domingo, 14 de abril de 2013

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «… o vocábulo herdado "so-e-dade", passando por 'soïdade', que deu 'suïdade' ("ssuydade"), chegou a ser "saúdade", em tempos relativamente modernos…»

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E porem me parece este nome de ssuydade tam proprio que o latym nem outra linguagem... nom he pera tal sentido semelhante. In rei Duarte, no Leal Conselheiro, Cap. XXV.

«Comparando-as... Ai de nós! Não com as autênticas poesias dos cancioneiros, como devia, mas sim com fábulas e novelas, contadas por outros fabulistas, pseudo-historiadores. Esta subtil definição é de Afonso Lopes Vieira. Foi enunciada na sua linda conferência sobre O Povo e os Poetas Portugueses, Lisboa, 1910. Faço-a minha, mas não com relação às Cartas de Egas Moniz. A respeito dessas eu disse-lhe com franqueza que continuava a repeti-las com falsas, artificiosas, amaneiradas, um grande desvairo de palavras.
Vou tentar o exame linguístico dos vocábulo saudade e saudoso. Não que eu queira, ou possa, renovar-lhes a base. Todos os que, entre nacionais e estrangeiros, dissertaram a respeito das saudades reconheceram como étimo evidentíssimo o plural latino e feminino solitates. Os antigos indicam-no sem entrar em pormenores. No século XV o rei-filósofo Duarte que, no Leal Conselheiro, compara a ssuydade com outros vocábulos quase sinónimos.

NOTA: E no muito citado capítulo XXV do Leal Conselheiro, do nojo, pesar desprazer, avorrecimento e suydade, que se lêm as seguintes reflexões sensatas. E a suydade... he huum sentido do coraçom que vem da sensualidade (hoje diríamos sensação) e nom da rrazon e faz sentir aas vezes os sentidos da tristeza e do nojo. ... Se algua pessoa por meu serviço e mandado de mim se parte, e della tenho suydade, certo he que de tal partyda nom ey sanha, nojo, pezar, desprazer nem avorrecymento, ca prazme de sseer e pesarmya se nom fosse; e por se partir, alguas vezes vem tal suydade que faz chorar e sospirar como se fosse de nojo... E quando nos vem algua lembrança dalguum tempo em que muyto folgamos, nom geeral mas que traga ryjo sentydo, e por conhecermos o estado em que somos seer tanto melhor, nom desejamos tornar a el por leixar o que possuymos, tal lembramento nos faz prazer, e a myngua do desejo per juyzo determinado da rrazom nos tira tanto aquel sentydo que faz a suydade que mai sentymos a folgança por nos nenbrar o que passamos que a pena da myngua do tempo ou pessoa... E aquesta suydade he sentida com prazer mais que com nojo nem tristeza... Quando aquella triste lembrança faz sentir grande desejo... com esta suydade vem nojo ou tristeza mais que prazer. O resto não é menos interessante. Bom seria que muitos o lessem.

No século XVII, o quarto conde de Portalegre (Silva e Menezes) na carta espirituosa a Magdalena de Bovadilla, sobre os mistérios da saudade portuguesa e a conformidade ou diferença dela e da soledad castelhana, a que já aludi. Igualmente, Manuel de Faria Sousa, no seu judicioso comentário aos saudosos campos do Mondego, mencionados no episódio de Inês de Castro. Francisco Manoel na Epanáfora terceira, não traz nota alguma etimológica.

NOTA: Lusíadas Comentados, (1639), vol. II. Eis como o Comentador explica os saudosos campos do Mondego. En dos maneras deveys entender aqui el Saudosos. Una, regalados, i que de puro bellos combidan a ser logrados con soledad; otra que aun oy estan llenos de soledad i dolor de la ausencia de Inês, i del modo della: porque saudosos es derivacion de saudade: i aunque a algunos parece que en castellano falta voz equivalente a esta, no ay duda que lo es Soledad: Advirtiendose que saudade en português no es otra cosa que soidade, derivado de soidam, que derechamente es soledad, i el dezir saudade es corrupcion: pero vino a ser corrupcion como la del vino quando se buelve finissimo vinagre que siendo tal es mas saludable i un apetito regalado i oloroso: assi la corrupcion de Soidade en Saudade para el oydo português vino a parar en voz regalada i mas significativa, que la verdadera, del desseo, pena i dolor ternissimo del bien ausente; i significacion que no se ajusta en otra lingua.

Os modernos, claro que se viram obrigados a demonstrar a etimologia. P. ex. o erudito Milá y Fontanals, predecessor de Menêndez y Pelayo, ao tratar da poesia popular da Galiza, e também nos Trovadores em Espanha. Sobretudo, o nosso Gonçalves Viana, e o ilustre catedrático de New-Haven, a quem devemos não só a primeira edição do Cancioneiro de D. Dinis, e o Cancioneiro (de transição) Galego-castelhano, mas também numerosos tratados especiais sobre fenómenos linguísticos e literários, peninsulares.
Nova é somente a minha maneira de historiar mais minuciosamente as evoluções de forma e de significado; e a tentativa de explicar de que modo, por influxos psicológicos, associação de ideias e etimologia popular, o vocábulo herdado so-e-dade, passando por soïdade, que deu suïdade (ssuydade), chegou a ser saúdade, em tempos relativamente modernos, mas que por ora não se podem fixar com exactidão. Do quinto estádio sàudade já se passou na boca do vulgo, a um sexto, pelo menos em Lisboa, onde pronunciam sódade por soudade. Mas é de crer que, por afecto à fama já universal da palavra, a parte culta da nação não deixe generalizar-se essa vulgarização e continue a pronunciar sàudade».

In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.

Cortesia de Guimarães E./JDACT