todos que ninguém esperar podia vê-lo transformado a cometer tão feia acção como esta que ora fez»


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Drama de Sangue em Coimbra
Coimbra … de 137…
«Mal a Santarém chegaram notícias, confusas, de que, em Coimbra, se tinha dado uma horrível cena de sangue, da qual foram protagonistas pessoas da mais nobre linhagem, próximos parentes dos nossos reis, mandei aparelhar o alazão e parti, a toda a brida, para aqui. Queria informar com toda a verdade e miudamente os nossos leitores.
Passei em Alcanhões, onde está a Família Real, e logo tive confirmação da tragédia, por cujo motivo El-Rei e a Rainha se encontravam recolhidos, em rigoroso luto.
Ao cabo de três dias de viagem, cheguei a esta cidade. Achei-a ainda alvoroçada e, no rosto de muitas pessoas, gravada uma expressão de dor.
Indaguei por onde se ia até o lugar em que morava a desventurada D. Maria Teles e segui imediatamente para lá. Ladeei a couraça, deixei à minha mão esquerda a igreja de S. Bartolomeu, subi a calçada íngreme que contorna a muralha e, dentro em pouco, apeava-me junto às casas de Álvaro Fernandes Carvalho, onde vivia a irmã da Rainha D. Leonor. O sítio é, aprazível a mais não poder ser, pois o palácio, constituído por torres donde se desfruta um delicioso panorama sobre os campos do Mondego, tem à ilharga um risonho vergel de laranjeiras e outras árvores de fruto.
Disse ao que ia e preguntei quem melhor me poderia informar. Não tardou que um escudeiro me trouxesse ordem de subir, da parte de seu amo, Gonçalo Mendes Vasconcelos. Era parente de D. Maria e está a tomar conta da casa, aguardando ordens de Lopo Dias, seu filho dela. Num discurso, entrecortado de suspiros e ais, quis aquele senhor dar-me conta de todas as informações que pudera recolher, quer de alguns cavaleiros que acompanhavam o Infante, quer das mulheres que estavam com sua prima quando ela expirou.

Quem não sabe quanto estimado era na Corte o Infante João? Filho de El-Rei Pedro, que Deus haja em sua glória, e de D. Inez de Castro, que aquele monarca pretendeu fazer crer que fora sua mulher, teve uma infância desditosa por via de haver perdido tão cruamente a mãe; mas depois que o príncipe Pedro cingiu a coroa, por morte do Rei Afonso, o Infante João passou a viver na Corte, com todas as honras inerentes à sua gerarquia.
Belo de rosto e de corpo, como bastas vezes, leitor, o tereis visto, era igualmente exornado de requintadas qualidades de espírito. Amorável, galanteador, sabia muito bem receber em sua casa os fidalgos portugueses que o procuravam ou os que de alheio reino o vinham visitar. Tinha fama a sua generosidade, dava cavalos, armas, vestidos, dinheiro, aves e alãos a quem dele se aproximasse.
Foi sempre muito amigo de seu irmão João, Mestre de Aviz. Recomendara-lhes El-Rei, seu pai, que não se apartassem um do outro, e, de facto, tanto na corte como nas montarias e festas, andavam sempre juntos. Uma vez, em Évora, quando competia a ambos manter a távola numas grandes justas dirigidas pelo conde de Viana, o Infante João teve de recolher à cama, muito doente. Entretanto surgiu um conflito entre Vasco Porcalho, comendador-mor de Aviz, e Fernando Álvares Queiroz, que era da parte dos condes. Pois bastou constar-lhe que seu irmão, o Mestre, andava a cavalo, com um tração de pau na mão, a fim de defender Porcalho da fúria dos contrários, para que já ninguém fosse capaz de o reter no leito, de o impedir de ir ajudar o irmão na defesa do comendador-mor da sua ordem.
Não havia ninguém em toda a Espanha que melhor dominasse um cavalo, por mais braveza que tivesse; era grande justador e torneador e nunca esmorecia no exercício da caça, ao qual se entregava de verão e de inverno, por montes, vales, matas e levadas. Nem havia porco ou urso que lhe metesse medo. Podia contar aqui feitos que bem atestam a sua galhardia e coragem.
Mas o meu intento é somente recordar quem é o protagonista do drama de Coimbra: dotado de tais virtudes e tão estimado de todos que ninguém esperar podia vê-lo transformado a cometer tão feia acção como esta que ora fez.
Ela, a vítima, D. Maria Teles de Meneses, era irmã da rainha D. Leonor e de João Afonso, conde de Barcelos. Seus amores com o Infante João constituem um romance. Casada com Álvaro Dias Sousa, fidalgo de nobre estirpe, cedo enviuvou. Parece que o marido tinha relações com certa dama a quem o rei Pedro muito se afeiçoara; temendo a cólera do monarca, ausentou-se do Reino e lá por fora morreu, deixando a esposa, nova, mui formosa e atraente, rodeada de uma grande corte de donas, donzelas, camareiras, escudeiros, oficiais, etc., e de fidalgos, parentes ou não, que ela muito prezava segundo cada um merecia. Era abastada a sua casa, já pelos muitos bens que tinha herdado, já pela generosidade da rainha sua irmã, já porque a seu filho fora dado o mestrado de Cristo, cujas rendas a mãe administrava». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

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Cortesia de Minerva/JDACT