quarta-feira, 3 de abril de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «A sanha da populaça era cada vez maior, e, como não visse sua vontade satisfeita, foram alguns buscar uma escada e entraram na Sé por uma fresta. Bradava-se que se visse porque não repicavam os sinos e, se fosse por determinação do bispo, que o deitassem abaixo»

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(Continuação)

Uma Revolução em Lisboa
Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«Enquanto o conde de Barcelos vinha ao encontro do Mestre e, depois de o abraçar, o conduzia a seus paços para lhe dar de comer, o povo, amotinado, concentrava-se em volta da Sé, indignado, porque, ao contrário do que sucedera em S. Martinho e noutras igrejas, o bispo não mandara repicar as campanas. - Que repicassem! Que repicassem!
Mas o bispo Martinho, ou por não saber do que se tratava, ou, como era castelhano, por ser partidário da rainha e do conde, mandou cerrar todas as portas e recolheu-se a uma das torres acompanhado do prior de Guimarães e dum tabelião de Silves, que tinham vindo visitá-lo.
A sanha da populaça era cada vez maior, e, como não visse sua vontade satisfeita, foram alguns buscar uma escada e entraram na Sé por uma fresta. Bradava-se que se visse porque não repicavam os sinos e, se fosse por determinação do bispo, que o deitassem abaixo. Um dos que subiram foi Silvestre Esteves, que é procurador da cidade e alcaide pequeno dela. Homem honrado, ouviu as razões do bispo e deu-se por satisfeito. Mas a turba enfurecida e que não queria saber de razões e já clamava que, se o bispo Martinho não era atirado abaixo, iriam lá acima também e então seriam atirados com ele todos os que lá estavam.
As ameaças e o furor chegaram a tal ponto que os que tinham subido se viram obrigados a matar o bispo, com feridas, e a lançar seu corpo à rua. Um escudeiro, inimigo do prior de Guimarães, aproveitou aquela ocasião para se vingar e atirou-o também da torre. E o mesmo sucedeu ao coitado do tabelião, cujo delito não era outro que ter ido visitar o bispo Martinho. Este foi despojado de toda a vestidura, roubado, espezinhado e, nu, arrastado, com um baraço nas pernas, pelas ruas até o Rossio, onde o deixaram para ser comido pelos cães. Há sempre destes excessos em alvoroços populares, e, embora muitas pessoas os reprovem, ninguém ousa, em tais ocasiões, impedi-los ou criticá-los.


Depois dos factos que acabamos de narrar, tornou o Mestre ao Paço, parece que a pedir perdão à Rainha, não de ter morto o conde, mas de o ter feito em casa dela. A Rainha, já, mais senhora de si, não só não lhe deu o perdão, como o admoestou por o que fizera. Saíram o Mestre, os condes e os outros fidalgos que o acompanhavam pouco satisfeitos da visita. Aproveitou a Rainha a noite para mandar enterrar o seu conde, o mais escondidamente que foi possível, na igreja de S. Martinho, que fica mui cerca de seus paços. Soubemos isto por confidência dum criado de D. Leonor. O povo continua amotinado, e, à hora de fecharmos o jornal, fala-se num assalto à Judiaria para matar Judas, David Negro e outros judeus ricos e entregar seu dinheiro ao Mestre para sua honra e defensão. Porque ninguém se convence de que El-Rei de Castela não passe, com seus exércitos, a fronteira, para tentar assenhorear-se de Portugal.
Mas todos põem sua esperança no Mestre de Avis, a quem querem eleger por Regedor e Defensor do Reino. Deus o proteja para que ele, com sua espada e o esforço de todos, possa bem defender a nossa terra de cair em mãos de castelhanos!» In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT